Fábio Cairolli é professor de Língua e Literatura Latinas na Universidade Federal Fluminense.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Essa é uma organização delicada e que varia muito em função das demandas, que por sua vez vão mudando ao longo do semestre. Começo decidindo aquelas atividades que têm prazo semanal e, por isso, não são muito flexíveis. A rotina doméstica e preparação de aulas, por exemplo, se encaixam nesse grupo. Depois, entram atividades com cronogramas fechados, em especial quando os prazos estão justos, como acontece com pareceres ou correção de provas. Do jeito que as coisas tem sido, essas atividades já tomaram uma boa parte da semana e, como se vê, pouco têm a ver com a escrita.
Só depois disso consigo encaixar meus projetos de escrita. Prefiro trabalhar com vários projetos ao mesmo tempo e, nesses últimos tempos, também trabalhado com mídias diferentes. É bom estar dedicado a projetos diferentes porque sou um pouco dispersivo e alternar o foco ajuda a manter a concentração. Às vezes, determinados textos encontram impasses e a melhor coisa é ter para onde deslocar a atenção. Usa-se melhor o tempo e, quando se volta ao primeiro projeto, é comum já sermos capazes de olhar de uma perspectiva diferente.
Também tenho alternado entre computador, dispositivos móveis e mesmo o papel para escrever. Com a tensão tecnológica do confinamento, tendo que dividir equipamentos com a aula remota das crianças, têm sido salutar alternar mídias. Coisas como traduções poéticas, que envolvem bastante reflexão e redação espaçada, vão bem num caderno, longe do escritório.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Ultimamente, tenho preferido deixar os projetos fluirem um pouco antes de fazer planos mais rígidos. Isso permite que os possíveis desenvolvimentos do texto se mostrem de forma mais descomprometida. Assim, quando o projeto do texto é desenhado, ele tem certa maturidade.
Logicamente isso é mais fácil em textos artísticos. Em textos científicos o planejamento é mais crucial, já que as premissas precisam ser claras, os fundamentos precisam ser pesquisados, não se pode escrever a esmo. Ainda assim, sempre que me proponho a fazer um texto científico, deixo certas hipóteses ficarem saltando no trapézio que todos temos no cérebro.
Com certeza a última frase é mais difícil que a primeira, pois implica em admitir que o trabalho está pronto, que a quantidade de releituras já está suficiente e que, ao menos naquele momento, já se disse tudo o que devia ser dito.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Idealmente, silêncio e privacidade melhoram muito o andamento do trabalho para mim, mas são artigos de luxo no momento, então acabei desenvolvendo a capacidade de aproveitar momentos pouco úteis, como a sala de espera do dentista, por exemplo. Nem tudo pode ser produzido dessa forma, mas essa atitude me ajudou a desenvolver a memória e a compor o texto propriamente dito sem o auxílio do suporte físico, transformando o tempo disponível durante do teclado em momento de transcrição, muito mais do que de escrita.
Sobre rotina, então, nem se fala. Sei que é um momento de transição, na minha vida e no mundo, mas hoje, conseguir manter algumas coisas em andamento em meio a tantos imprevistos já é uma vitória. E, no fundo, não posso reclamar, até tenho rendido bem em meio ao caos.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Não tenho técnicas específicas para a procrastinação. Tendo a ser muito conservador com prazos, pois sei que o estresse me faz reduzir a qualidade do trabalho que vou apresentar, e por esse mesmo motivo me proponho a terminar os textos con folga. Dessa forma, quando me sinto travado, abandono o texto em questão por um ou dois dias, me envolvo com outro texto, com seus problemas, e só depois retorno ao primeiro texto. Esse movimento tende a me ajudar a recuar sobre os passos que tinha dado e perceber o que esteva faltando para seguir. É fundamental que sobre um pouco de tempo no cronograma para que isso aconteça.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
De longe, o meu texto mais trabalhoso foi minha tese: fisicamente, é o mais extenso; foi também o trabalho que me consumiu mais tempo (e tem consumido até hoje, já que sigo trabalhando para transformá-lo em algo novo); enfim, foi o texto submetido à mais severa das avaliações, que é a banca da defesa.
Embora eu me orgulhe imensamente desse trabalho, que consolidou mais de dez anos da minha pesquisa sobre a poesia de Marcial, hoje a tradução que tenho feito da Eneida, de Virgílio, me deixa mais orgulhoso. Não é um texto apenas: a tradução está em andamento ainda, longe de acabar (estou no livro 3 de 12), mas já gerou dois textos: um artigo e um cordel. Acho que me orgulha mais porque é meu principal projeto em andamento (e os projetos presentes são sempre os mais empolgantes), mas também porque é o trabalho que mais requereu ousadia da minha parte: ao escolher transcriar um clássico da literatura latina com a estética da literatura de cordel, precisei romper com diversos paradigmas tanto das letras clássicas quando do cordel. Isso tudo sem romper com a seriedade que se espera da tradução e de uma pesquisa acadêmica.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Tanto meus livros acadêmicos quanto os de poesia acabem seguindo uma lógica de interesses pessoais que é mais ou menos continua: o problema que resulta no próximo livro é sempre uma reação ao livro anterior. Nem sempre é óbvio: passar, por exemplo, de um livro de poemas eróticos breves para um de poemas satíricos longos é um caminho experimental que não surpreende, já que trata de buscar estratégias discursivas nos polos opostos do tema e da forma. Mas passar de Marcial a Virgílio (que alguns poderiam também dizer que são diametralmente opostos), implicou em tentar responder a uma infinidade de outras indagações que são mais difíceis de esmiuçar.
Tendo a pensar que que o leitor ideal dos meus livros sou eu mesmo: o grande desafio é chegar a dizer o que realmente quero dizer. Não dá para planejar mais que isso. E não é nem por egocentrismo, nem mesmo por uma visão pessimista do processo. Pelo contrário, quando começo a partilhar os textos com outras pessoas, sou surpreendido de forma muito positiva com a forma como os demais acolhem e interpretam os textos.
Não dá para controlar a interpretação do leitor: na poesia, isso implica que cada leitura aumenta o campo das possibilidades do texto, o que é positivo, já que o leitor se apropria do poema; na escrita acadêmica, porém, a ambiguidade é indesejável, e por isso eu mesmo tenho que fazer um exercício de contra-argumentação para cada assertiva que fizer. Mas em ambos os casos são meus dilemas que vão me conduzir: se uma objetividade absoluta é impossível, o ideal é tratar a subjetividade como coisa positiva. Sem isso, é difícil que um texto científico se possa levar em consideração ou um poema mereça ser lido.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Para mim, o texto só pode ser mostrado quando já não é um rascunho. É importante que o texto esteja pronto, que o propósito, a estrutura, os resultados estejam já no papel. Assim não tenho que justificar intenções, nem preciso ter medo da impessoalidade: já me aconteceu de amigos da academia solicitarem permissão para partilhar textos ainda inéditos com outros pesquisados, menos familiares. Num caso desses, o debate só é proveitoso se o texto estiver pronto, passível de ser acolhido sem necessidade de correções, como se diz nos pareceres das revistas acadêmicas. Não que isso seja comum: geralmente, essa versão 1 recebe grandes acréscimos a cada leitor que a comenta antes da publicação. Se há prazo entre a redação e a publicação desejada, essa primeira versão pode ser apresentada oralmente à comunidade em eventos, onde as sugestões tendem a ser múltiplas.
Meus primeiros leitores costumam ser recrutados na família: por um lado, os parentes têm aquela benevolência de aceitar essa roubada de ser o primeiro leitor, ou se envergonham de recusar. Por outro, são leitores que têm boa formação intelectual sem serem especialistas nas áreas em que atuo. Isso é fundamental pois esse é o tipo de leitor que capta inconsistências argumentativas, mas ao mesmo tempo está em condições de dizer se o texto é instrutivo. O leitor especialista facilmente concede à omissão de dados que ele já conhece, ou, ao contrário, se detém apenas em aspectos do texto que se relacionam à sua especialidade e interesses. Não que isso seja indesejável, mas não é a primeira leitura que eu desejo ter em um cenário ideal.
Tudo isso diz respeito à escrita acadêmica. Na poesia, embora a regra da versão 1 seja a mesma, em cada texto desejo um leitor diferente, que pareça responder às dúvidas que o texto ainda me deixa.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Foi ainda durante a adolescência, quase como reflexo do contato com a literatura. Desde cedo decidi que, qualquer que fosse meu caminho profissional, teria que implicar em muito envolvimento com leitura e escrita. Provavelmente, o momento crucial de verdade tenha sido não o início da escrita, mas o da leitura. Acho que a expressão por meio da escrita foi uma continuação natural da expressão por meio da brincadeira e do desenho, quando esses foram sendo deixados para trás, junto com a infância, a palavra foi o mundo que sobrou, que fez a ponte entre o imaginário infantil e o adulto.
Hoje, gostaria que tivessem me dito antes que não basta se expressar para o texto ser bom. Somos movidos pelos bons poetas a acreditar que o que eles dizem é verdade, quando o que faz deles bons poetas é a capacidade de nos fazer acreditar neles, não de dizer verdades. Precisei entrar num curso de letras clássicas para entender isso.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
A principal dificuldade foi entender o que era bom naqueles autores que eu achava bom. Até me tornar um escritor satisfeito com o próprio jeito de escrever, lia vorazmente os meus autores favoritos mas não era capaz de emular as características que admirava neles. Novamente, foi só na faculdade que conheci instrumentos analíticos com os quais entendi um pouco melhor o que era estilo e como construir o meu. Ao mesmo tempo, precisei entender que as virtudes de um estilo não eram absolutas, que a abundância de um Cícero, por exemplo, me cativava, mas era exatamente a mesma característica que me enfadava em um Eça de Queiroz. Com isso entendi que nem tudo que eu achava bom nos autores que eu admirava era desejável para mim, mas que o desejável era saber o que eu queria: só depois disso o estilo faria sentido.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Essa é uma questão difícil para um professor de literatura. Acabo de sair da minha semana de abertura de semestre e sugeri muitas leituras para meus alunos. Sugeri que lessem Apuleio, que é o tema de uma das minhas disciplinas, e que depois voltassem ao Machado de Assis. Acho que Memórias Póstumas de Brás Cubas seria minha recomendação hoje, independente das minhas obrigações acadêmicas. Parece tão óbvio, em teoria todo estudante médio deveria ter essa leitura, mas é justamente nas entrelinhas dessa obviedade que se encontra a necessidade continua desse livro. É um livro que consegue ser prazeroso (aparentemente há uns grandes teóricos de boteco da literatura dizendo que essa é a função da leitura), mas também instigante, incômodo e, por causa de sua assistente distância, muito próximo de nós.