Fabiane M. Borges é psicóloga clínica, pesquisadora e ensaísta, doutora pela PUC-SP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Estou em fase de transição por estar tentando parar de fumar. Não sei como será daqui a pouco. Mas até agora a perfeição de um dia produtivo com a escrita começa com chimarrão e tabaco, meu laptop aberto diante do novo texto que estou escrevendo, a internet funcionando para eu acessar as informações que preciso, e meus livros e cadernos de notas à disposição. Depois quando a fome aperta, eu vou fazer as outras coisas: café da manhã (geralmente ao meio dia), etc.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de trabalhar na escrita quando acordo, de preferência concentrada, sem interrupção, sem notificações de celulares ou telefonemas urgentes. Desligo tudo! Mas como não estou sempre escrevendo, não sou sempre assim. Vai variando conforme o nível de entrega para a produção em questão. Não tenho um ritual exato, mas às vezes, quando me excita demais um texto, preciso produzir alguma atividade física urgente, nem que seja fazer bambolê, sair correndo morro acima ou pegar o primeiro táxi que passar para ir fazer umas cestas de basquete no aterro do Flamengo, tomar um banho de mar, fazer amor ou, ainda, limpar a casa. Daí consigo digerir a pulsão e finalmente voltar para o texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária. Escrevo por desejo ou demanda. Mas prefiro por desejo. A coisa vai se desenhando sozinha, começo a pensar nela, ela vai crescendo, até que as palavras vão saindo dos dedos, é uma intuição. A coisa começa a acontecer e daqui a pouco a extravasar. Não pode ser contida. Mas é muito, muito sofrido. É quase um período de doença. É feliz, mas extremamente obsessivo, e mais ainda quando a escrita não consegue sair no nível que o pensamento pensa. Às vezes a escrita leva sozinha o pensamento, então é sempre um jogo de forças, uma relação entre pensamento e escrita. Minha amiga falou um dia que eu escrevo alucinada. Eu acho que tem essa coisa mesmo, uma suspensão ou possessão. É exaustivo e sofrido escrever, mas é uma alegria do fundo do corpo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É como um arrastão. Uma intuição que é um trator, ou um avião, que eu tenho que correr atrás, e praticamente nunca consigo fazer do jeito que deveria, me falta língua, povo, estrutura. É sobretudo difícil saber quando terminou um texto. Nunca termina. Nunca tem fechamento. Tem sempre restos, sobras, desnecessidades, exageros, e por outro lado, pudor demais, negociação demais. E quando finalmente eu dou um fim, mato o meu texto, digo agora tu é isso e lanço ele no mundo, eu o leio com os olhos do mundo e vejo uma, duas frases que justificam tantas palavras. Elas são as que importam e ali estaria a alma daquele texto, mas agora já não dá mais tempo, pois já está no mundo. Só resta começar outro texto. Meus textos sempre são rascunhos. Não há nada que eu possa fazer sobre isso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu dou paradas enormes, às vezes de um ano. Eu não consigo nem mexer no texto. Se eu o abro, me dá uma enorme preguiça. Como se eu fosse ser absorvida por um buraco negro, por uma força atratora que me separasse do resto da vida. Me dá medo, me excita, me aborrece. A escrita é uma coisa viva. É uma complexidade, um salto no abismo. É uma viagem de enteógeno. Eu lido assim mesmo, tendo medo, tendo ansiedade, tendo intuição e coragem, tendo receio, tendo medo do olhar do outros, mandando o olhar dos outros se foder, e assim vai.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo ler várias vezes, brincando que não sou eu, escolho alguém e leio como se fosse aquela outra pessoa. Isso me ajuda a corrigir alguns excessos, e abrir algumas exceções. Mas só consigo mesmo achar os furos do texto, ou as intuições mais importantes dele, quando ele já está no mundo, e já não há nada a fazer com ele. Só começar outro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador, só escrevo algumas notas nos livros, ou sobre eles em papéis aleatórios, que geralmente perco, acho-os depois que já não são mais necessários. Geralmente guardo o clima, o ambiente de uma intuição, daí revisito isso constantemente, para não perder aquela sensação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De onde vêm minhas ideias? Mnnnnn… Isso também está em transição. Mas vêm muito dos bares, da clínica, das dores do samba e da terapia. Vêm principalmente das experiências, das conversas, da nossa vulnerabilidade, luto, saudade. Da alegria extrema que se extenua, ou da realidade dura. Da pobreza, das coisas injustas. Do sofrimento psíquico, da política megalômana global. Quando estou em outro país, onde a solidão aperta, o texto geralmente me salva. Escrever um texto se torna uma intimidade, uma companhia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Me libertei de várias coisas com o passar dos anos, como por exemplo, de ser considerada ou não uma ensaísta que preste. Estou tentando ser cada vez menos neurótica e mais libertária na minha escrita, ser menos referencista e mais criativa. Dialogar com o que estou lendo e está me estimulando. Isso é muito difícil e sofrido e chama muita responsabilidade para o que é dito, mas vale a pena quando abro mão de ser uma unanimidade, e passo a escrever para quem está em diálogo comigo, e não com o tema da moda, ou com as novas nomenclaturas das redes sociais, daí a coisa consegue aprofundar, crescer, entrar em diálogo com as coisas que me interessam, senão vira sempre uma tentativa de convencimento ou convertimento. Convencer ou converter é sempre uma sedução, mas estou achando mais sedutor agora continuar um mundo, continuar uma coisa que está em quase todos os textos, que aparece neles, que me faz ser singular ao invés de imitar os outros. Se eu fosse escrever de novo minha tese, começaria pelo último capítulo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Agora estou tentando continuar minha escrita da tese (que não publiquei), mas que vai sair para esse ano e no próximo, que é em torno da Cultura Espacial, ou Subjetividade, Arte e Ciência – Espacial.