Fabiane Guimarães é uma jornalista e escritora goiana radicada em Brasília, autora de Apague a luz se for chorar.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não existe propriamente uma rotina, uma vez que todos os dias abrigam um compromisso diferente, mas se há uma constância, eu diria que o café. As manhãs não começam para mim sem uma grande caneca de café coado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando posso, gosto de trabalhar em casa, pela manhã. Depois do café, e de uma ocasional tapioca, sentada no meu sofá. É quando sinto que escrevo mais e melhor, embora não seja propriamente uma pessoa matinal, o que é contraditório. Gosto de estar completamente livre, em um lugar silencioso e sozinha, diria que este é meu ritual. Infelizmente, nem sempre é possível…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando em algum projeto com prazo, gosto de escrever todos os dias, porém sem estabelecer metas. Às vezes tento escrever a mesma quantidade diária, mas as coisas não funcionam assim. Alguns dias serão mais criativamente férteis do que outros, e isso é natural.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é a melhor parte, para mim. Começar um romance novo, um conto ou uma história é sempre muito empolgante. Geralmente começo com gás total e vou tendo dificuldades ao longo do caminho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tento lutar contra os bloqueios, porque é preciso assumir que eles existem. Busco meditar, me distrair, ler outras coisas, assistir a filmes ou entrar em contato com trabalhos relacionados aos meus. Sem forçar a escrita neste período, porque é um círculo vicioso, quanto mais tento escrever quando estou travada, mais travada fico. Conversar com amigos criativos sempre funciona, também.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Faço incontáveis revisões quando estou escrevendo. Às vezes tiro um dia ou uma noite apenas para conferir o que já fiz, melhorar um ou outro capítulo. Escrever também é reescrever. E, sim, tenho algumas pessoas de confiança a quem mostro antes de publicar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Em geral, tenho grande dificuldade em escrever à mão. Minha caligrafia não consegue acompanhar o ritmo das ideias. Acontece, quando surge uma ideia e não tenho computador, mas acho o processo de escrever diretamente no editor de textos mais produtivo. Posso voltar e corrigir antes de seguir em frente, sem precisar fazer uma bagunça no papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De uma paisagem que eu preservo dentro de mim, das lembranças de um interior da minha infância. Embora more em Brasília há dez anos, não consigo me conectar com a cidade totalmente, de forma que minhas ideias quase todas remontam ao ambiente rural onde cresci. Também sou jornalista e leio e escuto muitas histórias, e às vezes sou tomada de assalto por personagens interessantes. Minhas histórias são quase todas humanas, sobre dramas humanos, então gosto de observar e refletir sobre como as pessoas lidam com a realidade e se conectam umas com as outras. Eu diria que, mais do que papear sobre esses assuntos, um dos meus hábitos para continuar criativa é ler ficção, sempre.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Eu me tornei mais disciplinada. Escrevo desde criança, e posso dizer que antes escrevia mais, mas em geral não terminava o que começava. Hoje, por mais difícil que seja, tento terminar aquilo que começo. Posso dizer que muitas coisas mudaram de lá para cá, inclusive o respeito pela gramática. (risos) Mas sinto que há um fio condutor nessa história de escrever histórias que me acompanha, que é essa melancolia, esse apreço por descrições e por sentimentos. Desde os meus primeiros rabiscos, gosto de enxergar a poesia nos detalhes. De forma geral, não mudaria nada. Tudo que foi feito foi parte do meu processo e ainda tenho muito a evoluir.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sinto que estou constantemente gerindo esse projeto, esse livro que eu ainda vou escrever e que, uma vez findo, será a minha “obra máster”. Mas sei que é uma ilusão. Quando terminar esse livro, haverá outro, e mais outro. De certa forma, também, creio que todos os livros já existem. O que não existe é o jeito de contá-los, que é individual. Por exemplo, estou trabalhando agora em uma história que é narrada pelo tempo, e o tempo neste caso é uma mulher. Era algo que eu queria fazer, mas não encontrava como. Pode ser o livro-resposta.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu costumo planejar a história, o tema central, o meu objetivo com ela e o final. O decorrer dos acontecimentos, no entanto, fluem no caminho. O mais difícil para mim, certamente, é escrever a primeira frase. É essa a frase que vai decidir se o seu leitor vai se interessar pela história ou não. Primeiras linhas potentes podem até decepcionar, mais tarde, mas costumam ser bem sucedidas. Em Amor nos tempos de cólera, por exemplo, Gabriel Garcia Marquez encanta só ao escrever: “Era inevitável. O cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados”.
A partir disso, sofro de ansiedade literária e às vezes me precipito rumo ao fim. Amo escrever a última frase.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Prefiro ter apenas um projeto, mas acontece com frequência de estar escrevendo algo longo, como um romance, e tirar uma pausa para fazer contos.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Costumo dizer que existem dois mundos. O externo, onde obviamente habito, onde existe minha família, meus amigos, meu trabalho; e o interno, que é o meu mundo de ideias. Minha motivação é uma voz que vem do mundo interno, que se propõe a interpretar os sentimentos, os significados, que admira as histórias e as consequências das conexões humanas. Eu sempre gostei de inventar pessoas, de inventar vidas, e eu não acho realmente que tenha decidido me dedicar à escrita, eu sempre escrevi, até quando não sabia escrever.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que a principal dificuldade, que eu ainda enfrento às vezes, é separar o que eu sei escrever daquilo que eu gostaria de saber escrever. Sempre admirei a literatura de Guimarães Rosa, Isabel Allende, José Luis Peixoto, Alice Munro, Inês Pedrosa. Adoro a Adriana Lisboa, que é uma autora brasileira fantástica. Amo também uma francesa que escreve policiais, a Fred Vargas. Essas são referências que às vezes, confesso, tentei emular. Mas hoje em dia prefiro apenas ter a escrita dessas pessoas como inspiração para as coisas que preciso dizer.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Recomendo três leituras bem diferentes entre si.
Olive Kitteridge, de Elizabeth Strout. Um romance que é, na verdade, um apanhado de contos que retratam uma mulher de meia idade do Maine em diferentes fases de sua vida. Olive é uma personagem fantástica e este livro dá uma aula sobre desenvolvimento de personagens como um todo, além de ser de uma sensibilidade ímpar. Em alguns contos, ela aparece como personagem direta, às vezes é apenas mencionada. Essa estrutura de narrativa – um híbrido de conto e romance – é muito interessante. Você narra a história de uma pessoa, mas não faz isso de forma linear.
Viva o povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Este é um dos meus livros brasileiros favoritos. A prosa de João Ubaldo é de derreter os olhos mas, mais do que isso, o grande trunfo do romance é traduzir, de forma poética, a existência do Brasil. É um livro imprescindível, principalmente no contexto atual, para entender o país.
A visita cruel do tempo, Jennifer Egan. Este é um exemplo de livro que não me pegou de cara, mas no fim me nocauteou. Está na minha prateleira de favoritos. Jennifer Egan constrói uma narrativa em se centrar em uma só história, mas em várias, de uma rede de pessoas que compartilham passado, presente e futuro juntas. É um livro sobre o limiar do tempo, sobre a coisa que ele faz conosco, de nos modificar tão profundamente ao longo da vida. É belíssimo.