Fabiana Rodrigues Barletta é professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Normalmente, começo meu dia com um café bem forte. Quase sempre leio pela manhã, mas não faço necessariamente leituras jurídicas. Minha rotina matinal consiste em buscar notícias sobre os vários assuntos que me interessam nos jornais ou preparar as aulas que ministro na UFRJ.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo de forma mais eficiente na parte da tarde. Utilizo a manhã para procurar notícias, anotar o que achei importante nessas notícias, nas leituras dos livros que adquiri com o tempo, nos artigos jurídicos da Revista de Direito do Consumidor ou noutros online, nas decisões dos Tribunais Superiores, notadamente das Turmas do Superior Tribunal de Justiça que julgam Direito Civil e do Consumidor, disciplinas que leciono e matérias sobre as quais pesquiso e escrevo.
Sim, tenho um ritual que consiste em ler e observar o assunto em vários meios de comunicação e expressão. Por isso também, até mesmo pelo celular, fotografo o que li e gostei, salvo o que acho cabível esteja na rua, na universidade ou onde resido. Anoto minhas ideias durante um longo tempo em cadernos customizados tipo Moleskine, pelos quais tenho muito gosto! Neles também anoto à mão referências bibliográficas que compreendi interessantes e oportunas de acordo com o assunto pesquisado. Depois, seleciono tanto as que posso e devo adquirir, bem como outras demais, relacionadas à pesquisa, das quais irei em busca nas bibliotecas. Algumas vezes, quando estou em casa e ao computador, anoto linhas avulsas e guardo. Quando não me sinto preparada para escrever coerentemente sobre um tema, concatenando bem as ideias, guardo comentários não desenvolvidos a ponto de não se tornarem artigos por anos. Por conta disso, meu processo de iniciar a escrita costuma ser lento.
Sou uma curiosa, muito mais desorganizada na coleta de dados do que gostaria de ser. Por isso, antes de começar a escrever, meu ritual consiste em me organizar. Passo a juntar o material antigo e recente que coletei sobre o tema e, ao fazer uma arrumação nas gavetas onde coloquei as anotações, nas pastas físicas nas quais junto o material impresso sobre o assunto, separo o que não será utilizado, o que será descartado e o que estará a todo tempo ao meu lado durante a escrita. Possuo em casa uma pequena biblioteca com livros adquiridos ao longo dos anos, que consistem em meus marcos teóricos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados. Jamais consegui escrever todos os dias, pois sou uma pessoa crítica, que não gosta imediatamente do que escreve. Logo, escrevo um pouco e arquivo. Volto a escrever quando penso que estou com o assunto mais amadurecido. Aí não só escrevo além, como também reviso o que já havia escrito. Passo um bom tempo nessa revisão cada vez que volto ao artigo que, quando pronto, ganha contornos não imaginados ao fazer o sumário.
Preciso de “inspiração” para escrever. Assim, entrevisto pessoas que trabalharam com o tema a respeito de como é a sua vivência na prática. Tais entrevistas não possuem o rigor de uma pesquisa empírica, já que o que faço é conversar, pois, dessa maneira, o sujeito do direito tutelado ou o profissional que trabalha com o objeto estudado têm liberdade para me colocar o que acham importante sobre o assunto e, no papel, levo em conta essas experiências, esses olhares. Movo-me a partir disso, do que ouço nos congressos e seminários dos quais participo e das artes que tratam do tema de uma maneira realista, como a literatura e o cinema.
Sei que um estudo que se proponha científico não parte da criatividade, mas se pauta em dados e fatos concretos, que devem ser postos e analisados numa perspectiva honesta com os marcos teóricos e com as demais referências. Portanto, claro que faço as demarcações teóricas segundo a metodologia da pesquisa. Mas, em função dessa característica pessoal que necessita estar motivada para escrever, me debruço sobre o tema de uma maneira densa, até que eu me sinta suficientemente envolvida para colocá-lo no viés jurídico, de acordo com as linhas de pesquisa sobre as quais me dedico há anos, desde o mestrado.
Quando se trata de um trabalho longo, como revisar um livro ou escrever outro, trabalhar sob a pressão de metas diárias ou sob a pressão da editora não me ajuda nem um pouco. Já desisti de atualizar um livro por isso e há um trabalho específico que fiz sob a pressão de meta diária da editora do qual não gostei justamente por causa disso. A vida acadêmica exige aulas expositivas, elaboração e correção de provas, orientação de monitores, orientação de pesquisas de toda ordem.
Com relação às metas diárias em trabalhos mais curtos, quando há um termo final para sua entrega, embora não lide bem com elas, consigo cumpri-las. Nesses casos escrevo o que me é solicitado e tenho me surpreendido bem com textos que fiz para capítulos de livros e comentários publicados em revista especializada, dos quais gostei muito de fazer, embora os tenha colocado de uma maneira bem mais sucinta que de costume.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo apenas se noto que, de alguma forma, mesmo que pouco, posso contribuir em prol de uma ideia, dos estudos de outras pessoas ou de um determinado grupo de pessoas tuteladas pelo Direito. Há quem escreva sem a preocupação de serem lidos ou de serem úteis. Escrevo também para mim, mas, muito mais, para quem se interesse pelo meu trabalho; por isso a necessidade de estar convencida de que o tema é bom ou de que o estudo vá contribuir para o trabalho de outras pessoas.
Começar nunca foi fácil no mestrado, no doutorado e também hoje em dia. Acreditar que compilei notas satisfatórias e que tenho densidade suficiente na compreensão do referencial teórico a fim de iniciar é o mais difícil para mim. Logo, meu processo de escrita depende muito de eu confiar que realmente tenho uma pesquisa a apresentar e não meras impressões. Como escrevo aos poucos, na medida em que vou escrevendo abandono algumas notas, colho outras, vou escrevendo e pesquisando, de modo que se não possuir, em termos de notas, o que considero aceitável – embora isso possa mudar e comumente mude ao longo do artigo, – não consigo começar. Logo, o menos difícil no trabalho de escrever é sair das notas para a escrita, esse movimento é relativamente fácil se estou segura do cabedal teórico juntado. Difícil é escrever efetivamente, encontrar as melhores palavras, a melhor sequência de ideias. Escrever exige talento e bastante esforço. O talento tem que ser cultivado com esforço.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A carreira de pesquisador sempre anda junto com a de professor nas instituições públicas federais brasileiras. Desse modo, considero naturais as travas na escrita. Ensinar, pesquisar e escrever são tarefas que nem sempre dialogam, pois, naturalmente, um estudo aprofundado não pode ser transportado para uma aula de graduação, onde ainda leciono a maior parte do tempo. Desse modo e pelo fato de a vida no Rio de Janeiro ser, em si, complexa, pelo longo trajeto ao trabalho, entre outras demandas da carreira de professora/pesquisadora em tempo integral, tenho me desculpado pelas travas e pela procrastinação, pois é bastante difícil nesse contexto ler e escrever todos os dias e ter um bom trabalho, no nível de exigência que sempre tive.
Embora primar pela busca do perfeccionismo tenha se tornado cada vez mais difícil, em virtude, inclusive, das cobranças externas quantitativas, procuro me “acalmar” lembrando de que todos nós, pesquisadores, “estamos no mesmo barco” e, por isso, creio que com o tempo possamos descobrir um modo – não de acabar com tais ansiedades, expectativas, travas e procrastinação, mas de aprender a conviver com elas, por meio da cooperação mais profícua entre colegas. As experiências de trabalhar com os colegas que já tive foram, sem sombra de dúvida, as mais felizes da minha vida, pois os anseios se dividem, as responsabilidades tornam-se de ambos, há com quem discutir o tema, sanar dúvidas, dividir alegrias e tristezas em todos os momentos do trabalho. As apresentações e publicações são motivo de alegria compartilhada. Sou eternamente grata aos professores com quem tive felizes parcerias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre reviso meus textos. Perco a conta de tantas e quantas são as vezes em que reviso, em virtude de, como já disse, escrever não ser algo fácil para mim, e, pelo contrário, demandar grande esforço de concentração não só na escrita em si, mas na pesquisa adequada das referências, nas assertivas colocadas ao longo do texto, na concatenação das ideias apresentadas, nas conclusões às quais chego.
Não é comum que mostre meu trabalho aos meus colegas acadêmicos antes de publicar. Sei que o tempo deles é escasso, assim como o meu. O que hoje costumo fazer é pedir aos amigos que não seguiram a vida acadêmica para lerem meus textos e opinarem. Porém, sempre que possível, antes e durante um trabalho, procuro discutir com colegas o tema. Quando tenho parceria não há a dificuldade de suportar todos os ônus de um artigo de minha única e exclusiva autoria.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho dificuldades com a tecnologia. Muitas vezes expresso-me melhor com a caneta. Nunca consegui fazer sequer um sumário no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Embaso-me sempre em fontes bibliográficas. Diria que me manter atualizada depende, oitenta por cento das vezes, das leituras que faço. Por isso tomo o cuidado de manter a habitualidade na leitura, não só de material jurídico, na área do Direito Civil e do Direito do Consumidor, mas também nas sendas do Direito Constitucional, da Sociologia, da Filosofia, da Política, ou mesmo da Literatura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Ganhei mais segurança ao escrever, mas a maneira de escrever continua parecida, desde o doutorado. Centralizei, definitivamente, meus escritos na temática do Direito Civil e no Direito do Consumidor. Minha tese de doutorado publicada pela editora Saraiva, no ano de 2010, “O Direito à Saúde da Pessoa Idosa”, toca na temática Civil e Consumerista na parte dos Planos de Saúde, que continuo estudando, mas abarca também estudos de Ciência Política e de Direito Constitucional que não têm sido o foco de minha produção recente, embora seu conteúdo seja muito importante para o desenvolvimento de todo e qualquer texto jurídico que eu me disponha a fazer.
Se pudesse voltar atrás ao escrever a tese de doutorado talvez pedisse a mim mesma mais confiança e menos cobranças. Contudo, quando percebo que a academia exige sempre novas aptidões, olho para trás e vejo que fiz o correto, pois, se estivesse confiante demais, talvez não tivesse dado o meu melhor buscando conhecimento e justificativas em áreas ecléticas, o que foi muito cansativo, mas me preparou para a vida no ambiente acadêmico.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dez projetos listados que não comecei. A vida é muito acelerada. Um projeto não listado que adoraria me permitir seria o de viver mais os prazeres cotidianos da vida e não viver tanto tempo sentada. A saúde de minhas costas já anda comprometida por isso.
Por outro lado, como não sou unidimensional e pelo fato de o trabalho também ser fonte de prazer em minha vida, me interessa imensamente acabar de atualizar e publicar meu livro “A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor”, também publicado pela editora Saraiva em 2002, que escrevi há quinze anos atrás, porque até hoje pesquiso essa temática que não morre. A revisão dos contratos por onerosidade excessiva no momento de sua formação ou da sua execução continua um tema importante e em voga, com novos contornos legais após o Código Civil de 2002, justamente o ano em que terminei a dissertação de mestrado.
Gostaria também de ler um livro que tratasse de todos os tipos de vulnerabilidades existentes no mundo contemporâneo. Como esse tema é relativamente novo no ambiente do Direito e tais vulnerabilidades tenham sido há pouco identificadas e reconhecidas em decorrência da sociedade de massas e em rede face ao do avanço da tecnologia, da biotecnologia, de outras ciências e, sem sombra de dúvidas, por conta das mudanças sociais e de valores, creio que ainda não exista quem tenha escrito sobre todas elas com profundidade.