Fabiana Cristina Severi é professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral, acordo bem cedo e as atividades acadêmicas, dentre elas a escrita, começam apenas quando eu ou meu marido deixamos nossa filha, hoje com três anos, na escola. Em dois dias da semana há certa regularidade no que faço: dou aulas e tenho reuniões com os grupos de pesquisa e de extensão. Nos demais, não tem sido fácil encontrar tempo de dedicação exclusiva à escrita. Para que ela aconteça, preciso negociar tempo e atenção com outras dimensões de exigências da universidade, com as atividades de militância e com as demandas de cuidado de minha filha. Para simplificar essa negociação, opto quase sempre por escrever acerca de temas e reflexões que brotam desses vários campos. Ao ter na escrita um modo de entrelaçar as diversas realidades em que transito, tenho conseguido criar um espaço mínimo de preservação de autonomia e de autocuidado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A regra tem sido não conseguir ter rotina. Identifico apenas um pequeno ritual de preparo do ambiente físico em que trabalho, sobretudo antes de iniciar um trabalho que me exigirá maior fôlego. Gosto de limpar a mesa e manter sobre ela apenas as pastas em que fui reunindo textos e registros para o projeto em mente. Essa organização inicial, frequentemente, sucumbe a um vendaval de outros textos que vão sendo mobilizados enquanto a escrita acontece e se misturam com outros documentos que vão aparecendo ao longo do dia, disputando centralidade em meu cotidiano. Ultimamente, também não tem sido incomum me surpreender com a presença de enormes garatujas colorindo minhas anotações. Quando finalizo o texto, é hora de limpar a mesa novamente e oferecer um destino minimamente digno para todo o material empilhado. Distribuo muitos dos textos usados entre as orientandas e orientandos. Já as folhas que tiveram a sorte de servir de tela para Olívia são promovidas à obra de arte e ganham lugar na parede do escritório. Romantizar a maternidade é nosso ópio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Uma parte significativa da minha escrita acontece combinada ao processo de orientação de estudantes e de interlocução social com vários grupos e movimentos sociais em que realizamos assessoria jurídica popular ou dos quais participo. Então, diariamente estou trabalhando em diversos textos de produção individual ou coletiva, que não necessariamente são artigos científicos ou livros acadêmicos. Nos grupos de extensão e de pesquisa dos quais participo, há escritas miúdas, mais cotidianas, como: comentários sobre textos que lemos coletivamente, ensaios, pequenas análises de dados, registros em diário de campo, cartilhas informativas e peças processuais ou administrativas. Vamos compartilhando esse material entre nós, de modo a tornar a escrita uma experiência cotidiana de comunicação e de ampliação de nossa disponibilidade para o diálogo crítico. Nem todo o material produzido circula para além dos próprios grupos, mas ele também acaba dando suporte para que trabalhos mais longos (artigos, livros e relatórios) amadureçam. Para executar esses trabalhos mais longos, daí sim, preciso de períodos de maior concentração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Vou recolhendo fichamentos de leitura, anotações, diários de campo e cópias de algumas das referências bibliográficas, até que eu consiga uma razoável afinidade entre esse material todo e os argumentos que pretendo desenvolver. Nesse percurso, estou sempre conversando sobre o projeto com colegas e com discentes. A sala de aula, os seminários e eventos acadêmicos também são espaços importantes de diálogo. Bom, e apesar de viver conjurando os prazos, eles têm sido imprescindíveis para que alguns trabalhos sejam finalizados.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ao tentar incentivar estudantes a lidarem melhor com suas travas na escrita, tenho compreendido e administrado melhor as minhas. O curso de direito nos ensina desde muito cedo e de modo bem eficiente, a reproduzir uma série de idiotices que inviabilizam a elaboração de um bom texto, como: usar os verbos no impessoal para simular objetividade; trazer o mínimo de referências bibliográficas ao texto para arrogar originalidade; exagerar nos conectivos, disfarçando a falta de coesão entre os argumentos; trazer expressões em latim ou outros recursos que falseiam erudição e ignorar as características da pessoa que se quer como destinatária. Penso que o que estou nomeando de idiotices não são apenas vícios ou marcas desgastadas de um estilo técnico. Elas funcionam como dispositivos que delimitam o lugar de cada indivíduo no regime hierárquico de poder das relações sociais na academia e, mais tarde, na vida profissional. O que chamamos de travas na escrita, então, pode ser compreendido em um quadro mais amplo de tensões entre adaptação e resistência a vivências autoritárias das quais o tipo de escrita que ali acontece é uma expressão. Para explorar melhor esse argumento, indico dois textos: Educação após Auschwitz, de Theodor Adorno e Educação jurídica como preparação para a hierarquia, de Duncan Kennedy. Também sugiro a leitura de algumas feministas que nos auxiliam a desaprender o “juridiquês” e a perceber o caráter libertador que pode ter a escrita, como Gloria Anzaldúa [1], Bell Hooks [2], Rita Laura Segato [3] e Lélia Gonzalez [4].
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso quantas vezes o prazo de publicação a ser cumprido me permitir ou até ficar um pouco saturada, achando que chegou o momento dele seguir seu caminho. Peço, sempre, para colegas lerem e tento fazer circular versões prévias do trabalho em seminários que frequento ou em disciplinas que ministro. Depois que um texto foi publicado, seus argumentos passam a me acompanhar e são sempre confrontados por outros argumentos e por novas leituras ou empirias. Começo, então, outro tipo de revisão da qual surgem, na realidade, novos textos. Por isso, sempre considero um texto pronto como um ensaio ou um ponto de partida para um novo trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador e acredito manter uma boa relação com os recursos tecnológicos mais usuais no ambiente acadêmico. Todavia, não dispenso o hábito de fazer rascunhos e alguns tipos de registros em cadernos. Sinto que o ritmo da escrita à mão guarda melhor relação com o ritmo do pensamento. Quando quero, por exemplo, organizar a sequência dos argumentos de um texto, esboçar um mapa de leituras a serem realizadas ou delimitar melhor o objetivo de um projeto em desenvolvimento, prefiro caneta e papel. Mais recentemente, também tenho usado o gravador de voz do celular para fazer diários de campo ou registros de alguns estalos que aparecem sem aviso prévio ao longo do dia e nas situações em que não disponho de outro recurso para capturá-los antes que desapareçam da memória.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Apreendo-as nos espaços em que transito: nas atividades de assessoria jurídica popular, nas lutas políticas nas quais me envolvo fora e dentro da universidade, na sala de aula, nos espaços domésticos ou de vínculos afetivos e nos lugares de interlocução social. Penso na escrita como uma oportunidade para refletir mais profundamente sobre as outras dimensões de ação social que experimento ou pelas quais me sensibilizo. Todavia, procuro cultivar uma relação de estranhamento e de desconfiança recíproca entre a reflexão teórica, materializada na escrita, e a prática social, vivida ou observada. Também guardo enormes suspeitas com relação a todo tipo de exigência que me interpela em nome das leis da emergência. Sem essas cautelas, acho que acabamos produzindo apenas panfletos, que podem até nos ajudar a aumentar nosso ibope no mercado intelectual, mas em quase nada contribuem com a produção da crítica social ou com a realização das transformações sociais que as motivam.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Escrever textos acadêmicos, especialmente no campo do direito, nunca foi apenas uma questão desafiante, mas sim algo vivido, frequentemente, como ameaça. Nesse sentido, a mudança maior aconteceu recentemente, durante a elaboração da minha tese de livre docência. Muitas inseguranças que me atormentaram nos processos de escrita de trabalhos anteriores, encontraram pouca morada dessa vez. Também consegui desenvolver os argumentos a que me propus em uma linguagem direta, enxuta e em primeira pessoa do singular. Algo que colaborou com essas mudanças foi o contato profundo que fiz com a bibliografia feminista nos últimos anos. Talvez, outro fator tenha sido a necessidade de conciliar a escrita com as demandas da maternidade, que acabou por suprimir qualquer reserva a demoras desnecessárias em alguns dos argumentos ou nas fontes bibliográficas. Com essa última afirmação, eu não estou recomendando a maternidade/paternidade como técnica para melhoria da escrita. A afirmação aqui apenas me fornece outro ensejo para reiterar o quanto é necessário à academia comprometer-se, seriamente, com a eliminação das desigualdades de gênero, de raça-etnia e de classe social que permeiam as relações sociais e o modo de produção do conhecimento em seu interior.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de publicar livros didáticos voltados para a graduação em direito, mesmo sabendo que no mercado editorial brasileiro o que não faltam são manuais. Sobre os livros que gostaria de ler e que não existem, acho que poderíamos pensar na construção de uma antologia com traduções de críticas jurídicas feministas e com reedições de textos de juristas feministas brasileiras. Seria parecida com uma publicada recentemente pela EDUFAL, com traduções de estudos acadêmicos e literários de crítica feminista, organizado por Izabel Brandão, Ildney Cavalcanti, Claudia de Lima Costa e Ana Cecília Lima sob o título: Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Bem, e há alguns autores que releio frequentemente, como Guimarães Rosa e Walter Benjamin.
[1] Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo (tradução livre do título no original).
[2] Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade (tradução livre do título no original).
[3] Frente ao espelho da rainha má, docência, amizade e autorização como fissuras decoloniais na universidade (tradução livre do título no original).
[4] Racismo e Sexismo na Cultura brasileira.