Evelyn Blaut Fernandes é pesquisadora, crítica literária e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo muito cedo, antes de amanhecer, tiro um café e sento para escrever, o que não significa que de fato escreva todos os dias, mas todos os dias, ou quase, sento para escrever ou com a intenção de escrever que começa sempre com leitura. Este começo é lento e sonolento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo pela manhã, mas o trabalho pode se alongar pelo dia. As melhores horas e as mais produtivas são as mais solitárias e silenciosas. O ritual – não sei se isso é um ritual – envolve leituras prévias e paralelas ao que penso que quero escrever. Faço uma pré-seleção de livros que ficam ao meu lado na mesa. Nem sempre os abro todos, mas eles estão ali e fazem parte do processo que frequentemente pode incluir alguma música e algo para beber.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já escrevi em períodos concentrados, hoje, quando estou desenvolvendo um projeto, procuro me dedicar à escrita diariamente. Costumo estipular metas. Num bom dia de trabalho, posso ultrapassar a meta idealizada; em outros, a melhor coisa a fazer é sair e correr, o que não é mau; continuo, de todo modo, ligada à escrita, ainda que pelo seu negativo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Durante muito tempo, sequer escrevia os textos, preferia esquecer a escrever. Depois, passei a fazer pequenos registros em pedaços de papel higiênico – talvez fosse uma forma de profanar a escrita e também uma maneira de elaborar o meu gosto pela profanação. Hoje, já há algum tempo, o processo de escrita envolve leitura, releitura e reescrita. O ciclo diário vai da obsessão à procrastinação, do planejamento à descoberta do momento, do insight ao desvio. Às vezes escrevo o que era suposto escrever à medida que escrevo, às vezes é possível incorporar as anotações soltas que antes eram apenas anotações e formar um corpo coerente, às vezes copio trechos de livros e reescrevo a minha própria escrita ou a escrita de outros, às vezes rabisco linhas e parágrafos inteiros de livros ao invés de sublinhá-los, mas o processo de escrita envolve principalmente reescrever e tomar decisões. Em algum momento do processo acredito que descobri ou consegui alguma coisa e, no dia seguinte, quando sento à mesa antes de amanhecer descubro que não sei mais nada. Este é o processo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não há expectativas exteriores ao texto, as expectativas são demandas do próprio texto, as questões que ele próprio levanta e que, às vezes, podem ser de difícil solução ou mesmo paralisantes. Por isso, é natural que o processo de escrita vá da ação à procrastinação ou simplesmente à falta de ação, aos recuos, às pausas, ainda que elas não sejam muito comuns, e depois retorne à ação. Gosto de pensar nas regras que invento para cada processo, na fabricação de estruturas, na elaboração de cada etapa e nos ajustes que vão se tornando necessários. Além disso, sinto prazer em fazer, em concluir e em ver concluída cada etapa do processo, especialmente quando alcanço algum descolamento, que é quando já sinto como se não tivesse escrito aquilo. Isso também me dá um grande prazer.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é das partes mais obsessivas e exaustivas do trabalho, porque a revisão nunca é apenas uma revisão, ela faz parte, ainda que de modo minimalista, do processo de reescrita. Por outro lado, o fim da revisão decreta a conclusão do trabalho, o que, algumas vezes, pode torná-la ainda mais obsessiva. Mas como me é muito cara e imprescindível a ideia da reescrita e da (auto)apropriação, a consciência de que não há nada perfeito ou completo ou irretocável acaba também por ir dissipando a obsessão pela revisão. A intenção da revisão obsessiva funciona para mim como uma maneira de tentar ver o texto minimamente de fora. Muitas vezes, tenho a sorte de poder contar com olhos atentos e amigos que colaboram nesse mesmo sentido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Se precisar fazer alguma anotação, na rua, por exemplo, e não tiver acesso ao computador, anoto à mão, caso contrário vai tudo direto para o computador. Além disso, o computador dá a liberdade de escrever com cortes, cópias, colas e deslocamentos, que é como escrevo. Outra ferramenta, o celular, dá a oportunidade de tirar fotos não só de textos mas de qualquer imagem que possa ser revisitada mais tarde, sendo utilizado como uma espécie de moleskine tecnológico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tudo isso a que chamamos ideia, e que aqui preferia chamar vontade ou necessidade de escrever, vem sobretudo da leitura, não só da leitura de livros, mas da leitura do mundo e fundamentalmente da leitura de si mesmo, do saber e do querer ler-se. A ideia, portanto, vem da própria vida, mas não necessariamente dessa vida que convencionamos chamar biográfica ou autobiográfica, a ideia vem do eu, do que quer que seja que nos mobilize a fazer a escrita, uma curiosidade, um desafio, um poema, uma separação, se aquilo nos mobilizou a escrever, a ideia vem forçosamente do eu.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Gosto da mudança, gosto de perceber as mudanças nos textos tanto pelo distanciamento no tempo quanto pela diferença de estilos – artigos, ensaios, ficção. Mas também gosto de revisitá-los e transformá-los em algo diferente do que era, por exemplo, há dez anos. Para mim, é importante perceber a distância e a diferença da escrita que só o distanciamento poderia me proporcionar. Portanto, eu não poderia dizer nada a alguém que já não existe, tudo o que posso fazer é continuar escrevendo e reescrevendo, assim como posso decidir não escrever mais.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Às vezes escrevo para ter o que ler, gosto de ler que alguém escreveu algo para ter o que ler, como se essa escrita-leitura fosse uma espécie de alimento. Os livros futuros são resgates do passado que, na melhor das hipóteses, são transmutados a tal ponto que já não nos damos conta de que falamos sempre da mesma coisa. No fundo, continuamos buscando formas diferentes, inovadoras se possível, para abordar e elaborar os mesmos temas que insistem em nos perseguir e obcecar.