Eveline Teixeira Baptistella é professora de Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nunca pensei nisso, mas acredito que tenho uma rotina sim. Na verdade, dificilmente escrevo no período da manhã. Geralmente, alimento meus cachorros e brinco com eles. Depois, sempre tomo café lendo as notícias. Sou professora de jornalismo na Universidade do Estado de Mato Grosso, então é importante estar por dentro de tudo que está acontecendo. Esse é um hábito de geração para geração mesmo. Tanto minha avó quanto meu pai faziam questão de ler o jornal todos os dias. Em seguida, costumo reservar as manhãs para preparar aulas, atender alunos e outras atividades ligadas à docência e aos projetos de extensão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho essa pergunta muito pertinente, pois sinto que minha produtividade está muito relacionada com os horários em que trabalho. Acho que se o pesquisador tem possibilidade de escrever no turno em que se sente melhor, tudo flui mais facilmente.
Com certeza, meu melhor rendimento é na madrugada. Quando mais jovem eu passava as noites em claro escrevendo.É um período em que você tem pouquíssimas interrupções. Nada de telefone tocando, pessoas mandando mensagens. Dificilmente vai surgir um imprevisto. Mas com a idade passei a trabalhar durante o período vespertino, até por que dou aulas de noite. Além disso, ficava muito cansada. Decidi mudar o horário de escrita para preservar a saúde.
Em relação à preparação, não tenho um ritual específico. Apenas procuro olhar e-mails e tentar resolver pequenas tarefas logo no início da tarde. Depois, busco desligar as redes sociais para não perder o foco.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não tenho metas diárias por que há dias em que tudo dá muito certo ou já tenho todos os dados levantados e consigo escrever bastante. Em outros momentos, vejo que preciso de uma determinada informação e posso levar até mesmo uma tarde toda em busca dos dados, por exemplo. Tanto no mestrado, quanto agora, no doutorado, eu passo por períodos de escrever concentradamente para cumprir prazos – o que não considero o ideal. Vejo que o fundamental, para mim, é ter um contato diário com o texto. Então, dedico sempre um período do dia para escrever. Mesmo nos dias em que as atividades como professora me exigem dedicação total eu reservo alguns minutos para escrita. Tento manter essa rotina também nos finais de semana. Sinto que isso mantém meu fluxo de pensamento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho importante contar que sou formada em jornalismo e atuei na área por 15 anos. Assim, eu venho de uma profissão na qual a escrita é uma atividade diária. Eu tenho a característica de escrever bastante. Na época de colégio e na graduação em jornalismo esse era um aspecto bastante valorizado. Hoje, vejo que há uma rejeição a textos muito longos e até quando escrevo artigos científicos tenho dificuldades com o limite de conteúdo. Muitas revistas limitam os artigos entre 11 e 15 páginas. É uma luta. Como forma de equilibrar meu estilo com essa realidade, meu processo é de escrever bem livremente, colocar no papel tudo que eu achar necessário. Depois, faço um trabalho de edição e vou tentando enxugar os excessos. Fui editora de texto, então acho mais fácil ir cortando depois de pronto. Algumas vezes, um único texto pode ser desmembrado em dois artigos, por exemplo.
Quando era jornalista buscava escrever imediatamente depois de apurar as informações, mesmo quando tinha mais prazo para produzir o material. Acho que assim é mais fácil redigir, você ainda está com tudo vivo na memória. Quando entrei para a pesquisa científica precisei rever minhas práticas. Principalmente por que é impossível escrever sem ter um conjunto muito maior de dados. Me sinto mais confortável fazendo o que chamo de esqueleto: durante o campo e a pesquisa bibliográfica, monto uma estrutura de capítulos e já vou prevendo em qual lugar cada conteúdo, cada informação vai entrar. Aprendi isso com meu orientador na graduação e, quando voltei para a academia, retomei esse modelo. O resultado final nem sempre é igual ao esqueleto, mas ele vai me dando segurança para trabalhar.
Eu vivia uma grande angústia de passar um longo período acumulando dados e lendo. Para não sofrer com a dificuldade de começar, criei o que chamo de “caderno de conversa”. É um lugar no qual a Eveline que está no campo vai deixando informações e orientações para a Eveline que vai escrever. Uma conversa comigo mesma.
Eu divido o caderno seções variadas: capítulos, temas importantes, metodologia, ideias principais dos autores lidos e onde elas podem ser usadas, pequenos trechos de texto que vou adiantando. Então, ao longo do trabalho que antecede a escrita, eu vou fazendo essas anotações e não corro o risco de perder nenhum insight que surgiu no campo ou durante a pesquisa bibliográfica. Quando começo a escrever, já vou dialogando com as notas. É bem mais tranquilo para mim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Vejo que enfrentei uma adequação entre ser jornalista e ser pesquisadora. Como jornalista, meu trabalho era muito mais imediato. Os deadlines são muito apertados. É preciso fazer um trabalho bem feito, mas não se pode entrar na espiral de ir revisando, apurando, melhorando até chegar ao que considera ideal. Em um espaço de tempo bem curto, você precisa entregar o seu texto.
Na pós-graduação, você trabalha com um texto maior, uma produção de longo prazo. Penso que isso aumenta a chance de procrastinação. Eu até hoje canso de me perder buscando dados mais aprofundados, diferentes fontes para a mesma informação. Ou então, descubro um novo autor e sinto necessidade de voltar num capítulo concluído para inserir aquela citação, considerar aquelas ideias. Para evitar isso, preciso tentar ser o mais disciplinada possível. Se acho que é algo muito importante, jogo no meu “caderno de conversa” para reavaliar a necessidade de inserção de mais dados na hora em que for fazer a revisão final.
Como jornalista, eu não acredito em inspiração, sinceramente. Num trabalho de escrita diária você não tem como esperar uma ideia genial, uma abertura brilhante, aquela frase de impacto caírem do céu. Querendo ou não, sentindo vontade ou não, eu sento e escrevo. Mesmo que seja uma porcaria. Pois esse “lixo” inicial vai me abrindo o caminho para chegar num texto adequado. Pra mim, o principal é começar.
Sinto que a questão das expectativas é minha maior trava. No jornalismo, passei alguns períodos em que não gostava de nada do que escrevia. Ainda assim, o texto ia para um editor, fazíamos alterações e era publicado. Por isso insisto em escrever, mesmo que esteja sentindo que não estou fazendo algo que acho bom.
Vejo o texto como um artesanato que te dá uma segunda chance. Eu sou péssima para trabalhos manuais, mas quando era mais jovem decidi fazer caixas e latas decoradas. Ficava uma pior que a outra. Eu não pintava direito, aplicava os detalhes sempre mal alinhados. Tentei até uma técnica mais simples, de colar guardanapos decorativos. Nem isso eu fazia direito. Mas depois que terminava, não havia solução. Seria trabalhoso demais lixar a tinta, remover apliques e colagens. Na escrita, você pode se deparar com um texto que não está muito bom, no qual falta coesão ou cujos ganchos são fracos. Mas ele é um “material” que você pode lapidar, reorganizar, modelar até chegar em um produto final muito superior. Algumas vezes até mesmo completamente diferente. Então, essa noção doma minha ansiedade. Eu olho criticamente para o material e penso: “está no papel, se ainda não está do jeito que eu quero é o menor dos males, pois terei oportunidade de revisar e melhorar”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No caso de artigos científicos, eu geralmente trabalho em parceria com outros pesquisadores. Então o número de revisões é menor. Devo reler umas cinco, seis vezes. Mas esse recurso, de revisar, também tem um limite. Chega um momento em que você pode repassar mil vezes e já não vai mais ter resultado, porque não conseguimos ver nossas próprias falhas. É muito importante ter outra pessoa para ler seu trabalho e te ajudar. No meu caso, minha orientadora, professora Juliana Abonizio, contribuiu muito.
Já no livro que lancei agora, “Animais e Fronteiras: um estudo sobre as relações entre animais humanos e não humanos”, posso dizer, seguramente, que foram pelo menos dez revisões. Fora o que há havia revisado antes, pois ele é uma versão da minha dissertação. Ou seja, passou por correções na fase em que era pesquisa de Mestrado. O grande diferencial mesmo foi contar com uma editora/revisora, a Paula Galletti, que fez uma leitura minuciosa do material e que mantinha um diálogo constante comigo. Algumas vezes, eu me sentia literalmente cansada do texto, pois já havia escrito, editado, reeditado, atualizado informações… Ela tinha um olhar novo, diferente.
Eu recomendo a todos que escrevem que tenha alguém para ajudar nesse sentido. Ter outro leitor é fundamental. Algumas vezes, você escreve uma frase e acha que ela está cristalina. Daí, outra pessoa lê e não entende nada. Há uma necessidade de reescrita que você nem havia notado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou muito ligada à tecnologia, mas por indução. Sempre que vejo uma inovação, eu digo: “jamais utilizaria isso”. Daí, meu marido vê potencial no equipamento para ajudar meu cotidiano como pesquisadora e compra para mim. Eu começo a usar meio a contragosto mas depois não quero mais viver sem. Foi assim com o tablet e o e-book, por exemplo. Hoje, só compro livros de papel quando não tenho outra opção. Os dois aparelhos me permitem levar centenas de textos nas viagens de campo. Posso trabalhar mesmo quando não estou na minha cidade. É o mesmo com apps que possibilitam gravar entrevistas, editar vídeos… ele instala, eu começo a usar de má vontade e depois não largo mais.
Quando comecei a escrever, ainda no jornalzinho da escola, meu pai me deu uma máquina de escrever Lettera 22 e me inscreveu num curso de datilografia – que eu também fiz meio obrigada. A condição para usar a máquina era concluir o curso de datilografia. Naquela época, ser datilógrafo era um emprego bem remunerado, então ele também já foi pensando em uma oportunidade profissional para mim. Lembro que se a gente errasse qualquer letrinha, precisava usar corretivo ou escrever tudo de novo. Para fazer cópias, usava-se papel carbono. Eu já queria ser jornalista e daí percebi a importância do curso, pois dominando a datilografia, errava menos, tinha menos trabalho. Na hora de escrever meus textos, era uma beleza, conseguia ir datilografando bem rápido.
Depois, consegui juntar dinheiro e comprei uma máquina chamada Práxis, que era eletrônica. Ela armazenava algumas linhas antes de jogar para o papel e te permitia corrigir num pequeno visor, parecido com aqueles de calculadoras. Acho que foi a única vez em que eu mesma me interessei por algum aparelho tecnológico. Me acomodei bem com ela. Fazia meus trabalhos de faculdade com a práxis até que meu pai conseguiu me comprar um computador. Isso tem mais de 20 anos. Eu detestava, não sabia formatar conforme os professores queriam, nem no modelo da ABNT, não conseguia inserir fotos, fazer tabelas… Mas não queria deixar de usar por que ele havia investido muito dinheiro naquilo, como forma de me ajudar nos estudos.
Daí, eu escrevia meus textos todos no computador e depois ia vendo na tela e digitando na máquina de escrever. Era uma insanidade. Depois de terminar os trabalhos, ainda tinha que “passar a limpo”. Só depois de formada é que fui fazer um curso de word. A partir de então, não tive mais problemas. Gosto muito de escrever no computador. No entanto, mantenho sempre meu caderno por perto, pois vou anotando ideias. Há situações em que estou sem computador e acabo escrevendo alguns trechos no papel mesmo. Minha pesquisa atual teve o Pantanal Mato-grossense como cenário, então eu ficava muitos dias sem computador. Nesse caso, fazia muita coisa no papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Essa é uma pergunta muito interessante. As relações entre animais humanos e não humanos têm sido meu foco de pesquisa nos últimos dez anos. É um trabalho que exige ser bastante observadora, escutar mais do que falar. Muitas ideias surgem nesse processo de observar como as pessoas e os animais se comportam, as trocas comunicativas e afetivas deles. Na área acadêmica, também contribui muito a leitura, pois vou criando na minha mente um diálogo com as teorias que fundamentam a pesquisa. Esse trabalho de quem veio antes de nós dá subsídios para escrevermos melhor e para testarmos nossas ideias. São realmente inéditas? Se sustentam?
Gosto muito de criar contos e pequenos romances como forma de manter a espontaneidade da escrita. Cheguei a fazer alguns cursos de escrita criativa, que me ajudaram demais na escrita científica, já que trabalho com relatos de casos e precisava descrever as cenas observadas de forma clara para o leitor.
Além disso, gosto de uma linguagem simples e objetiva, que seja compreendida por diversos públicos. Não me atraem aqueles parágrafos enormes, truncados, que as pessoas precisam reler quatro vezes e que muitos até desistem de ler. Eu acho importante que nosso trabalho seja acessível. Mas essa simplicidade geralmente é mal vista na academia. Nos cursos de escrita criativa tinha mais liberdade para escrever de forma direta, trabalhar ideias complexas de forma a torná-las mais acessíveis para diferentes públicos. Além disso, fiz uma especialização em jornalismo científico e atuei como editora nessa área por algum tempo. É uma atividade que te força a investigar os objetos mais complexos e depois pensar: “como vou fazer para todo mundo entender isso?”. É algo que te estimula a ser criativo.
Quando penso em trabalhos de ficção, que é algo que eu faço por lazer, as ideias têm como ponto de partida alguma situação que vivi ou alguma reportagem que li na imprensa. Por isso, acho que posso dizer que, de uma forma ou de outra, minhas ideias vêm do cotidiano.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando fiz meu primeiro relatório de pesquisa, lembro que passei quinze dias trancada em casa, sem ver ninguém. Quando entreguei o material, meus amigos fizeram uma festa para me “receber de novo na sociedade”. Eles achavam que a partir daquele momento minha vida seria sempre assim. Eu iria sumir na época de escrever. Eu mesma vi que daquele jeito não daria muito certo.
Sofri muito por insegurança, mas principalmente por falta de método. Passei um ano acumulando dados, mas não pensei no momento da escrita ao longo do processo. Hoje, vejo que me faltava também leitura e disciplina. Quanto mais você estuda um tema, quanto mais aprofunda seu trabalho de campo, mais material tem para escrever. A disciplina foi algo que criei aos poucos, organizando horários para trabalhar, criando um modelo para sistematizar ideias.
A escrita de hoje é fruto de um processo que começou lá atrás e envolve uma série de fatores. Talvez naquele momento eu sequer entenderia práticas que hoje são rotineiras para mim. Penso que cada pessoa é diferente e creio que uma forma de encontrar seu método é ir trabalhando, vendo o que se encaixa melhor.
Sinceramente, acho que se pudesse voltar no tempo, me diria apenas para ser três vezes mais grata ao meu orientador de bolsa de pesquisa, o professor Benedito Diélcio Moreira, pois ele teve toda paciência em ensinar, orientar, fez textos em parceria comigo e me ajudou bastante nessa transição de jornalista para pesquisadora. Sem um bom professor, não teria seguido adiante. Meu maior sonho na vida era fazer Mestrado. Hoje, estou em vias de concluir um Doutorado. Isso parece um pouco cafona, mas não há como não colocar a gratidão e a dedicação no centro de tudo. Sabendo ouvir e se dedicando, as coisas vão fluindo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Olha, algo que quero muito fazer depois de concluir o doutorado é produzir livros infanto-juvenis ligados ao meu tema de pesquisa, tratando especialmente dos direitos dos animais. Vivemos numa sociedade que ainda é muito especista. Apesar dos avanços, encontramos rotineiramente casos de maus tratos. Em muitos lugares a farra do boi, por exemplo, ainda é uma realidade. Há vários grupos que defendem a caça de animais silvestres. Penso que as próximas gerações é que podem mudar esse quadro, por isso gostaria de trabalhar nessa seara.
Eu sou uma leitora compulsiva, não sei dizer se realmente existe algum livro que ainda não existe – olha que truncado! Com toda certeza, gostaria de ler mais e mais livros do Gabriel Garcia Marquez. Quando era adolescente, me dei conta que um dia ele morreria e eu ficaria sem nenhum inédito. Daí, passei a “racionar” os livros dele. Lia apenas um a cada dois anos, mas conforme minha própria vida foi avançando, essa provisão se esgotou. Como seria bom que grandes autores vivessem para sempre. Não sei se seria justo com eles, mas certamente seria maravilhoso para nós.