Evandro Piza Duarte é professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto dos ciclos semestrais das faculdades, pois eles permitem ter rotinas e, ao mesmo tempo, mudar a rotina no curso da vida. Costumo acordar cedo, mas sempre repito Vinícius de Morais “a manhã não gosta de ver ninguém bem”. Evito atividades coletivas nesse período. Quase sempre executo as tarefas domésticas pela manhã e saio para uma cafeteria.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral, escrevo fora de casa. Preciso sair para manter uma rotina de trabalho. Somente à noite escrevo aqui. Em casa, trabalho de outra forma, mando e-mails, corrijo, cumpro as demandas burocráticas etc. É no final das manhãs em que há uma escrita acadêmica. Necessito do distanciamento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha escrita é marcada por minha condição física. Sou portador de distonia cervical, uma modalidade de transtorno de movimento que dificulta a sincronização de muitos dos meus movimentos vinculados à escrita e me impõe uma rotina diária de dor física.
Meu pescoço gira para a direita e para trás em movimentos contínuos que variam conforme a aplicação de medicação na musculatura e da meteorologia dos neurônios que, como toda meteorologia, não é uma ciência muito exata.
Logo, tudo o que escrevo e como escrevo depende de meu corpo. Paro várias vezes para distender a musculatura. A depender do dia, erro os alvos, xícara boca, xícara mesa, xícara chão… Costumo utilizar remédios para dor. Como a medicação provocava sono, criei o hábito de trabalhar em lugares públicos onde não posso dormir. Em meus momentos de crise ou quando a medicação aplicada ao músculo diminui os efeitos, meus movimentos aumentam, causando estranheza. Na história, a distonia foi associada equivocadamente à loucura e ao alcoolismo. Logo, para ficar confortável, escolho preferencialmente os mesmos lugares nos quais os funcionários me conhecem pelo nome e já sabem dos rituais cotidianos de movimentos que podem surgir.
Contraditoriamente tenho obsessão pela escrita. Gosto de escrever todos os dias. Não sei como seria não poder escrever. Escrever é um modo de ser. Não me interessa se será publicado ou não. Escrevo trechos que não serão publicados, mas que precisam ser escritos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Do ponto de vista operacional, as dificuldades são diversas. Ao copiar uma nota, posso gastar toda a minha energia e tempo de não-dor, um tempo muito produtivo para ser desperdiçado. Por isso, especialmente na escrita acadêmica, busquei pessoas que pudessem copiar notas, trechos de livros, evitando digitar as citações. Infelizmente, isso tem um custo e, portanto, limites econômicos.
Quanto ao conteúdo, em boa medida, escrevo aquilo que falo ou converso com as pessoas com as quais pesquiso. Sempre estou anotando algo, marcando numa conversa o que pretendo dizer. Quase sempre é do debate da pesquisa ou do argumento que uma estratégia de texto surge. Acho que disciplinas sobre temas de pesquisa são um ambiente fértil de ideias, especialmente quando se suspende os beija-mãos comuns nas faculdades.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Detesto prazos. Estou sempre devendo algo, o que é muito absurdo. Já li alguns textos tematizando esse problema. As novas formas de gestão do trabalho impõem um extração ainda mais intensa das potencialidades criativas dos trabalhadores. Trabalhar com alegria e produzir coisas novas. Trabalhar toda hora. Eliminar as fronteiras entre trabalho e não trabalho. Como vamos suportar tudo isso? Não sei. Evito que me imponham prazos. Busco projetos de pesquisa em que minhas escolhas subjetivas, afetivas e políticas possam pesar no uso de meu tempo de vida. Com isso, as travas da escrita diminuem um pouco. Além disso, gosto da afirmação de Hobbes segundo a qual a inteligência é uma ilusão de ótica. Quem vê todo dia, e de perto, a sua inteligência se considera muito e em demasia. Excesso de expectativa é o avesso doentio dessa ilusão. Como disse, gosto de aprender com as pessoas. Conversar sobre o que pretendo escrever me parece uma estratégia essencial para a escrita e, sobretudo, para a compreensão da pesquisa.
Tenho conversado com jovens pesquisadoras e pesquisadores. Espaços acadêmicos são vividos e descritos como lugares de intenso estresse. Talvez isso decorra do fato de que somos julgados o tempo inteiro pelo nosso desempenho e, ao mesmo tempo, porque nosso trabalho tem (ou pareça ter) uma dimensão muito pessoal. Entretanto, essa característica mais geral não é capaz de explicar as pressões e as violências sofridas em decorrência do racismo, do machismo, da heteronormatividade compulsória e da segregação social presentes nos espaços acadêmicos de pós-graduação. O racismo, o machismo e a heteronormatividade compulsória estão por toda parte. A começar pelas etiquetas acadêmicas sobre como falar, o que se pode dizer, as sanções e as ameaças que estruturam e constituem os sujeitos nesse lugar. Homens brancos heteronormativos gritando e fazendo ameaças constituem o tipo social ideal da academia brasileira. O que é um erro grave como projeto de sociedade e de vida.
O caráter autoral de um texto, as dimensões de ataque, direto ou indireto, às subjetividades não dominantes, as práticas acadêmicas que incentivam o individualismo e a solidão intelectual, e as pressões materiais da vida produzem um cenário para a eclosão de angústias e sofrimentos que impedem a plena realização de potencialidades de muitas pessoas.
Acho que devemos lidar com isso de vários modos, mas especialmente num processo de transformação dessas relações de poder.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do texto, do tipo de texto e da finalidade de sua publicação. Há textos que têm vinte anos e não foram publicados, faltou oportunidade e desejo. Há textos, especialmente de poesia, que são torturados com muitas revisões. Há textos que são marcados por alguma necessidade, como a entrega do produto de uma pesquisa financiada, tendo revisão obrigatória.
Hoje, em razão das minhas limitações físicas de escrita, prefiro textos sobre os quais eu possa conversar e dividir o ônus da escrita. Gosto de escrever em coautoria. Acho um bom exercício psíquico de desapego. Além disso, é uma forma amigável de apreender.
Costumo “por de molho” o texto por um tempo para depois voltar a lê-lo. Todo texto é um erro. É só uma questão de tempo para a gente perceber isso. Mas é impossível não errar na vida acadêmica… Gosto dos erros que escolhi.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso a escrita à mão apenas para listas de tarefas, listas de supermercado e, às vezes, para escrever poesia. Gosto de trabalhar no meu computador. Não consegui treinar o ditado no word, mas esse é meu objetivo, imposto pelas circunstâncias. A tecnologia disponível tampouco ajuda muito. Temo perder a intimidade silenciosa com as palavras, por isso sempre vou adiando esse projeto de ditar um texto…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Meu tempo é marcado por necessidades bem cotidianas. Acho que as ideias vêm de lugares bem simples como dor, raiva, medo, desejo e tantas formas de afeto. Não me considero “criativo”. Isso é um juízo de um outro externo. Me vejo apenas em movimento. Em movimento porque não dá pra ficar parado olhando para uma vitrine acadêmica em que a vida da vida é posta como algo estranho, em que dilemas concretos e vivências de todo dia não servem para dizer nada. Como disse, acho que as ideias nascem do processo cotidiano de falar sobre questões concretas, do movimento da vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Minha forma de escrever mudou em vinte anos. Quando comecei a escrever pensava na beleza do argumento. Embora fosse marcado por problemas de pesquisa muito concretos, minha escrita tinha parágrafos em escala ascendente de complexidade. Acho que o sonho da juventude eram aqueles parágrafos insuportáveis do Weber, escritos em duas páginas. De algum modo, a academia incentiva reproduzir o hermetismo do ambiente intelectual no estilo de escrita. Há uma tentativa de sacralizar o autor e o texto pela evocação de abstrações crescentes ou pela produção de segredos internos. Algo como uma alternância entre Hegel e Heidegger. É a beleza do latifúndio de palavras.
Atualmente, meu sonho é comunicar uma ideia. Gostaria que a leitura propiciasse o contato com o argumento. Sei que isso evoca uma noção de simplicidade que pode ser tida como uma forma de submissão ao empobrecimento da linguagem existente na sociedade de massas ou de um retorno a uma linguagem anterior ao processo de especialização dos campos científicos. Porém, acho que se deve correr o risco de tentar dizer algo num texto.
Um conselho para mim mesmo? Para aquele ser do passado teria de dizer algo bem mais enigmático. Uma mensagem “tipo mestre Yoda”. Algo como: O texto é vida, mas não é toda vida. É uma parte dela, e bem pequena. Uma parte bem pequena que, ao ser vivida como texto, é nossa e não é mais. É um estranho que sonhamos próximo. Vida própria, diante do olhar do outro. Nada pode impedir esse encontro ou garantir que ele seja menos surpreendente ou conflituoso. Porém, os olhares alheios ou ajudam a trilhar o caminho ou fazem parte do caminho. É isso. Viva e escreva. Não inverta os fatores. E coloque mais pontos finais nas frases e nos projetos de escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gosto de repetir livros. Poesia, por exemplo, depende de releitura contínua. Há autores que eu gostaria de voltar, outros estão aqui na estante na fila de leitura. Acho que não conheço todos para dizer qual está faltando.
Entretanto, há muitos textos que gostaria de ver publicados. Textos de intelectuais brilhantes que, por serem mulheres, negras ou lgbts, não tiveram seus textos transformados em livros. Gostaria de um dia poder encontrar na estante de minha universidade a dissertação de Dora Lúcia de Lima Bertúlio, Direito e Relações Raciais: Uma introdução crítica ao racismo, escrita em 1989 na UFSC, o primeiro e mais importante “não-livro” sobre racismo que li, onde a autora propunha uma agenda de pesquisa sobre o papel do direito na reprodução da desigualdade racial. Livro que, em sua ausência, sintetiza o paradoxo sobre a falta de bons livros. Faltam bons livros? Ou faltam bons leitores? Seria possível produzir bons livros num ambiente acadêmico e num mercado editorial que reproduz hoje essa ausência? A obsessão da criatividade acadêmica não é apenas a parte visível de uma dinâmica mais profunda e perversa que nega a diferença? Será que não há algo de estranho nessa dificuldade de ser criativo no espaço acadêmico? O sujeito criativo encontra a diferença e a nega, terminando por fazer de si mesmo o ponto de partida para um novo irrealizável desejo de diferença, impossível desde o início. Talvez, esse seja um tema para a possibilidade de um futuro.