Evaldo Sampaio é professor do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília, autor de “Por que somos decadentes?”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Levanto em torno das 7h ou 7:30h. Gosto de ir a uma cafeteria ou padaria, folhear um dos livros que estou lendo, organizar o que vou fazer naquele dia. Em seguida, passeio com meu beagle enquanto escuto música ou uma palestra. Dedico-me então às pendências administrativas (desde agosto de 2018 coordeno o Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília) e acadêmicas – corrigir trabalhos de alunos ou orientandos, responder mensagens de colegas docentes, preparar aulas. No final da manhã, exercícios físicos. Quando estou envolvido na redação dum texto, encaixo-o nesta rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A minha escrita é mais proveitosa pela manhã e no início da tarde. No entanto, de acordo com o prazo para a entrega dum trabalho, escrevo nos mais diversos horários. Não tenho exatamente um ritual de preparação, mas faço da escrita a primeira atividade intelectual do dia – caso contrário, tenho dificuldades para me concentrar adequadamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Programo um intervalo de pelo menos um mês entre um projeto e outro. A meta depende dos prazos para a entrega do material e da minha disponibilidade, com uma média de uma a quatro laudas diárias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Demorei para entender e me adaptar ao meu processo criativo e de redação. Antes, fazia todas as leituras, anotava diversas ideias e só então começava a escrever. Contudo, o trabalho por vezes não fluía, pois muitas e novas articulações de ideias e argumentos se impunham durante a escrita, exigindo que eu retomasse quase do zero algumas leituras e reflexões. Finalmente entendi que a parte central do meu pensamento se dá propriamente quando escrevo. Que assim como no ato espontâneo da fala, no qual não elaboramos previamente o que vamos dizer, mas falamos, a escrita também tem sua espontaneidade e surpresas. Assim, hoje delineio apenas os marcos referenciais do que pretendo tratar e já começo a escrever, de modo que o ato da pesquisa e o da escrita se misturam durante quase todo o processo.
Além disso, distingo um momento prévio para me concentrar apenas no plano de conteúdo, despreocupado com os detalhes expositivos. Por isso, inicio a redação com uma espécie de fichamento expandido que hierarquiza todas as noções e argumentos a serem discutidos. Só depois começo a redação propriamente dita, a qual retoma e refina aquelas notas preparatórias.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Experimento dois tipos distintos de “travas de escrita”. A primeira é ao iniciar um projeto, quando preciso entender o que quero tratar, ou como fazê-lo, qual o tom a ser adotado no discurso, ou mesmo a lentidão até a escrita tomar seu rumo. Nestes casos ou bem vou me forçando a escrever diariamente, mesmo que com baixa produtividade, até que as coisas se acertem, ou simplesmente abandono o projeto provisoriamente enquanto os pensamentos não se tornem mais claros.
Enfrento repetidamente a procrastinação quando começo um novo trabalho – e às vezes é ela quem leva a melhor. Quando o texto já se está bem encaminhado, tenho de lidar então com aquela ansiedade de concluí-lo o quanto antes, o que pode levar a decisões apressadas e insatisfação. Essa batalha é sem trégua. No entanto, estou mais paciente comigo mesmo, especialmente em projetos prolongados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre inicio a escrita do dia com uma revisão argumentativa e estilística do que fiz até ali. Após o texto pronto, faço uma releitura geral. Não costumo mostrar ou discutir meus textos com algum interlocutor específico. Contudo, dependendo da pertinência, apresento versões preparatórias aos meus alunos de pós-graduação ou de graduação, seja em aulas ou grupos de estudo. Das incompreensões e discussões com eles, faço alterações no original.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador. Mais recentemente, venho até utilizando alguns recursos eletrônicos para ditar o texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como também leciono Filosofia, uma parte significativa das minhas ideias para novos trabalhos surge quando da elaboração de cursos e mesmo durante as aulas, pois o próprio ato de sistematizar os conteúdos ou improvisar uma resposta a questões dos alunos me conduzem a regiões inexploradas.
Além de Filosofia, leio regularmente livros científicos e literários, os quais me ajudam a arejar as ideias e visitar outros estilos de escrita. Sou também músico não profissional e sempre me pareceu que a composição de um texto argumentativo se enlaça com a elaboração de canções. Daí que a música me ajuda a manter os pensamentos em trânsito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Embora escreva desde a adolescência, quando comecei a redigir textos acadêmicos, os quais requerem uma certa dicção professoral, tive por anos um desconforto. O desconforto não era por ter de seguir esta ou aquela “regra” de escrita, mas sim para encontrar uma assinatura pessoal no interior destas. Com o tempo, fui lidando melhor com isso. Todavia, como eventualmente decido arriscar novas formas de escrita e composição, volta e meia me pego novamente naquela tensão do “como escrever isso?”.
Curiosamente, eu julgo que o autor dos meus primeiros textos sempre tem mais a me dizer hoje do que eu a ele. É que temos a tendência de nos acomodarmos a uma maneira de trabalhar que já dominamos, e naqueles primeiros anos, por não ter o controle sobre nenhuma técnica específica, havia em mim uma espontaneidade que tem de sempre estar presente. Então, quando preciso, retomo aqueles meus primeiros trabalhos para me lembrar de que ousar mais aqui e ali, de ser menos “responsável”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sinto-me às vezes como um autor de livros não escritos. Tenho inúmeras ideias que pretendo realizar, as quais ficam se chocando umas com as outras de modo que me exige certo esforço seguir obstinadamente uma pelo tempo necessário para concluí-la.
Venho estudando a obra de um filósofo e historiador das ideias francês chamado Pierre Hadot, falecido em 2010. Há nos livros dele a proposta de que a Filosofia não é primordialmente um discurso teórico, porém uma “maneira de viver” ou uma “direção espiritual” (numa acepção laica da expressão) que se dá também e sobretudo por uma investigação conceptual. Para justificar tal concepção, Hadot, que era um especialista no pensamento greco-romano, estudou atentamente o surgimento da Filosofia na Antiguidade. Constatou então que o discurso teórico, para os Antigos, tinha por objetivo explicitar as nossas crenças sobre nós mesmos e o mundo e, após um exame crítico destas, engajarmos num processo que seria sobretudo uma “arte de viver”. Hadot chega inclusive a identificar e denominar os procedimentos pelos quais os Antigos tentavam aperfeiçoar o nosso comportamento a partir do reexame de nossas crenças de “exercícios espirituais” (novamente em sentido laico). Essa representação da Filosofia teria sido eclipsada progressivamente no período Medieval, quando o estudo das obras filosóficas ficou sob a tutela da Igreja. Mesmo no século XVII, com o início da ruptura do pensamento filosófico com o teológico, os filósofos, dada a sua formação “escolástica”, conservaram sem se dar conta a concepção equivocada de que a Filosofia seria apenas um discurso teórico. Apesar disso, Hadot sugere que, ainda que implicitamente, alguns pensadores modernos, como Descartes ou Nietzsche, trataram a Filosofia como uma maneira de viver.
Com base neste cenário, gostaria bastante de ler um livro que adote essa abordagem historiográfica de Hadot para os pensadores modernos (o título poderia ser algo como A Filosofia Moderna como um modo de vida: Sabedoria e Direção Espiritual). Venho tentando priorizar esse projeto para enfim redigi-lo. Além de conduzir a metodologia de Hadot para um repertório bibliográfico que ele discutiu apenas em linhas gerais (o que me levará a algumas discordâncias de interpretação), também pretendo dar um passo adiante sugerindo que, independente de um filósofo (moderno) nos ter fornecido indicações de como a filosofia dele pode ser “praticada”, é possível desenvolvê-la nessa direção, articulando-a com certos “exercícios espirituais”. Não é uma tarefa das mais simples por que tal perspectiva precisa distinguir com precisão a Filosofia de uma simples “autoajuda” e mesmo estabelecer como o entrelaçamento com algumas abordagens psicológicas pode ser o caso aqui.
Penso que tal linha de interpretação pode ser instigante também quanto a áreas de estudos filosóficos, como a Ontologia e a Teoria do Conhecimento. Por isso, em paralelo, quero escrever sobre como, por exemplo, a Teoria do Conhecimento pode ser entendida como uma reflexão existencial, além de somente um discurso teórico sobre os fundamentos e condições de nosso conhecimento sobre o mundo.