Euzeneia Carlos é doutora em Ciência Política pela USP e professora de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.
O projeto “Como eu escrevo” de José Nunes apresenta um desafio a escritores acadêmicos e não-acadêmicos – refletir sobre si mesmo para falar de si em seu processo de escrita. Aceitar este honroso convite me levou a aprender um pouco mais sobre mim mesma. Também me levou a identificar a escrita como um dos momentos mais prazerosos do meu trabalho, ainda que por vezes doloroso, e ao autoreconhecimento como escritora. Espero que minha reflexão em torno da própria escrita contribua com jovens escritores e pós-graduandos em seu processo de escrita, como é o propósito deste autêntico projeto.
A primeira constatação que cheguei é o quão difícil é falar de si mesmo, especialmente de um processo que parece ser tão natural como a escrita, mas que de fato não o é. Ainda que aparente fluir naturalmente a escrita requer preparação prévia, planejamento, disciplina e motivação. Como acadêmica meu trabalho exige que várias tarefas e funções sejam exercidas, muitas delas de modo concomitante. Por esse motivo não tenho uma rotina de escrita, nem meta diária de escrita. Ao invés de escrever um pouco todos os dias, trabalho com a escrita em períodos concentrados. Nesses períodos que reúnem dias e semanas, as manhãs são especialmente produtivas, seguidas pelo retorno da capacidade de escrita em meados da tarde e à noite. Como gosto das manhãs raramente varo as madrugadas escrevendo. Uma boa noite de sono e o descanso noturno são aí primordiais.
Meu processo de escrita, embora não envolva uma rotina diária, possui um ritual. Um ritual consciente ou inconsciente de preparação para a escrita. O encorajamento inicial é o mais difícil e o mais demorado. A página em branco é quebrada na medida em que tenha lido o suficiente e tenha feito análises preliminares. Esse momento de início da escrita é ajudado por anotações gerais prévias e por organogramas de organização das principais ideias, conceitos e operacionalização empírica das questões a serem desenvolvidas. Depois de iniciada, a escrita corre rápido. Em uma ou duas semanas de escrita intensa as principais ideias já estão no papel. Depois vem o trabalho de voltar ao texto e reescrever fazendo acréscimos, dividindo sessões, acrescentando notas de rodapé. Neste processo inicial de escrita um turbilhão de ideias e correlações entre os fatos vêm à tona. Esses se relacionam diretamente ao texto que está sendo escrito, mas ainda não é o momento de falar sobre eles porque outras coisas precisam ser ditas antes. Para não perder as ideias em ebulição recorro a lembretes para serem acrescidos ao texto adiante, usando post it e papel A4 dobrado que lembra caderno. Recentemente descobri o papel A3 onde posso desenhar os organogramas de estruturação do texto e das principais ideias, conceitos e evidências empíricas, obviamente com mais espaço para as combinações entre ideias.
Toda esta construção se insere no bojo da pesquisa e dos esforços para converter seus resultados na escrita. Em geral, este trabalho envolve pesquisas grandes e longas no tempo, com equipes interinstitucionais e algumas delas interdisciplinares. No começo de cada pesquisa adoto um novo caderno para anotações gerais sobre seu desenvolvimento e sobre as etapas dos subprojetos de pesquisa nos quais se desdobra. Com o desencadeamento progressivo da pesquisa as anotações em caderno tendem a ser interrompidas, passando ao uso direto do banco de dados da pesquisa para os primeiros textos e relatórios. Não vejo problemas em trabalhar com pesquisas longas, ao contrário, costumo me apaixonar por elas. Ao invés da longevidade do projeto causar ansiedade para escrita, a vejo como o motor que alimentará escritas de maior fôlego. Por outro lado, o período de procrastinação da escrita que pode ser causado por projetos longos pode ser contrabalanceado pela escrita de resultados de projetos recém finalizados. Isso é possível sempre que combinada a execução de dois ou três projetos ao mesmo tempo, mas cujas etapas sejam distintas.
Meus manuscritos são revisados duas ou três vezes até serem submetidos para publicação. Os prazos dos canais de publicação também conduzem essas revisões, como o prazo do paper para o congresso, o artigo para o periódico, o capítulo para o livro. A maioria dos textos escritos são revisados e discutidos pela equipe de trabalho da pesquisa correlata e, em trabalhos em coautoria, pelos próprios coautores. Além disso, as revisões das escritas também são beneficiadas pela apresentação em eventos científicos da área, pelos pareceristas anônimos dos periódicos e pelos organizadores de coletâneas de livros. Todo este processo de escrita e reescrita busca o aprimoramento do argumento, seu rigor teórico, sua transparência metodológica e sua clareza para o leitor interessado. A escrita assim vai sendo lapidada no limite possível do seu tempo presente. As imperfeições, insuficiências e ausência de clareza persistentes com sorte dão origem a novas pesquisas e a escritas futuras.
Na escrita, a relação com a tecnologia da informática é direta e imperativa. Todo o texto é escrito no computador e não à mão, desde as primeiras versões dos manuscritos. Inclusive os fichamentos que precedem as seções de revisão teórica dos textos são digitados no computador. Todavia, cabe à mão os rabiscos, os desenhos, o destaque a conceitos chaves, os organogramas de estruturação do texto a ser escrito. Para esta atividade a escolha pelo papel está na rapidez com que posso transpor esquemas conceituais para o papel, cujo desenho pode ser frequentemente alterado, acrescentado e partes realocadas de lugar ou simplesmente excluídas. Já cheguei a fazer quadros de cortiça com quebra-cabeça com papéis e alfinetes, em processos de pré-escrita onde as categorias analíticas e a relação entre elas podem se mover com maior facilidade. Neles, até as cores ajudam na demonstração de relações, interdependências e hierarquias. Assim, na escrita a relação com a tecnologia é dual: por um lado, o texto corre fluido pela digitação no computador dada a velocidade que alcança a escrita das palavras; por outro, as anotações e desenhos de fluxos de ideias no papel revisam e orientam com frequência a estruturação das ideias a serem desenvolvidas.
A criatividade na escrita não é trivial nem rápida, embora sempre almejada. Mas de onde vem as ideias? Haveria um conjunto de hábitos cultivados para se manter criativa? No meu caso, busco uma vigilância crítica da relação entre teoria e empiria a qual pode se converter em momentos criativos na escrita. Para mim a escrita criativa é processual e vem do conjunto de achados empíricos, confrontados com a teoria, numa relação entre teoria e prática. Em outras palavras, a criatividade é alimentada pelos achados empíricos e sua confrontação com as abordagens teóricas em suas possibilidades e limitações. Mas também na discussão teórica a criatividade é iluminada pelo o quê as abordagens têm de restritivas para explicar certos fenômenos políticos. É pensando no que falham as teorias para explicar certos objetos empíricos que chego às proposições de complementação entre matrizes, que mesclam conceitos de diferentes abordagens visando abarcar uma compreensão mais complexa da realidade social. Em geral não me satisfaço com uma única perspectiva teórica e sigo buscando complementos à mesma exatamente naquilo em que falha. Esta busca conduz a momentos criativos na escrita. Igualmente a empiria conduz a fontes de criatividade porque com frequência desafia as teorias sempre parciais. Olhando a empiria aumenta nossa capacidade de compreensão da complexidade dos fenômenos políticos.
Ao longo dos anos de produção acadêmica a escrita pode apresentar variações. Não diria que meu processo de escrita mudou ao longo do tempo. Mas a qualidade da escrita foi paulatinamente aperfeiçoada desde o mestrado passando pelo doutorado e agora no pós-doutorado. Por outro lado, percebo uma mudança no estilo da escrita passando de um estilo latino-americano para um estilo mais anglo-saxão. O texto longo e prolixo com parágrafos extensos e sentenças com duas ou mais frases foi abrindo espaço para uma escrita mais enxuta, direta e com menos parafraseado. Em geral trata-se de uma adaptação da escrita a um estilo crescentemente exigido para publicação de artigos científicos em periódicos qualificados, sendo esse exíguo, conciso e direto. Mesmo assim o estilo de escrita longa ou prolixa é mantido nas publicações de livros, capítulos e ensaios, ora pois está na origem de minha escrita acadêmica meticulosa e detalhista.