Eunice Mendes é escritora, atriz e pedagoga.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim. Levanto-me cedo para dar aulas. Mas, mesmo quando não estou trabalhando, não costumo escrever durante o dia. Gosto de escrever à noite, quando tudo está em silêncio. Os ruídos me atraem, pois sou meio dispersiva, então preciso de solidão para escrever. A madrugada me abastece de um pouco de paz e serenidade. Só as minhas gatinhas de estimação ficam no espaço sem me incomodar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma operária das madrugadas. Começo meu processo de escrita ali pelas 23 horas e depois varro a madrugada. Durante a noite, consigo pensar e exercitar a escrita de forma mais plena.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma rotina diária. Às vezes, escrevo durante cinco noites consecutivas, umas três horas por noite, e depois só volto a fazê-lo passados uns três dias. Não consigo escrever se tiver outros trabalhos para realizar. Para escrever preciso de tempo livre, de tempo de ócio, para eu conseguir pensar no tema que pretendo abordar. Em contrapartida, durante o tempo de gestação dos textos, fico mais atenta a tudo. Sempre carrego comigo um pequeno caderno de anotações e qualquer frase que alguém me diz pode ser extremamente importante para a minha produção noturna. Parece que corpo mente e alma ficam a postos para absorver tudo o que for possível para alimentar a escrita.
Quando assisto a entrevistas de escritores de telenovelas, por exemplo, percebo que eles têm uma rotina diária. Precisam sentar-se e escrever cotidianamente um capítulo que abrange o tempo de uma peça teatral. Creio que deve ser um trabalho muito fatigante, pois remete a uma disciplina militar. No meu caso, costumo ter uma meta de entrega do texto final para a editora em razão do lançamento, mas consigo me movimentar dentro desse cronograma de uma forma mais flexível. Não sei se conseguiria trabalhar sob pressão.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Preciso confidenciar que tenho dificuldade para escrever e jogo fora muita coisa. Sou lenta… Escrevo dez páginas para aproveitar uma. Eu me acho verborrágica e o meu lado atriz é muito melodramático, então, na maioria das vezes, meu texto necessita de uma edição atenta para não se tornar repetitivo nem piegas. Em compensação, não fico mostrando o texto para outras pessoas, mesmo as mais íntimas. A exceção diz respeito a uma única pessoa, que é bastante crítica, lê meus escritos e, a partir da reação dela, vejo se mudo ou se permaneço com o mesmo texto. Fico confusa se recebo vários palpites. Cada um tem um universo diferente e, se quisermos agradar todo mundo, a escrita perde a sua identidade. Aquele que escreve deve dar a última palavra.
Sobre a compilação de informações, eu necessito de muitos dados para me sentir segura e escrever, tanto os textos ficcionais quanto os não-ficcionais. Tudo o que possa me dar subsídio em relação ao argumento central do texto me nutre. Costumo imprimir os conteúdos que estou estudando: estendo-os na mesa para ter uma visão de todos e deixo os livros que me interessam abertos nas páginas em que assinalei trechos com marca texto. Após todo esse trabalho de levantamento e reflexão, preencher a folha ou a tela em branco com a primeira frase é o primeiro grande avanço para escrever. Daí em diante, podemos ficar menos ansiosos. Um grande passo foi dado.
É muito complexa a passagem da pesquisa para a escrita do texto. Procuro não me autocensurar, então vou escrevendo o que vier à tona sem ficar preocupada com o resultado. Escrevo, simplesmente. E deixo reservado um tempo posterior para a síntese necessária.
Para mim, a ato de escrever parte muito do nosso próprio universo, do nosso repertório. Quanto mais se lê, o que implica ler de forma crítica também, mais se forma dentro de nós a nossa biblioteca sensível e transformadora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aconteceu um processo interessante durante a produção do meu livro de contos intitulado Faca na Língua. Houve um momento em que travei completamente, não conseguia mais escrever, e comentei sobre isso com o meu editor. “Parei, não tenho mais nada para dizer. Estou tão esgotada quanto os assuntos dos quais venho tratando. A inspiração foi embora”, sentenciei. E ele me surpreendeu ao dizer: “Muito bem, por que você não escreve sobre essa falta de inspiração e o que ela provoca em você nesta altura da sua jornada?”. Encarei o desafio e escrevi sobre tudo o que me aniquilava e como eu reagia diante da página em branco. Saí do marasmo e o resultado foi tão significativo que acabou se encaixando perfeitamente como conto de encerramento da obra.
Quando o assunto é medo e ansiedade, posso me autodeclarar uma paciente crônica e irrecuperável. Sou extremamente crítica e isso me torna fonte de inseguranças quanto ao resultado do trabalho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes. Tenho muita dificuldade para dizer: “Acabou!”. A cada vez que a editora me devolve o texto revisado, sempre mexo aqui e ali. Parece que eu não quero que o texto vá embora. Como já mencionei, apenas uma pessoa lê meus textos quando ainda estou na fase da escrita. Afora isso, apenas a equipe da editora tem acesso ao material.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sei o básico sobre tecnologia e convivo bem com o Word, onde escrevo diretamente e também reproduzo vários parágrafos escritos à mão. Confesso que muitos papeizinhos e guardanapos voam dentro da minha bolsa. Gosto de escrever à mão.
Ainda sobre a tecnologia, reconheço que minha relação com ela é a de uma principiante, e cada vez mais percebo que é fundamental investir nas redes se quisermos ser lidos. Lembro daquela frase segundo a qual é preciso ir aonde povo está. Eu ainda não encontrei esse lugar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tudo para mim é passível de inspiração para criar um texto. Qualquer frase que eu julgo interessante pode vir a fazer parte da engrenagem. Presto muita atenção às conversas na rua, no metrô, nos restaurantes e em todos os locais públicos. É como se eu fosse uma espiã da alma alheia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje eu me preocupo mais em não ser repetitiva e ter um cuidado maior na criação de alegorias. Entendo a escrita como uma fonte inesgotável de imagens. Meu desejo é que as pessoas vejam e sintam o que escrevo, e que isso tenha um papel transformador, ainda que seja apenas do ponto de vista lúdico.
Se pudesse voltar ao momento de produção dos meus primeiros escritos, leria mais, muito mais, faria mais cursos de redação criativa e proporia mais desafios para mim mesma. Também seria muito mais sintética, certamente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de ler um livro que contivesse as respostas para as perguntas mais complexas feitas por nós, humanos, e nos desse a chave para decifrar o enigma da vida. Mas sem que isso virasse necessariamente um conjunto de dogmas a serem seguidos.