Estevão Rafael Fernandes é Professor Adjunto no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começa quase sempre com minha cachorra tentando abrir a porta do quarto, para dar o passeio matinal! A cachorra é um despertador. Sempre que dá umas nove da manhã começa o chororô na porta. Como bom pai canino (e dono de uma filhotona de 30 kg, que sabe o tamanho do “presente” que ela vai deixar na porta do quarto se não passear no horário), obedeço e vamos pra rua. Toalete canina feita, é fazer o de sempre: ver as bobagens no Facebook comendo bobagem e tomando café da manhã, assistindo Ana Maria Braga ou pica pau. Meu cérebro demora um pouco para engrenar (e acho que, em 39 anos, talvez ele nem tenha engrenado…) Enfim, minha manhã é para tentar convencer a cabeça de que é hora de acordar – o duro é que nem sempre eu consigo isso… Então fico ali, na poltrona, respondendo e-mails, vendo as notícias… daí já é hora de fazer o almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quase sempre escrevo melhor no fim da tarde ou madrugada adentro. Sempre foi assim, e morando em Rondônia, por conta do calor, acho melhor com o clima fresco. Quase sempre sento com o computador na rede lá fora, ou (como está sendo o caso aqui), deito na cama e dano a escrever. Não tenho nenhum ritual específico e, confesso, às vezes nada motiva mais do que o pânico de última hora. Mas no final das contas, acredito muito em inspiração. Odeio ter que escrever porque preciso escrever… Ultimamente, mesmo em alguns textos acadêmicos, tenho me permitido começar a escrever uma frase sem ter a menor ideia de como ela pode ou não terminar… Em algum momento, a gente percebe que o melhor texto é esse, no qual somos um simples intermediário entre a cabeça da gente e a tela à nossa frente… é estranho esse sentimento de alheamento de si e também é fantástico. Temos muitas travas no dia a dia, sejam elas morais, intelectuais, estéticas… deixar o dedo fluir sem se meter muito é sempre um bom momento – talvez por isso mesmo não tenha espaço na escrita acadêmica padrão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem a pau! (risos) Quando tenho um prazo para entrega de um artigo, ou livro, ou capítulo de livro, até pode ser que talvez venha a ter a possibilidade de quem sabe eu vir a pensar na probabilidade remota disso. (risos) Comigo, felizmente ou não, isso não funciona. Em dias nos quais não temos cabeça, não flui uma página e, caso flua, vai sair uma porcaria. Evidentemente que eu tinha disciplina quando, por exemplo, eu estava escrevendo minha tese, mas hoje boa parte do que escrevo acaba sendo pra mim mesmo. Registro algumas ideias aqui ou ali e, quem sabe, elas podem vir a se tornar algo para ser compartilhado? Mesmo a ditadura do lattes acho complicada… temos que publicar x textos em revistas com alta classificação e essas são, quase sempre, as mais conservadoras. Penso que estes tempos complexos careçam de textos mais complexos ainda, mas também acessíveis. Nada mais hermético do que a escrita acadêmica normatizada, normal, linear, a-histórica e pretensamente objetiva. Falta muito de sangue e coragem a vários escritos e, honestamente, cada vez mais vejo cada palavra escrita como uma flecha disparada ou algo assim. Não no sentido de atacar quem quer que seja, mas da necessidade de uma ação efetiva. Se há algo que os povos indígenas me ensinaram (e ensinaram e ensinam muito!) é que, uma vez dita, a palavra deixa de nos pertencer… Não é todo mundo que tem lugar numa universidade, ou tem tempo ou formação para ficar futricando e tentando interpretar textos em portais de revistas acadêmicas. Mas caso essas pessoas queiram ou precisem se qualificar para se posicionarem contra o racismo, a homofobia, a injustiça, o conservadorismo, etc., espero que possam achar em alguns lugares como enfrentar essas questões. Espero, de coração, que meus textos sejam um desses lugares.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pergunta mais fácil até aqui. Leio e ficho cada coisa que eu escrevo e depois eu ficho os fichamentos a partir de temáticas específicas. A partir daí tento construir algum texto mais consolidado e que faça sentido. A questão é como trabalhar com essas referências… Vejo esses textos como interlocutores, sem que eu tenha a obrigação de citá-los para provar que eu estou certo, ou que os li (e esse é um erro que muita gente comete no começo da formação acadêmica). Penso: “ok, o que eu não tinha em mente antes de ler esse autor e agora eu tenho?”. De novo: tento construir o texto, mesmo que mentalmente, conversando com os textos e imaginando quais são as possibilidades a partir do meu problema, sempre.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Estou há dois meses para escrever essas respostas… (risos) Ou seja: quase sempre o gênio malvado sobre o ombro acaba vencendo… Sempre vai ter algo mais interessante para fazer, por mais que se ame escrever. Então, por mais que eu goste de ter mais tempo e espaço, de vez em quando é necessário se ter disciplina. Dessa maneira, ainda que nunca funcione, quase sempre tento fazer um cronograma no qual o texto fique pronto ao menos uma semana antes do prazo final. Outra alternativa é fazer textos em parcerias com colegas: desta forma, a gente acaba sendo motivado por algum senso de responsabilidade – um jeito de dizer que nada motiva mais do que não querer queimar o filme com os amigos…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não reviso. Dou uma lida antes só para tentar descobrir se há algum erro mais grosseiro de português, ou alguma repetição de termos… sobre mostrar a outras pessoas, depende muito. Infelizmente, hoje quase ninguém tem tempo pra ler mais nada… então pedir a alguém um favor desses acaba virando um presente de grego.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. O que faço antes, com certeza, são uns rabiscos no papel, tentando destacar as principais ideias e a estrutura do texto. Sendo bem sincero, essa acaba sendo a parte mais importante do processo criativo pra mim. O problema é que, depois de um tempo, a escrivaninha acaba virando uma pilha de rabiscos (assim como, eventualmente, o computador acaba também se tornando um monte de janelas abertas com textos pela metade ou outros, a serem lidos…)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Queria muito poder dizer que sou um gênio criativo, mas não sou… as ideias vêm das experiências, mas a forma como as experiências vão ser retrabalhadas, sistematizadas e/ou desconstruídas, vem do acúmulo de leituras e discussões. Tem gente que acha que existe algo como “sociologia espontânea”, e que a “escola da vida” lhe dá experiência para falar sobre o que quer que seja. Ao contrário, acho que o processo de conhecimento começa com um pequeno primeiro passo de humildade, de escuta, de admitirmos que talvez não saibamos tudo sobre tudo e que nossa opinião, no fim das contas, pode não ser a verdade… ouvimos cada vez menos, enxergamos cada vez menos e, ao escrever, ainda que seja um processo de olhar para dentro de nós, seu primeiro passo deve ser um olhar e um ouvir voltado para fora, para o que outras pessoas, qualificadas e com experiência no tema, podem me ajudar a compreender sobre ele. O primeiro passo é “esvaziar o copo”, entende? E talvez esse seja o problema nos dias de hoje, nos quais as pessoas pensam que os textões no Facebook com uma dúzia de cliques substitui o momento de reflexão e inflexão necessários para se compreender, de forma densa, alguma questão. Adoro quando vejo uma crítica ao meu livro “existe índio gay?”, por exemplo, do tipo “o título é etnocêntrico”… lindo! Mas, e as 250 páginas depois da capa, nas quais tento desconstruir a pergunta? Os anos de pesquisa, as dezenas de textos referenciados, o vasto conjunto de autores que trabalhei mesmo sem ter citado… nada disso é importante, porque o ser humaninho, do alto de sua glória, leu em algum canto o que é etnocentrismo e resolveu usar a palavra, porque lhe faz parecer inteligente. O livro certamente tem vários – váriossssss!!!!!! – problemas e espero que tenha mesmo! Isso faz parte do processo de construção do conhecimento: é algo feito a partir do diálogo, da crítica embasada, da desconstrução, da proposição… nada melhor do que o erro em ciência! Mas, achar que dizer “o título é etnocêntrico”, é algo útil… da mesma forma: “aquilo não é arte”, ou “bandido bom é bandido morto”, ou qualquer frase com uma fórmula tão simples (tal coisa + verbo + adjetivo)… isso é opinião, e tem seu valor, mas somente como opinião mesmo… (desculpe o desabafo, talvez isso tenha soado arrogante mas, sinceramente… irrita como gente que se acha o ser humano mais inteligente e correto que já nasceu não entende como essa é, justamente, a atitude menos inteligente que se pode ter… cara: escute, leia, entenda, ponha-se no lugar dx outrx antes de julgar xs outrxs, ou de se achar melhor ou mais capaz do que quem quer que seja!)
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não diria nada… é bom cometer erros e poder aprender com eles. Sei que eu cometo erros todos os dias e não é um lattes ou um diploma ou título que me deixam impune a isso. Ao contrário, posso começar a acreditar nessa narrativa e pensar que não cometo erros por ter meia dúzia de publicações no currículo. Errar é tudo e precisamos, cada vez mais, entender onde e como erramos. Sobre o que mudou no meu processo de escrita? Ironicamente, acho que me tornei uma pessoa mais autoconfiante ao mesmo tempo em que deixei de me levar tão a sério. De novo: as pessoas acreditam demais na autonarrativa… Eu levo a sério e respeito as pessoas com quem me cerco e junto às quais trabalho, bem como me respeito como pessoa, mas não acredito que as coisas que eu possa dizer sejam ouro puro. Conhecimento é algo coletivo, construído diariamente a partir do compartilhamento de ideias e experiências. O que eu faço é compartilhar as minhas, esperando que possa acolher as experiências de outras pessoas… como eu disse antes: é exercitar a escuta e ir se transformando ao longo desses processos…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Boa pergunta! Estou trabalhando junto com uma amiga queridíssima, Bárbara Arisi, em um livro chamado “Queer Indians in Latin America” que deve sair em 2020 e em um projeto de livro unindo queer e críticas pós-coloniais… São dois livros que eu gostaria muito de ler! (risos) Eu também gostaria de ler (quem sabe até escreva!) algum livro que sistematize a crítica pós-colonial brasileira, não a partir da academia, mas desde os movimentos sociais e das periferias… tem muita coisa a ser dita, muita gente querendo dizer mas, infelizmente, dadas as estruturas tradicionais da forma como o conhecimento é construído, compartilhado e reconhecido no país, essas pessoas seguem sendo invisíveis e invisibilizadas, ou vistas como meros “objetos”… tá na hora de mudar isso!