Estela Rosa é poeta e caipira, fundadora do Farol Estúdio e curadora da Mulheres que Escrevem.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar cedo. Nasci e cresci em uma cidade do interior. Minha mãe apagava as luzes da casa às 21h30 e não havia jeito de fazer outra coisa que não dormir. A casa voltava a funcionar às 6h, cheiro de café e conversas. Acredito que isso, essa espécie de rotina imposta, me transformou em uma pessoa da manhã. Não acho ruim ter passado por essa experiência, vivendo essa infância em que havia tempo para tudo, passei a dar valor ao meu sono e à manhã. Escrevo melhor de manhã, sorrio mais de manhã (algumas pessoas me odeiam por isso, inclusive). Mas fazer o quê? Gosto de acordar antes das 7h, preparar meu café, olhar pro nada e começar a escrever às 8h. Nem sempre consigo. Na verdade, consigo bem pouco, estou aqui te contando os meus melhores dias de escrita. A vida me atropela mais do que eu gostaria, mas se pudesse te dizer sobre meus dias ideais, eles são assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como falei, prefiro trabalhar na parte da manhã. Depois do almoço eu não existo, viro uma jiboia, só volto a ser um ser humano de verdade lá pras 16h. E ainda tem o fato de que moro na cidade do Rio de Janeiro. Esse lance de conviver seis meses com um calor escaldante… Penso que não há um ser vivente no verão dessa cidade que produza direito das 11h às 15h sem a ajuda de aparelhos (ar-condicionado). Sobre me preparar, não tenho nenhum ritual. Mentira, acabo de me dar conta de que tenho sim. Gosto de escrever com música, trilha sonora. Então abro meu computador e olho pras minhas listas de músicas pensando que som combina com a ideia que tá na minha cabeça naquela hora. Coloco o fone e começo a escrever. Às vezes vou trocando a música até achar uma que encaixe melhor no que estou escrevendo e pensando. Costuma dar certo. Quase tudo o que escrevi teve trilha sonora. Às vezes acontece também o contrário, vou buscando uma música e de repente é ela que muda meu fluxo de pensamento. Ritmo, né? Sou fã de ritmo. Teve uma vez que eu queria escrever sobre uma história do meu pai, que ele foi convidado para ser jóquei na Gávea, e aí acabei em A horse with no name do America. Não me pergunte como, só cheguei lá e percebi que era a melhor música. Ficou no repeat durante a escrita e ainda roubei um verso. Trilha sonora é tudo pra mim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas, sou meio que nem a minha presidenta amada Dilma, deixo a meta aberta, sempre, o que pode significar escrever muito ou não escrever nada. Em boas épocas, escrevo todos os dias, mas é raro. Tento escrever pelo menos uma vez por semana. Como escrevo poesia, geralmente começo e termino o que tenho pra escrever no mesmo dia e volto nos dias seguintes pra dar aquela olhadinha do futuro. Queria conseguir me impor metas, mas não adianta ser ingênua e acreditar que vai ser possível. Quando eu fazia oficina de poesia todas as quartas-feiras, acabava me impondo de escrever algo pra levar, valer a pena o investimento, né? A oficina era à noite, então quarta durante o dia virou meu momento de escrever. Sim, em cima da hora, sim, na pressão.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As notas ficam todas na minha cabeça, raramente anoto e acho horrível não fazer isso porque vivo me esquecendo de coisas que queria escrever. Costumo dizer pras pessoas que estou escrevendo o tempo todo, ainda que eu não esteja anotando e colocando no papel. Considero o processo de ouvir, ler e observar a maior parte da minha escrita. Tudo o que me dizem, tudo o que leio, tudo o que vejo afeta o que escrevo. Sou bastante fofoqueira, então é como se eu criasse uma nuvem de histórias que vão me levar até o que tenho pra escrever. Outra coisa que curto fazer, pensando na pesquisa e na escrita, é ouvir uma história e deixá-la assentar em mim. Esqueço partes, esqueço nomes e datas, então começo o processo de inventar. Vou preenchendo as lacunas do esquecimento com coisas que gostaria que tivessem acontecido dentro da história. Mesclar o que me contam com o que invento me diverte demais, é a parte que mais gosto do meu processo de pesquisa e escrita. Outra coisa que faço (e que sei que é uma ferramenta comum dos meus contemporâneos) é passar horas na Wikipedia, clicando nos links como num passeio infinito. A aleatoriedade é meu lema (que compartilho com a Julia, minha companheira de cardume), me deixar levar por informações soltas, aproveitar a internet como uma boa millennial (meio burra pros macetes, mas sempre encantada com a tecnologia). Alguns dirão que isso é perder tempo, que é uma super exposição a informação. Pra mim não, pra mim é minha melhor forma de pesquisa, me deixar levar por esse mar de informações sem sentido. É um burburinho imenso e já falei ali em cima que sou fofoqueira (ou curiosa, pra ser mais agradável).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não faço ideia. Nossa, mas não faço ideia mesmo. Essa pergunta é pra levar pra análise. Acho que a única coisa que sempre penso quando essas noias batem é que precisamos estar vulneráveis. Sentir as travas, o medo, a ansiedade, faz parte do processo. O que não podemos é paralisar totalmente, adoecer com a expectativa do julgamento do outro (sempre o outro). Ah, sobre procrastinação, não acho um mal tão terrível assim. É no ócio que as coisas mais brotam na minha cabeça, então respeito muito esse período de espera, quase que como se deixasse a cabeça marinando um pouco. Tento não me colocar em um lugar de ansiedade, essas tentativas de corresponder ao tempo do mundo capitalista, da lógica produtivista. Costumo dizer que se não me divirto escrevendo, não quero mais escrever. Já me basta ter que trabalhar no mínimo 8 horas diárias nessa lógica do capital, se eu levar a poesia, que não é minha fonte de renda, também desse jeito, vou ficar doente. Não está nos meus planos adoecer de algo que gosto tanto de fazer. Então tento me divertir o máximo que posso quando escrevo, experimentar e achar graça do processo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, não tenho um número certo. Leio em voz alta pelo menos três vezes. Quando posso, gravo e escuto para sentir o ritmo. Levo muito a sério a voz na poesia, o ritmo, a cadência, ainda que meus versos sejam livres e por vezes nem versos sejam. Mostro sempre meus trabalhos especialmente para duas amigas e parceiras de vida, a Bianca Zampier, minha primeira leitora, e a Julia Manacorda, a poeta com quem mais dialoguei até hoje. Outra pessoa pra quem sempre mando e amo os conselhos é a Ana Carolina Assis, uma das poetas mais incríveis da minha geração, melhor lanterneira que já tive. Acredito na troca, acho importantíssimo escutar o que pensam quem compartilha o mesmo tempo no mundo comigo. Também produzo muito depois de ler o que elas produzem. Uma das coisas mais emocionantes pra mim é a troca que a escrita possibilita. Amo os aplicativos de conversa, uso todos, mando poemas por Telegram e Whatsapp. Poder mandar em tempo real para alguém algo que escrevi ou li, algo que me deixou de cabelos em pé, ouvir na hora uma opinião, inclusive saber se está péssimo ou ótimo. A troca, pra mim, é a parte mais importante da escrita. Seja lendo, seja sendo lido. Sem troca, não faz sentido escrever.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só escrevo no computador. Já tentei aderir a ideia do caderninho, mas não adianta, não consigo. Eu gosto do tec tec tec tec das teclas, gosto das músicas no fone de ouvido, do navegador com o Google aberto, com a Wikipedia, os chats de onde saem muitos dos meus versos. Roubo frases dos meus amigos, converso enquanto escrevo. Gosto da agilidade e da interatividade do computador. Tem gente que acha ruim essa paixão exclusiva pelo computador, já recebi várias vezes o conselho de ter sempre um caderninho à mão, alternar os suportes de escrita. Mas sou do computador, das nuvens, do celular. Amo a tecnologia, gente, não posso negar!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De todos os lugares, mas principalmente da minha família. Tenho pais narradores, eles vivem contando histórias, então sempre vou até eles cavar alguma coisa que eu possa aproveitar na minha escrita. Eles seguem morando na cidade onde nasci, Miguel Pereira, no interior do Rio. Lá o tempo flui de outra maneira, as histórias são parte intrínseca da vida no interior. Cada café, uma história. Então meu hábito é conversar. Seja com eles, com amigos, com desconhecidos, com livros, até mesmo com meus gatos, falar em voz alta, ouvir, estar atenta e distraída, esses são meus hábitos de escrita. É assim mesmo, só escrevo quando estou vivendo no mundo. Saio para conversar, acumulo coisas e volto pra escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu mudei muito. Passei de alguém que buscava uma escrita limpa, perfeita, para alguém que preza a experimentação, o estranhamento, o caos. Não digo que sinto vergonha de quem eu era no começo, mas às vezes bate sim um constrangimento. Fico feliz de ter estado vulnerável ao ponto de mudar tanto. Se eu pudesse voltar e falar com a Estela com 18 anos, a idade que comecei a escrever de fato, eu diria: se diverte mais, garota, não adianta sofrer por algo que não vai pagar seus boletos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria conseguir conversar mais com pessoas nas ruas, ouvir histórias de desconhecidos, narrar, narrar, narrar, seguir narrando as histórias dos outros. Eu amo ouvir, queria ter tempo para ouvir mais e cada vez mais. O livro que eu gostaria de ler? Os muitos que as mulheres ainda irão escrever, todas as nossas histórias silenciadas, as narrativas dos derrotados, as perdas, os fracassos, quero ler o que ficou em silêncio por anos, ouvir quem nunca foi ouvido. Não à toa faço parte da Mulheres que Escrevem. Batalho pelas narrativas que precisam de uma força para virem à tona. E elas virão.