Ésio Macedo Ribeiro é escritor, bibliófilo e fotógrafo, doutor em Literatura Brasileira pela USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando eu acordo vivo, eu digo: “Bom dia, dia! Estou aqui, vivo, pronto para enfrentá-lo mais uma vez!”
Piadas à parte, vamos à minha rotina matinal em Chicago, onde resido desde 2015. Acordo, leio um pouco na cama (no momento estou relendo os nove romances que Machado de Assis nos legou, na sequência de publicação deles), depois me levanto, como alguma coisa, inteiro-me das notícias do Brasil, e só depois vou ver o que tenho programado para o dia. Que pode ser não fazer absolutamente nada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Faço parte do clube dos notívagos, trabalho melhor à noite. Sempre gostei da noite para escrever. Lembro-me de quando estava escrevendo a minha tese de doutorado, de ficar até umas quatro da manhã trabalhando nela. Gosto imenso do silêncio com uma música de fundo (que pode ser até Rock).
Sobre meu ritual para a escrita, isto vai depender do que eu estiver escrevendo no momento. Se for um ensaio, pesquiso, leio, analiso, anoto e só depois ponho no papel, tudo como manda a cartilha. Se for prosa ou poesia, vou anotando o que vem à mente em uma caderneta que sempre carrego comigo, ou se a esqueço em casa, em algum pedaço de papel qualquer, e só depois começo a pôr isso em letra de forma.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não sou escritor profissional, desses que se sentam para escrever às sete da manhã e param ao meio-dia todos os dias do ano. Sou indisciplinado. Só escrevo quando alguma ideia me vem. E à medida que percebo que o material que vou juntando pode dar um livro, começo o trabalho de escrita propriamente dito. Que é o da lapidação do que eu tenho anotado. Neste estágio eu me dedico de corpo e alma a isso, fico incorporado mesmo. Mas mesmo neste momento eu não tenho uma meta diária, tipo: hoje vou escrever uma página ou dez páginas. Gosto de liberdade para criar. E sou um afortunado por tê-la.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Às vezes eu penso num tema para um livro de poemas e vou atrás dele, fazendo anotações o tempo todo. E se o trabalho que imagino exigir pesquiso. Mas no mais das vezes, só falo daquilo que experimento, do que leio, do que vejo e ouço, enfim, das minhas vivências e reflexões.
Eu não costumo jogar nada do que eu escrevo fora, ainda tenho anotações do meu tempo de adolescente arquivadas. De vez em quando eu recorro a elas, leio-as e, às vezes, algumas delas me motivam e/ou inspiram a escrever outra coisa. Que pode ser um poema, um conto ou um romance. Ou nada (risos). Eu nunca sei. De modo geral, viram poemas. Eu comecei pela poesia. Mas ter muito material atrapalha. É preciso seguir uma ideia, e a partir dela planejar o que se quer dizer. E, sobretudo, analisar se o que se pretende escrever é relevante. Quando chego a este ponto, começo a separar o joio do trigo. Trabalho que leva dias, semanas, meses e até anos. E é preciso não ter medo de cortar.
Se estiver escrevendo um ensaio, preciso pesquisar muito sobre, principalmente, o que já foi escrito sobre o objeto de estudo, para não correr o risco de apresentar o déjà-vu. Quando vejo que já tenho um bom levantamento, faço a seleção do material e inicio as leituras e as anotações. Só depois me sento em frente ao computador para elaborar o texto final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isto é problemático. Lembro-me de quando estava escrevendo a minha tese de doutorado para a USP, que teve 1.055 páginas divididas em dois volumes, e que quando faltavam menos de quatro meses para o término do prazo, que na minha época era de quatro anos e meio, de eu ter pensado em desistir. Isso porque eu não consigo fazer revisão pela tela do computador. E já estava muito cansado. Precisei, a cada versão, de imprimir o texto e revisar a mão, para só depois fazer as correções na tela. Foram muitas revisões, um trabalho árduo, de verdade. Como quando eu entro num projeto nunca o deixo inacabado, fui até o fim. O TOC me ajudou muito neste quesito (risos). O resultado do meu esforço foi a edição crítica da Poesia Completa do Lúcio Cardoso (Edusp/Imprensa Oficial SP, 2011).
Agora, uma coisa que me irrita muito, é quando uma casa editora me oferece um trabalho e eu aceitar, executar, concluir, entregar e ela prometer que vai publicar em tal data, mas não cumprir o prometido. Menciono isso só por estar com raiva de uma do Rio de Janeiro, que está com um grande e importante trabalho que realizei engavetado. Segundo ela, por conta dos problemas que atingiram a maioria das editoras brasileiras atualmente. Isto, de certo modo, desencoraja muito o autor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca sei quantas vezes irei revisar um texto antes de dá-lo por concluído. Por exemplo, o meu primeiro romance publicado, É o que tem (Patuá, 2018), que está semifinalista no Prêmio Oceanos de 2019, e que ficou finalista no Prêmio SESC de Literatura de 2015, eu revi inúmeras vezes. Principalmente após a distinção no Prêmio SESC. Como eu não ganhei, disse para mim mesmo, “Se ainda não está bom, mãos à obra, Ésio!” Foi o que eu fiz. E a vida é uma coisa muito incrível, às vezes parece que ela manda anjos para nos ajudar. Em 2017 eu fui internado por nove dias e aproveitei para rever esse romance. Naquele espaço de tempo eu o revi mais duas vezes, lendo-o em voz alta — que é quando eu mais percebo as falhas que deixei passar. Entre outras modificações, acrescentei um capítulo que não existia na versão de 2015.
Sobre mostrar os textos antes de publicá-los. Sim, eu tenho quatro amigos porretas que sempre se dispõem a ler os meus escritos e a meter a bordoada em meu texto. É bom demais da conta, são amigos muito sinceros e confiáveis. E como eles sabem que eu não tenho medo de crítica, falam o que pensam sem nenhuma cerimônia. Eu aprendi que uma das coisas mais importantes na vida do escritor é ter a humildade e a sabedoria de ouvir o outro. Sou completamente aberto a isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou muito ligado às novas tecnologias, mas para as minhas necessidades enquanto escritor, o que conheço e venho utilizando tem funcionando bem.
Meus primeiros rascunhos são realizados a mão, na maioria das vezes a lápis. Só depois passo para o computador. E quando vou passando, já vou fazendo as modificações. O que, creio, adianta muito o meu trabalho. Também não concluo uma página por vez, como fazem muitos escritores. Vou concluindo o livro todo de uma vez, indo e voltando nele inúmeras vezes. Se for um romance, a minha preocupação maior é com a continuidade. Problema que afeta a obra de muitos escritores, até mesmo a dos grandes, como Machado de Assis. Na primeira edição de seu romance Esaú e Jacó, aconteceu a troca do nome de uma personagem, problema que foi emendado nas edições posteriores. Cito mais um exemplo. No romance O último mamífero do Martinelli, de Marcos Rey, ele, desatentamente, troca de andar a morada de uma personagem, deixando o leitor confuso.
Eu sempre penso o livro inteiro, tenho cabeça de editor. Quando eu termino um livro, tenho todo ele montado na cabeça, capa, miolo, tudo. Até hoje, o único livro que eu não interferi na capa, por exemplo, foi o meu mais recente de poesias, Um olhar sobre o que nunca foi: (Ed. Urutau, 2019). Pelo fato de os projetos gráficos daquela editora serem de uma beleza absurda.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm principalmente das minhas vivências, sobretudo daquelas pensadas ou formuladas nas muitas viagens que já fiz e que ainda faço dentro do Brasil e pelo exterior; das conversas que tenho com conhecidos ou mesmo com pessoas completamente desconhecidas. Eu falo com todo mundo que esteja disposto a um diálogo e mesmo que não, sou muito curioso quando viajo. Pergunto sempre, observo hábitos, costumes, tradições. Fotografo, coleciono fôlderes, compro CDs, livros, artesanato, obras de arte etc. E da reunião disso tudo é que brotam os meus escritozinhos. No mais das vezes, e mais agora que eu fiquei viúvo, para me manter criativo, eu filosofo. Eu comigo. Concentrado. Dia e noite. O vazio é minha máxima companhia agora. Vazio que vai dar em alguma coisa que eu ainda não sei.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu aprendi sobremaneira que o menos é mais. Enxugar, enxugar, enxugar. Deixar só o tutano. Só o perfume da flor. Só o silêncio de João Gilberto. Para quem entende, uma coisa assim: Octávio de Faria, que foi dar em Lúcio Cardoso, que foi dar em Clarice Lispector…
Sobre o que eu diria a mim mesmo sobre voltar à escrita dos meus primeiros textos, eu diria: “Perca a ingenuidade e enfrente o dragão, rapaz!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou maturando um novo romance, já o tenho todo na cabeça e muita coisa anotada. Já elaborei como serão as partes, a sequência e, no presente momento, estou buscando no meu HD mental os arquivos de alguns momentos vividos por mim e que desejo ver inseridos nele. Mas não posso adiantar mais do que isso.
Outro projeto é a biografia (necessária!) do Lúcio Cardoso. Na verdade, este é um projeto bem antigo, e por ser antigo estou bem preparado para ele. Tenho a maior cardosiana do mundo na minha biblioteca. Tudo e mais um pouco de e sobre o belo moço de Curvelo. Eu inclusive já iniciei as entrevistas com pessoas que o conheceram, familiares e amigos. Mas que por uma série de problemas que atingiram a minha vida nos últimos seis anos, que culminaram na morte do meu companheiro de 27 anos de caminhada, tive que adiá-lo. Com minha vida entrando nos eixos, voltarei a ele.
Não imagino um livro que eu queria ler e que ainda não exista. Prefiro ler o que já existe. Por outro lado, eu gostaria muito de ler um novo livro que fosse tão obra-prima quanto Cem anos de solidão ou Grande-sertão: Veredas.