Erre Amaral é escritor e professor, autor de Do mundo, suas delicadezas, (Penalux, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre acordo muito cedo, já que não durmo bem. Levanto, vou acordar meu filho. Quando ele quer, preparo o seu café da manhã. Faço hora zapeando as redes sociais no celular até dar a hora de levá-lo para a escola. Quando volto, preparo meu desjejum, normalmente como frutas com aveia e linhaça. Mas há vezes em que aceito a tapioca ou o cuscuz que minha esposa faz, acompanhado de café com leite. Depois disso, vou lavar a louça. Pode parecer estranho, mas gosto de lavar louça, quanto mais acumulada melhor. É um momento terapêutico. Coloco uma playlist no celular e, calmamente, vou esfregando esponja e detergente, começando pelos pratos, depois os copos, os utensílios de plástico, as panelas, por último, os talheres. Enquanto isso, meus pensamentos transbordam delirantes, percorrendo as minhas neuras, manias, confusos desarranjos do por-fazer e do não-feito, enquanto a água e o sabão vão cuidando de lavar o que as minhas mãos seguram e deixam escapar, provocando uma sensação de alívio na parte de dentro de minha caixa de carne, nervos, ossos e músculos. Agora é hora de tomar banho, um dos maiores prazeres que tenho ao longo do dia, pois a mesma sensação de alívio é elevada a uma potência superior. Dirijo-me, então, ao meu escritório, sim tenho um pequeno, mas belo e aconchegante escritório. Não fosse o calor infernal de Palmas, confesso que eu o amaria mais. Ligo o notebook e, enquanto fico aguardando abrir o Google Chrome e a pasta de documentos, pego a agenda e vejo o que está programado para o meu dia, aproveitando para anotar os compromissos novos. Não tenho uma vida saudável sem a minha agenda. Dependo dela para não furar com ninguém. Agenda pronta, abro o e-mail da universidade em que trabalho e me inteiro do babado acadêmico. Na sequência, entro na página do Globo Esporte e vou ver o novo dissabor que o Fluminense reservou para mim. Clico no link da Folha de S. Paulo e me inteiro das novas/velhas mazelas da política brasileira. Daí o Facebook, uma boa passada na barra de rolagem, e vamos cuidar da vida que a morte é certa, não é? Me ocupo, então, do que está na prioridade: preparar aula, continuar os estudos preparatórios para o pós-doc em estudos literários na UFMG em 2019, e, aí sim, dar continuidade à escrita, lenta e custosa, de dois novos romances, e de um livro de poemas, para os quais não marquei data de término.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Prefiro escrever pela manhã, quando o calor ainda não é um tormento. À tarde, normalmente tenho alguma atividade na universidade. Se eu estiver em casa, então escrever ou ler é um castigo. À noite, quando não estou ministrando aulas, me dedico totalmente à leitura, normalmente um romance que está sempre precedendo o próximo. Escrevo diretamente no Word. Já tentei fazer o exercício de escrever primeiramente em cadernos ou moleskines, mas o máximo que consegui foi fazer apenas breves anotações. Não tenho propriamente um ritual para escrever, mas só consigo me lançar à escrita literária depois de cumpridas todas as obrigações acadêmicas, senão não tenho cabeça para escrever uma linha sequer. Isso implica um constante adiamento na dedicação aos meus projetos literários. Afora isso me vejo invariavelmente na escrita de algum artigo ou ensaio que preciso enviar para um periódico ou uma revista. Quando, finalmente, tenho um tempo só meu, busco me dedicar intensamente à literatura, para alcançar, muitas vezes, as poucas linhas de um relutante parágrafo fadado ao cesto de lixo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo nem um pouco todos os dias nem em períodos concentrados, escrevo quando, em primeiro lugar, consigo vencer a preguiça, o tédio e o desânimo, depois, quando o tempo me permite ou dou permissão a tal tempo, por fim, quando me sinto mobilizado por uma “ideia prisioneira”, para utilizar uma expressão de Liérmontov, poeta russo. Disso decorre que sou um escritor procrastinado e sem metas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pela primeira vez estou experimentando ser um escritor tomador de notas antes de começar uma nova narrativa. Confesso que não está sendo fácil, pois quanto mais faço anotações, mais vejo a escrita do meu próximo romance se distanciar de seu início. Preferia o meu modo de ser escritor de antes, que se lançava a escrever uma história a partir de uma ideia-chave sem saber aonde ela ia chegar. Era o escritor escrevendo o próximo capítulo conforme a própria história ia ditando. Porém, para os dois romances que estou preparando, a figura desse tal escritor-pesquisador, necessariamente, tem que ocupar o seu lugar. Num dos casos, tem a ver com as longas horas de gravação de áudio (e sua respectiva cansativa transcrição) que tenho realizado junto ao meu pai, para colher sua memória de histórias orais desde sua partida de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte, aos seis anos de idade, no final da Segunda Guerra, até sua chegada no antigo Território Federal do Guaporé, onde passou sua infância, juventude e boa parte da vida adulta. Para o outro romance, a exigência é a retomada das anotações de vários romances que li, para a composição de uma espécie de metanarrativa ou metaliteratura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A única forma que conheço para lidar com as travas da escrita e com a procrastinação é simplesmente esperar, dar um tempo. Infelizmente, no meu caso, tal espera não amaina a minha ansiedade. Portanto, nesses períodos de inatividade, eu peno dobrado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os meus textos até a exaustão. Quando sinto que já terminei, reviso mais uma vez. Há dentro de mim um crítico e um inquisidor terríveis, mas eles são insuficientes para impedir que eu escreva bobagens. Costumo dividir meus escritos com alguns raros amigos e amigas, de total confiança. Nesse pequeno grupo se inclui minha esposa e um mano do peito, o poeta Alisson Azevedo, que existe em Goiânia e pune por mim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma ótima relação com a tecnologia quando se trata de literatura. Já escrevi para um blog e fui editor e colunista de revista eletrônica. Escrevo diretamente no computador, inclusive os rascunhos, num esquema assim: experimento 1, experimento 2, experimento 3…, numa tentativa de formar uma espécie de arquivo das minhas escritas. Escrevo à caneta apenas breves anotações ou esboços.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou um leitor contumaz, normalmente minhas ideias vêm de personagens e tramas de leituras de romances, de contos e até de poemas. Claro que a coisa não para por aí, pois ao lido se reúne o vivido, ou seja, as histórias que ouço, que experiencio. Na realidade, depois do livro pronto a gente nem sabem mais localizar nem a matriz nem os outros elementos dos quais resulta a história, muitas coisas se misturam no processo: leituras, vivências, histórias ouvidas, sonhos, ideias fixas, etc. É um compósito muito caótico esse que transformamos em narrativa, muito do que o filósofo francês Paul Ricoeur chama de a “discordância-concordante” ou a “concordância-discordante”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
É curioso, mas no meu caso, não dá para confirmar aquela história de que o que conquistei foi maturidade no meu processo de escrita. Quando se trata de literatura, essa coisa de maturidade pode significar estagnação, repetição, fórmula manjada. Ao contrário, vejo que a cada livro que escrevo me é exigido uma nova experimentação, uma nova forma de escrever, uma outra maneira de lidar com as palavras, diria mesmo até outro estilo. Para isso não há maturidade que resolva, pelo contrário, penso que é necessário se postar como um noviço, um neófito, no sentido de desarranjar tudo que foi feito e se lançar a uma proposta que ao menos figure como inovadora. Em relação à minha tese, nela nada mudaria, gostei muito do que fiz.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sinceramente, gostaria de usufruir de um longo período sabático no qual eu apenas me dedicasse à leitura e à escrita. Mas parece que isso está para além de um projeto, muito mais próximo daqueles sonhos irrealizáveis. Mano, eu tenho tanto livro que já existe para ler, e que sei que não vou conseguir, que não preciso aumentar mais o meu sofrimento pensando num que ainda está por vir, se é que virá.