Érica Bombardi é escritora, autora de Canto do Uirapuru.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante muitos anos eu trabalhei em uma editora, então minha rotina era acordar e ir para o trabalho. Mas, depois do segundo filho, eu fiquei em casa, dividindo-me entre as tarefas da casa, das crianças e dos freelances. O que faço de mais frequente é acordar às seis, levar as crianças para a escola, trabalhar em freelances por quatro horas, pegar as crianças na escola ao meio dia, preparar o almoço, e ter a tarde para ajudar nas tarefas da escola e continuar o trabalho freelance ou escrever ou levar as crianças para algum compromisso ou médico. À noite, geralmente, tento ler ou assistir a algum filme. Não são raras as vezes em que falho espetacularmente.
Ainda sonho em ter uma rotina que inclua longas caminhadas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De início, eu escrevia à noite e aos finais de semana, mas nessa época eu já tinha um bebê então não era tão fácil assim. Na maioria das vezes, eu fazia anotações em papéis e jogava em minha bolsa, e ia imaginando a história em minha cabeça. Quando eu sentava para escrever, eu me esforçava para ser rápida, e ajudava já ter um rascunho mental traçado.
Depois do segundo filho, eu passei a escrever à tarde e, quando conseguia, de manhã, mas sempre em momentos roubados. Difícil ter um grande tempo como três a quatro horas consecutivas.
Sinto que escrevo melhor à noite, depois que todos já foram dormir, ou bem cedo quando ninguém ainda acordou. Gosto do silêncio.
Sobre rituais, prefiro que a mesa esteja arrumada, pego sempre um copo de água, é agradável quando o ambiente está em um mínimo de organização e limpeza. Gosto de ler uma poesia antes de começar qualquer escrita, é como uma oração. Gosto de estar perto de minhas plantas e de livros. Houve um tempo em que eu acendia uma vela, mas não tinha nada de religioso, era apenas para ver o fogo dançando. Eu contei para um colega e ele me disse que Bachelard tinha um livro chamado A chama de uma vela, que tecia relações entre a chama da vela e o sonhador. Bom ver que ao menos não estava louca sozinha.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tento estar com a escrita todos os dias. Não preciso escrever nada maravilhoso ou novo, mas preciso ter o contato. Posso escrever alguns versos, ou uma ideia, ou uma anotação de um sonho, ou rever algo que já escrevi. O que não posso é ficar afastada, pois isso me angustia. Estar longe da escrita me deixa à mercê de um pesadelo qualquer.
Se eu não estou escrevendo algo que planejo (como um conto, ou um poema, ou uma novela), eu escrevo textos automáticos, qualquer coisa que surja na mente coloco no papel, em um tempo cronometrado de vinte a vinte e cinco minutos. Isso me ajuda a me manter na vibração da escrita.
Não tenho meta diária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para cada livro foi um processo diferente.
Em Além do deserto, meu primeiro, tracei um esquema da história, muito resumido, e comecei a escrever, um capítulo a cada semana, e quase não fiz pesquisa alguma.
Para Canto do Uirapuru, meu segundo, fiz um resumo da história também e comecei a escrever, mas levei muito mais tempo em cada capítulo, além disso eu busquei a história de minha própria família e também a do país na época do café (coisa que decidi cortar).
O livro que estou escrevendo agora me deu uma rasteira, me perdi em pesquisas e, quando vi, entrei em um labirinto do qual não tinha ideia de como sair, acho que muita informação pode ser desnorteante, daí tive que deixar tudo na gaveta por três anos para decantar e restar na memória só o que servia à história, daí fluiu de novo.
De uma forma geral, eu acho começar sempre difícil, apesar de ser também excitante. Eu vi na internet uma frase de William Faulkner: “Writing a first draft is like trying to build a house in a strong wind”, “Escrever um primeiro rascunho é como tentar construir uma casa em um vento forte”. É difícil começar a escrever, criar algo do nada. Acho que escutei em um vídeo da professora Lúcia Helena Galvão, sobre o livro A guerra da arte, que o artista se move entre planos: entre o da realidade sensível (que é onde ele escreve sua história) e o plano sutil (que é de onde ele tira suas ideias), e que essa viagem entre atmosferas tão diversas não é fácil, por isso escrever (especialmente iniciar um novo projeto) nunca é fácil. Eu gostei dessa versão transcendente para explicar a jornada do artista. Para mim, soa como levar um tanto de areia nas mãos por uma longa distância, é inevitável que grãos se percam no caminho, você fica com a maioria da areia nas mãos mas traz vívida a sensação de que algo lhe escapou.
Mas a verdadeira tessitura da escrita (para mim) vem na reescrita. Meu primeiro rascunho é um trapo lamentável, por vezes eu sinto as personagens irritadas comigo e eu sei que eu tenho que corrigir muitas das coisas que elas certamente não fariam ou não diriam. Eu sou muito manteiga derretida, mas geralmente minhas personagens não são, e elas não gostam que eu tente florear muito. No primeiro rascunho, meu texto tem indicações sobre o cenário, mas descrições bem pobres, e isso eu também corrijo depois. A mim, parece mais fácil (ou possível) trabalhar “a história” em romances e novelas, e “a personagem” e “o narrador” em contos; mas “o cenário” e “o tempo” ainda são relegados a segundo plano.
A última etapa da revisão é eu escutar o texto falado, mais de uma vez. Para isso, uso o recurso de “ler em voz alta” do Acrobat Reader. É ótimo pois o programa impõe o ritmo, o que não me deixa ter a desculpa de cansar a voz ou esmorecer por uma preguiça qualquer.
Todo o processo, desde o primeiro rascunho até o final, demora de um a cinco anos. Isso apenas em minha mão.
Acho que o que facilita iniciar a criação de um texto é ter o hábito de leitura. Eu fui durante mais tempo leitora do que editora, e fui mais tempo editora do que escritora. Ler muito, trabalhar muito o texto dos outros, me ajuda a ter um grande arcabouço de histórias e palavras, como uma biblioteca em minha mente. Também facilita você escrever sobre o que você gosta de ler, não se forçar a ter um estilo que não é seu, não se forçar a escrever uma história que não é a sua. Isso é diferente de “estar em sua zona de conforto”. Eu, como escritora, sinto quando uma história “é” minha e quando ela não é.
Outro fator é a formação do escritor. A formação do artista é algo muito sério e muito pouco discutido. Não sei de quem seria essa responsabilidade. Não sei mesmo. O que sempre acho muito engraçado é que, depois que um artista morre, ele é lembrado como um patrimônio cultural de seu país, mas, ao estar vivo, quase não há nenhum interesse nele. Eu vi um desses eventos com escritores em que um deles dizia que a arte era um assunto de extrema seriedade pois ele passava até fome por ela. Isso mexeu comigo, pois é verdade. Outro exemplo foi Orides Fontela, poeta brilhante mas que não tinha nem onde morar. E também não há como não lembrar de Hilda Hilst, tantas entrevistas vi em que ela reclamava da falta do interesse dos leitores, da mídia, dos editores, do país, e agora ela é atração principal em eventos, há edições e reedições de suas obras. Sabe, eu pagaria para escutar o que ela teria a declarar hoje sobre essa situação.
O que percebo sobre a criatividade é que quanto mais a exerço, mais a sinto fluir. O artista se forma durante sua vida inteira, desde que inicia seu primeiro movimento em direção à sua arte até seu último suspiro. O que seria de nossos artistas se eles tivessem tempo e condições para crescer e florescer?
Ainda mais do que isso… Imagino, então, o que seria se nascer em uma família em que a arte fosse valorizada, em uma família em que a arte fosse tratada como essência do indivíduo, de sua alma, de sua constituição como pessoa. Penso muito nisso: como seria uma criança ser um artista em uma família de artistas, se ela pensaria e sentiria o mundo de uma forma nova (assim como imagino que um músico escuta e distingue e aprecia mais sons que eu ouço, entende?) Mas acho que para ser mais próximo da arte se precisa de algo que não sei o que é, não descobri ainda. Acho que ajuda, sim, você nascer em um meio artístico, e ajuda sim você nascer em um meio abastado, mas não é apenas isso.
O livro foi e ainda é meu contato com a arte. E não me sinto imersa nesse universo a ponto de dizer que “toco de ouvido”. Como já disse, tenho sempre a sensação de que falta algo. Talvez essa sensação seja o que me leve a buscar por algo além, e que isso seja para mim a arte, não sei.
Se eu a bloqueio de alguma forma, pensando no mercado, em vendas, em retorno financeiro, em materialidades (que, verdade seja dita, não há como não pensar nisso se a pessoa tem que pagar contas nessa vida), a criatividade diminui drasticamente.
Não sei pensar a arte sem ser um encontro, e acho que ela se completaria nesse encontro. Por isso, o leitor é importante. Entendo quando Hilda Hilst reclamava da falta de leitores, eles são a parte que não existe na escrita, a parte que não existe para o escritor no momento da criação do texto. Quando crio um texto, eu estou lá no meio da história, eu não estou contando a história para ninguém, estou lá no meio dela, vivendo no meio dela, então não há espectador, não há um leitor, nem mesmo uma sombra de leitor, nem mesmo um leitor ideal. Mas depois de a história estar pronta, depois de colocada a obra no mundo, aí acho que sua arte se faz apenas nesse encontro com quem a lê. E aí se evidencia essa falta de que Hilda tanto falava em suas entrevistas, a falta que nossos artistas brasileiros sofrem durante a vida inteira.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Demoradamente.
Eu travo a cada vez que penso no mercado, a cada vez que penso “para que estou fazendo isso?” Essa pergunta acaba comigo. É difícil eu me dedicar a uma tarefa que não me traga retorno financeiro, que não seja utilitária, pragmática, deve ser o jeito que fui criada. É um tempo que sei que não estou trabalhando para pagar pela educação ou saúde de meus filhos, dói pensar nisso. Mas eu tenho que fazer isso por motivos que não são nem um pouco materiais, que transcendem a qualquer explicação lógica e materialista. Deu para perceber que esse ciclo demora, né? Por isso eu tenho que evitar entrar nele. Não sei como saio dele. Cada vez é uma coisa, ou uma soma de coisas diferentes, caminhar, filmes, poesia, escrever aleatoriamente, pisar em legos no tapete da sala.
A procrastinação é outra coisa. Tenho dificuldade de saber se é procrastinação ou meu cérebro buscando uma sombra. Então eu relevo bastante. Estou tentando não ser tão dura comigo mesma.
Medo de não corresponder às expectativas… acho que isso é bem ligado ao perfeccionismo. A gente nunca atende às expectativas. Eu estou envelhecendo e atendendo cada vez menos, com a graça dos céus.
Ansiedade de trabalhar em projetos longos… Eu sei que vai demorar, por isso eu tenho um método: as partes que estou mais ansiosa por resolver eu escrevo antes. Mesmo que durante a história tudo vá mudar e nada daquilo vá existir, não importa, o que eu tenho que fazer é tirar aquela maldita vozinha da cabeça, aquela pressa para chegar logo àquela cena. Então eu apenas me teletransporto para lá, e pode ser uma cena inteira, ou apenas um trecho, ou apenas um diálogo, eu escrevo e me liberto da angústia.
Há ainda os projetos em que eu começo e não sigo adiante, a história se perde, ou o apelo se vai, e o texto para e eu deixo assim. Se for importante, a história ou as personagens voltam de um outro jeito em outra ocasião. Paciência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muitas vezes. O ideal é que eu escrevesse um primeiro esboço muito rapidamente, para que a ideia saísse inteira, sem interrupções e sem perdas, e depois eu fosse aumentando os capítulos com detalhes, mais cenas, mais diálogos, mais desenvolvimento de personagens etc. Acho que isso facilitaria e diminuiria a quantidade de revisões.
Mas apenas uma vez eu consegui um primeiro esboço rápido.
Então eu faço muitas revisões pois às vezes eu tenho que mudar algo na ideia principal. Ou acontecem outros imprevistos, no Canto do uirapuru, por exemplo, eu mudei o foco narrativo quando já estava caminhando na história, de maneira que tive que voltar e reescrever. Quanto mais altero um texto, de mais revisões eu preciso.
No início eu mostrava meu texto a muita gente: para minhas irmãs, minha mãe, minhas tias, amigas, leitura crítica contratada, leitura beta. Agora estou diminuindo, pois a vida vai se complicando para todos, mas acho sim muito importante ter essas leituras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Se é um texto mais longo, prefiro escrever no computador. Já fiz anotações no celular, mas não consigo ter agilidade. Às vezes, escrevo textos mais curtos (contos e poemas) à mão. Eu li o livro O caminho do artista, da Julia Cameron, e ela disse para treinar a escrita à mão, em vinte minutos diários, como uma escrita automática, para desbloquear, para deixar fluir a criatividade.
Acho que cada meio pode nos ajudar em algo, desbloquear algo em nós, treinar algo em nós, provocar algo: escrever à mão, digitar no computador, em uma máquina de escrever, usar caneta tinteiro, tentar escrever com giz de cera, escrever com pincel e tinta. Não custa nada fazer experimentos para exercitar a criatividade.
Mas, no dia a dia, eu fico com meu laptop. Quando eu viajo, eu levo um caderno.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Quando posso, eu caminho na natureza, entre árvores, gosto disso, gosto de escutar o vento e os passarinhos, gosto de observar os insetos. Gosto de visitar livrarias. Na época da faculdade, eu andava pelas bibliotecas. Gosto de assistir a filmes, seriados, animes, e ler livros e quadrinhos. Gosto de filmes que lidem com o “tempo”, que é algo que tenho dificuldade de trabalhar nos textos e que também me fascina. Apenas em lembrar de Mulholland Drive e A Estrada Perdida de David Lynch sinto cócegas em meu cérebro e faíscas. Gosto bastante de animes, recentemente vi o Your name, de Makoto Shinkai, e tive vontade de criar algo assim tão doce e cheio de esperança. Também apenas agora conheci Satoshi Kon, e estou vendo tudo dele. Gosto muito das produções do estúdio Ghibli Meu vizinho Totoro, A viagem de Chihiro, Serviço de entregas da Kiki, O castelo animado, e Princesa Mononoke.
E de onde as ideias vêm? Para mim é como um caleidoscópio. Cada memória, cada parte do hoje, do ontem, cada filme a que assisti, cada imaginação, sonho, cada medo, pesadelo, cada viagem, experiência, o que eu vi, senti, giram, tudo isso se fragmenta e depois se junta, giram, e depois se fragmenta de novo, e se junta de novo, como um caleidoscópio.
E de onde as palavras vêm? Uma depois da outra? A gente conhece todas elas, pois aprendemos na escola, porque é nossa língua materna, porque temos uma grande variedade delas coletadas pelo hábito da leitura etc. Mas o encadeamento delas, as frases do jeito que escrevemos, acho que esses são os mistérios.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Esses dias eu disse a um amigo que fazia aniversário que, quando eu me lembrava da faculdade, parecia a vida de outra pessoa e não a minha. Acho que a gente muda tanto que é difícil explicar, e, ao mesmo tempo, a gente não se sente envelhecer por dentro, apenas mudar.
Eu comecei a escrever por dois motivos: um, porque eu brequei o ritmo em que estava para ter meu primeiro filho; dois, porque minha irmã do meio foi para o exterior e se sentia sozinha. Ter um filho me fez me voltar para o chão, literalmente. Uma criança pede para que você sente no chão com ela, uma criança tem um tempo mais estendido, que não cabe em minuto nenhum, é um tempo diferente, não é o do mundo do relógio, é o tempo da mãe natureza. Eu parei, e isso faz qualquer um pensar. Motivo dois, minha irmã estava se sentindo sozinha e ela estava longe, daí eu escrevia longos e-mails para ela. Logo eu tive oportunidade para me lembrar que eu também gostava de escrever na escola, daí eu passei a criar histórias de aventura para minha irmã ler, e assim nasceu em fascículos meu primeiro livro.
Depois do primeiro livro, eu comecei a pensar que mais pessoas poderiam ler o que eu escrevia. Aí mais algo mudou, algo que me deu um medo diferente daquele que foi “brecar o ritmo”. Depois do primeiro prêmio literário, outro medo surgiu, um que veio acompanhado de expectativas, uma vozinha que dizia “será que vai acontecer alguma coisa?” Mas não sei se eu conseguiria viver e não criar medos, não importando a área em que eu resolvesse trabalhar. Algo da ingenuidade da escrita se perde com tantos medos assim, mas acho que é inevitável, e talvez seja até parte do processo, ao menos do meu processo. Só sei que não consigo evitar no momento.
Se eu pudesse voltar ao início, talvez dissesse para eu caminhar mais, todos os dias, e talvez escolher uma casa sem escadas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sobre o novo projeto. Eu estou terminando uma história juvenil sobre bruxas, mas eu já tinha rascunhado uma novela mais adulta sobre a vida de uma menina em uma fazenda afastada do mundo inteiro. Então estou um pouco louca para acabar uma e começar a outra, até porque a linguagem delas é muito diferente, e eu acho que terei que fazer uma imersão no universo dessa segunda obra antes de iniciar sua escrita.
Sobre a leitura. Eu fui a um curso de escrita em que conheci um rapaz que disse estar escrevendo um romance em que ele não fazia menção alguma ao gênero de suas personagens. Eu achei uma ideia tão maravilhosa. Não sei como ele fazia aquilo funcionar na narrativa mas fiquei com muita vontade de ler um livro assim.