Érica Bombardi é escritora, autora de Canto do Uirapuru.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Ultimamente sinto que é a semana que me organiza. Estou respondendo esse questionário em 2021, em pandemia, país em crise, a maioria das famílias brasileiras em luto e também em necessidade. Não sou exceção. Estou mais focada em meu trabalho de editoração freelance; porém consegui terminar um livro em que vinha trabalhando desde muito antes, e estou revendo meus escritos.
Se consigo lidar com vários projetos ao mesmo tempo: acho que sim; gosto de revisar meus textos antigos mesmo quando estou pensando em um novo livro ou conto. É mais ou menos o que ocorre com as minhas leituras, eu sempre estou com mais de um livro ao mesmo tempo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu tento planejar antes, sim. Faço uma pesquisa sobre o tema, imprimo, coloco em uma pasta. Depois eu monto a estrutura do livro, como penso na sequência dos capítulos –um apanhado de ideias apenas, nenhuma descrição longa. Às vezes, faço desenhos do cenário, dos personagens. Dedico-me mais aos personagens e ao “tom” da narrativa. Se não encontro essa voz da narrativa, a escrita pode até se iniciar mas trava.
Eu começo a escrever por onde tenho mais vontade; seja uma cena do início, ou do meio, ou até como acho que o livro vá se encerrar. Geralmente, o início é mais difícil, eu volto para reescrevê-lo várias vezes. A frase de abertura tem que soar verdadeira e honesta.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Eu tentei arrumar o escritório como “meu habitat”, mas meus filhos tomaram posse, então não me restou espaço lá. Eu adoraria um ambiente próprio, um canto apenas para eu me dedicar à escrita, e silêncio. Silêncio é um luxo. O ideal seria, sim. Mas escrevo onde consigo e quando consigo, na cozinha, na sala, em uma mesa ou com o note no colo. Só não consigo escrever com a televisão ligada ou no meu quarto. Mas, no geral, até que consigo me concentrar bem. A única rotina que sigo ao escrever é iniciar com a leitura de um poema, como uma pequena oração, e, se não sinto uma ideia urgente, eu começo relendo e revisando o capítulo anterior e daí sigo escrevendo.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Em meu primeiro livro, Além do deserto, eu escrevia à noite e de madrugada, e fluía muito facilmente, pois, antes, eu conversava sobre o que ia escrever com minha irmã, e isso me incentivava. No livro Canto do Uirapuru, eu tinha algumas horas em que não trabalhava e também em que as crianças estavam na escola, daí eu me dedicava integralmente à escrita; mesmo que me sentisse travada, eu insistia e, se não saísse nada mesmo, eu revisava o material que havia escrito antes. Isso – a revisão do que já escrevi – parece ajudar a pegar o ritmo, e passei a ter esse hábito.
Mas, quando não tenho tranquilidade para escrever, não insisto. Faço outra tarefa qualquer – trabalhos freelances, trabalhos da casa, ajudar os filhos, cuidar do jardim, passear com a cachorra, caminhadas.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Acho que me deu mais trabalho o As chaves do invisível, pois eu queria escrever uma história com conteúdo (que eu não dominava) e que tivesse uma estrutura diferente, com muitos flashbacks e linhas temporais. Pensar na história assim, em um desenvolvimento não cronológico, foi difícil.
Eu me orgulho de todos, mas tenho especial carinho pelo primeiro, o Além do deserto, porque eu não pretendia absolutamente nada enquanto escrevia, apenas me divertir e divertir minha irmã. Foi uma escrita despretensiosa, no sentido de eu não pretender nada e também não ter expectativas sobre “como a história seria um livro”. Eu apenas contava uma história, e não escrevia um livro. Havia zero de ansiedade e expectativas. E, anos depois de a história ser escrita, eu a coloquei no Proac e consegui o apoio para publicação. Para mim, foi surreal.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Sou um tanto esotérica nesse sentido. Acho que os temas me escolhem – mas não de uma forma passiva. É algo que surge de minhas atividades, de minhas buscas, de minha caminhada. Os temas aparecem a meu redor e eu os acolho. Normalmente é uma ideia que se fixa e não me deixa por mais tempo que transcorra (pois eu demoro a escrever).
Ao escrever, os únicos leitores em que pensava eram minhas irmãs, minha mãe, minhas tias, as mulheres de minha família que me rodeiam/rodeavam.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Não gosto de mostrar rascunho algum… posso discutir um tópico ou outro com minhas “leitoras da família”, mas não leio nada para elas até ter uma primeira versão finalizada. Minhas únicas leitoras são as mulheres de minha família. Já contratei leitura crítica e gostei bastante, mas hoje não faço mais isso.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu comecei a escrever para minha irmã Camila. Eu propus que ela me escrevesse algo e me enviasse, e eu faria o mesmo. Algo no estilo de folhetim. Isso nos deixava animadas. E esse era meu intuito inicial, animar minha irmã que foi morar no exterior e se sentia sozinha. No caminho da escrita, eu fui relembrando o quanto eu gostava de escrever quando era menina na escola, e em como eu me distanciei disso no decorrer da labuta diária, o que acho ser normal para toda gente. E eu tive meu primeiro filho, e meu ritmo mudou drasticamente, eu me voltei mais para a “vida interior”, e a escrita aí fazia todo sentido.
No início da caminhada da escrita, acho essencial ter um amparo, como um ninho que você mesmo constrói, um lugar em que você nutre sua arte e sua alma. Procure fazer atividades que te satisfaçam, que estimulem sua curiosidade, que te encorajem a seguir adiante, que te fortaleçam para que não desanime ou desista. Olhar para a arte é olhar para você mesmo, seu interior, sua criatividade, sua paixão, sua chama. Para mim, isso funciona.
Se eu puder dar mais um conselho (baseado em minha experiência), seria: não se preocupe com o mercado editorial, apenas escreva o que quiser. Não exija que sua escrita pague suas contas. Se acontecer, será ótimo, mas, se não aguentar a pressão, tenha um trabalho em uma área diferente.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Meu estilo é uma face de como eu mesma sou. Mas eu apenas reconheci isso quando um leitor me apontou. Era óbvio, mas eu não via. No geral, o estilo é a gente mesmo. Mas há detalhes, refinamentos que seguimos ao escrever, a decisão por frases curtas ou longas, intrincamento ou simplicidade, por uma palavra ou outra, pela repetição, pelo tom, por diálogos curtos ou longos, por silêncios, e por aí vai. O estilo vai se consolidando ao se escrever. Você só consegue escrever com sinceridade quando permite ser e mostrar o que você é. E acho que essa é uma conquista da caminhada, não é possível se encontrar isso logo de cara pois exige amadurecimento.
A influência de outros autores é inegável para todo escritor que também é um leitor ávido. Eu sempre gostei de ler fantasia, ficção científica, e também autores consagrados, como Fernando Pessoa e Clarice Lispector – pelos quais fui obcecada em minha juventude.
Atualmente, leio muita poesia. Procuro por mulheres poetas, e acho que elas me influenciam sempre. Passei a gostar muito de Cecília Meireles, há uma sinceridade e humildade nela que a tornam grandiosa demais. Há outras poetas que falam sobre a dor, o desejo, a vida, a morte, a solidão, a incompreensão com tanta naturalidade e profundidade que me atordoam. Admiro Helena Kolody, Alice Ruiz, Hilda Hilst, Sophia de Mello Breyner Andresen, Emily Dickinson, entre tantas. A poesia me faz enxergar além de minhas limitações.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Cânticos, de Cecília Meireles; Livro do desassossego, de Fernando Pessoa; Instruções, de Neil Gaiman; Alice no país das maravilhas; O elefante, de Drummond; Primeiro amor, de Samuel Beckett; Um teto todo seu, de Virginia Woolf; Mulheres que correm com lobos, de Clarissa Pinkola Estés; Sono, de Haruki Murakami, e, fora do universo dos livros, indico Satoshi Kon e seus animes.