Érica Babini Machado é doutora em direito pela Universidade Federal de Pernambuco e professora da Universidade Católica de Pernambuco.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho um filho de dois anos de idade e, por ter esperado muito para viver a maternidade, curto o período que estamos juntos intensamente. Isso faz com que minha rotina seja moldada conforme as necessidades dele, o que significa ter um cotidiano que muda de tempos em tempos. Um bom exemplo dessas alterações é esse exato momento em que escrevo: meu pequeno começa a escolinha e nesse primeiro grande desligamento eu ainda não sei como será essa rotina, de modo que posso responder a essa pergunta com um sim – tenho rotina, mas não tanto como gostaria.
Mas de todo modo vou narrar um pouco da minha rotina de mãe, professora, pesquisadora e advogada.
Pela manhã acordo cedo, cerca de 5h30. Em alguns dias dou aula às 7h30, então o processo é todo corrido até chegar à universidade. Meu esposo administra os detalhes com meu filho e dou aula até cerca de 13h, quando retorno. Nos dias em que não dou aula também acordo no mesmo horário para ir à universidade para outras atividades (encontro de pesquisa, orientação, reunião etc) ou para a Emlurb (Autarquia municipal na qual trabalho como advogada). Nesses dias em que não dou aula no primeiro horário, aproveito para ficar um pouco mais com meu filho e, dessa vez, é meu esposo que sai mais cedo. Agora, ele começando a escolinha, nesse horário, pelo menos, não mudou muito, a diferença é que todos saem mais cedo todos os dias.
Devido a essas movimentações e atenção com meu filho, não consigo fazer outra coisa senão preparar-me para sair.
Nos dias de aula, saio direto para a sala, naqueles em que não dou aula aproveito para ler jornais, notícias em geral (tudo online), antes de começar as outras atividades. São nesses momentos em que tento fazer uma geral sobre fatos desde o meu município até as manchetes gerais de alguns dos principais jornais… também acompanho as rádios no trajeto.
Nos finais de semana, aproveito para correr na praia (moro em Recife e a orla de Boa Viagem é maravilhosa – apesar dos tubarões, infelizmente – mas não precisamos entrar nesses detalhes. (risos)
Enfim, as manhãs são sempre em atividade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O trabalho de ler e escrever era, antigamente, mais produtivo pela manhã. Porém, essa produção se tornou impossível depois que fui mãe e, nesse caso, o horário que melhor trabalho nos meus textos e leituras é durante a noite e a madrugada, momento no qual meu pequeno está dormindo. A tarde é muito curta e, para mim, improdutiva, já que almoço tarde, cerca de 13h30/14h – por isso aproveito para ficar com meu filho.
O período da noite vai das 20h30 até cerca de 23h30/0h, quando encerro e corro para cama. Invariavelmente estou muito cansada, muitas vezes com muito sono. No entanto, essa é a única possibilidade de compatibilizar tudo que gosto (e tenho) de fazer – (mulher tem ainda que lidar com muitas culpas relativas à maternidade, mas não vou escondê-las por aqui, afinal, compartilhando as angústias, aprendemos umas com as outras…).
Mas vamos lá. Apesar da dificuldade física, é também um período de repouso na casa. Tudo está silencioso e adoro essa tranquilidade. Então meu primeiro passo é retomar meu planner em cima da mesa do escritório, pegar meu computador, meus lápis e meu caderno que estou utilizando naquele projeto (falo sobre esses detalhes já já). Levo junto comigo uma generosa garrafa de água, pois só levanto da cadeira se for para atender ao meu filho que acordou e não quis conversa com o papai.
Eu tenho um ritual de escrita: só começo a escrever no computador depois de rabiscar muitas ideias no caderno, de fichar muitos materiais e montar uma espécie de mapa do que preciso fazer: tópicos, autores, revisão de literatura… quando estou trabalho com dados, tenho que ter dois computadores (ou tablet), sempre! Um para escrever e outro para ir refletindo sobre os dados.
Quando num único projeto, sempre retomo a leitura de todo o texto, já tentando atentar para a revisão de conteúdo. Quando em vários, tenho em meu planner dias específicos para cada projeto e por mais tentada que fique para encerrar um para começar outro, tento focar na atividade daquele momento. Aliás, essa estratégia – de vários trabalhos ao mesmo tempo (que têm conteúdos diferentes) – é muito exaustiva porque termino tendo que lidar com a ansiedade, o que demanda mais energia. Faço isso quando não tenho outra alternativa. Porém, funciono muito melhor quando trabalho etapa por etapa. Projeto por projeto.
É exatamente devido às inúmeras atribuições que estabeleço prioridades (determinando a mim mesma prazo – o qual respeito sem desculpas), tentando finalizá-las sem que precise lidar com vários projetos ao mesmo tempo.
Aqueles projetos que são de longo prazo vão sempre ficando em último plano e termina que trabalho neles somente nas férias. Por exemplo. Defendi minha tese de doutorado em 2014 e até esse momento não a revisei como desejo, para publicar. Esse retardo pode parecer longo, mas não é, pois conta com algumas férias não trabalhadas para descansar e o nascimento do meu filho e da mãe que me tornei – o que restou bem pouco para ler alguns materiais imprescindíveis.
Então eu diria que o meu principal ritual é seguir meu planejamento de atividades (artigos, resumos para congresso, escrita de capítulo de livro, leitura de material dos orientandos, planejamento de pesquisa, revisão de artigos etc) e dentro de cada atividade seguir o mapa estabelecido para aquele trabalho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não tenho meta de escrita. Eu escrevo um pouco diariamente, quando os projetos permitem ou concentro todos os meus esforços em curtos períodos (momentos em que dormir é privilégio), quando os prazos são curtos.
Porém a regra é que escrevo um pouco diariamente; exatamente porque o processo é lento por ser reflexivo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita é sempre muito lento. Naturalmente, a primeira etapa de revisão de materiais é muito longa. Sempre organizo todos os meus materiais por grandes temas – inclusive os físicos (o que já demanda um outro tempo – de organização). Depois procuro ler numa sequência que guarda algum sentido para aquele projeto. A cada leitura faço fichamentos em cadernos, também agrupados por temáticas e utilizo esse mecanismo para todo o material que compilei. Quero dizer: mantenho uma relação com lápis, caneta e papel muito íntima.
Somente após essa etapa é que começo a escrever. Sinto, em algum momento da leitura, depois de uma boa quantidade de material fichado, que devo começar a rabiscar as primeiras ideias. Isto é, monto um grande quebra cabeça com setas, observações etc no caderno de planejamento e, depois de “desenhar” a minha ideia, começo a escrever.
Meu movimento, então, da pesquisa para a escrita é guiado por um mapa de tópicos, ideias e rabiscos que tento ir tornado concreto, na medida que escrevo.
Como fiz vários fichamentos, sempre volto a eles. Utilizo canetas, lápis coloridos etc para marcar elementos importantes que funcionam como chaves para fazer links dos meus argumentos e reflexões. É exatamente por isso que não consigo deixar de trabalhar com cadernos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas de escrita, na grande maioria das vezes, se devem exatamente às situações que você mencionou. Ansiedade, medo e expectativas são elementos que tento blindar todos os dias, por meio da seguinte estratégia: esforço, trabalho e muita concentração, a fim de construir um mínimo de confiança subjetiva de que dei o meu melhor. O que quero dizer é que o medo de não corresponder e a ansiedade (não somente devido a projetos longos, mas também por ter que atender a diversos papéis que me tornei responsável) sempre existem e não consigo superá-los. Por outro lado, sei que perfeição é inalcançável, mas como ideal é um excelente estímulo, logo, a única coisa que tento dizer a mim mesma é que naquele projeto há o melhor de mim, tanto de esforço, trabalho, como de profundidade que cabe naquele projeto.
É por isso que, seja o que for, mergulho de cabeça e tento fazer o que está a meu alcance para que o resultado reflita esforço. Acho que a tranquilidade possível (porque na real ela nunca existe plenamente) decorre desse compromisso subjetivo, o que de modo algum garante qualidade do que foi produzido, mas concede, no mínimo, consciência tranquila.
Os entraves às vezes surgem porque não estou tendo confiança suficiente para continuar. É nesse momento que um amigo ajuda bastante. Peço para alguém de confiança ler, sugerir, dialogar. Por vezes, conversar um pouco com pessoas que não são da área para tentar enxergar por fora a questão. Isso ajuda bastante.
Mas às vezes é necessário uma pausa mesmo (quando o prazo permite) por um ou dois dias. Pode ser cansaço, que gera ausência de criatividade… nesse momento, relaxo. Mas quando o prazo não permite, eu digo a mim mesma que não dá tempo para isso, e continuo… não tem outra alternativa!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incialmente reviso sempre, pois retomo o texto a cada nova escrita. Isto é, quase diariamente. Mas quando finalizado reviso ainda mais três vezes – uma correção gramatical, a segunda de conteúdo, com concatenação, clareza etc, e uma terceira de adequação formal para onde será enviado, o que inclui regras da ABNT .
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma excelente relação com tecnologias. Na verdade, adoro. Porém, não abro mão dos “métodos tradicionais”. Meus arquivos estão todos nas nuvens, tudo em mãos, inclusive, no celular, no iPad e no computador. Isso tornou minha vida muito mais fácil e organizada. Utilizo sempre computador para escrever, apesar de às vezes trabalhar com iPad, mas não abro mão dos meus escritos à mão.
Utilizo os cadernos para fazer fichamentos, assim como uma espécie de agenda para elencar as prioridades, os prazos etc. Ainda tenho um outro caderno que é uma espécie de memória dos rabiscos – um caderno de planejamento – que orienta cada projeto e depois, inclusive, serve de memória para buscar um link que eu tenha feito em outros trabalhos. São basicamente três grupos de cadernos e um monte de lápis.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Mantenho menos hábitos do que desejo. Mas tenho alguns que estimulam muito a criatividade. Primeiro é estar sempre preparando aulas, concatenando com fatos, notícias, entendimentos jurisprudenciais atualizados – processo que sempre estimula uma reflexão mais aprofundada, gerando os artigos. Segundo são momentos de observação de diálogos no ônibus, metrô, na praia, entre conhecidos amigos, de onde surge muitos elementos de reflexão. Terceiro é literatura, que sempre desperta algo novo e instiga aprofundamentos.
Mas necessariamente, como não se inventa a roda, as ideias surgem de diversas leituras de artigos, notícias, relatórios… Sobre isso tenho um hábito quase rotineiro: verificar publicações dos principais periódicos que gosto de acompanhar. Sempre que chega a notícia no e-mail de nova publicação, paro tudo o que estou fazendo, vou ao índice e separo numa pasta específica tudo o que quero ler, o que no momento oportuno, paro e leio. Acompanhar esse processo é muito criativo e inspirador!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que diria a mim mesma é que eu não precisava tentar inventar a roda e que por isso poderia ter tido menos ansiedade. Muita coisa mudou. Meus fichamentos mais curtos, meus planejamentos mais objetivos. Minha escrita menos prolixa e mais direta.
Antigamente não elaborava um plano conciso de quais seriam os passos do projeto, o que faço hoje, e por isso me perdia bastante em elocubrações derivadas da ideia inicial, que era a mais importante. Hoje não faço mais isso. Anoto as derivações que podem ser interessantes para depois.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos os projetos que gostaria de fazer. Um deles seria me debruçar com todo o tempo que poderia ter na literatura. Gostaria (e muito) de ter tempo de voltar a estudar música e violão. Talvez quando meu filho crescer (e o próximo que ainda nem chegou).
Com muita sinceridade, não sei se tem algum livro que gostaria de ler que não existe, pois nem os que existem e gostaria de ler, eu consigo fazer… Talvez, exatamente porque ainda queira ler tantas coisas, é que nunca tenha pensado sobre isso.