Émilie Audigier é tradutora, editora e professora de Letras francesas na Universidade Federal do Maranhão.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como professora na Universidade federal do Maranhão, dou aulas quase todos os dias no período matutino, às 7h30 – ou seja, levanto às 5h45. Usar a manhã para desenvolver o trabalho intelectual – em sala de aula, ou na escrita – faz sentido no Nordeste: é o momento do dia favorável para a concentração numa cidade tão quente (e húmida!) como São Luís! Quando escrevia minha tese de doutorado, no Rio de Janeiro, e em seguida as pesquisas em Brasília ou Floripa, minha rotina matinal começava com exercício físico – corrida, natação ou ioga. Gastar energia física ajuda a estimular os mecanismos intelectuais e incentiva a concentração.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O melhor horário para a escrita sempre foi de madrugada. Silêncio, todos dormindo. Luz localizada no livro, na tela. É um momento de paz, ideal para se entregar à escrita, na liberdade de pensar sem ser interrompida ou distraída. De manhã, quando não estiver dando aula, ou então, a partir das 16h (depois de passar o calor do início da tarde) são os horários mais propícios para se concentrar. Agora das 14h às 16h é difícil escrever, melhor para ler ou se livrar de qualquer outra pendência. O ritual para escrever consiste em se trancar sozinha no escritório, com todo o sentimento e a necessidade de escrever. Na urgência, escrever deve ser a única coisa importante para fazer. E esquecer do resto do mundo. Tomar chá – muito chá, o de verdade, com teína. A tradução, que para mim é a principal fonte de escrita, com o ensaio de literatura, é uma forma de reescrita, de palimpsesto. Então é preciso ler, reler e tresler antes de interpretar e transcrever na sua língua os grandes gênios da língua brasileira ou francesa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados. Em geral, com prazos e objetivos definidos: redigir artigos, resenhas, prefácios, pareceres ou material de crítica literária. Para as traduções, também funcionam com prazos. E precisa se organizar mesmo, com cronograma e plano. Um romance ou livro de contos leva vários meses para ser finalizado. Por exemplo, quando traduzi o livro de contos Faca de Ronaldo Correia de Brito para editora Chandeigne, levei quatro meses antes da entrega do manuscrito final, com a fase da revisão, a mais definitiva. Algumas editoras francesas (Métailié, Flammarion) trabalham com prazos mais curtos, e quando são encomendas não dá para recusar pelo prazo. Então precisa ser eficiente, escrever depressa, reler e revisar tudo ligeiro, sem muitos longos tempos para a discussão de saber se é ou não tal expressão, na hora do retorno final. De certa forma, é estimulante sim, trabalhar rápido. Outros manuscritos, às vezes, ficam meses, ou anos aguardando com a tradução pronta, e demorando para ser publicados, por motivos econômicos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Posso pensar minha escrita em três momentos, ou fases, diferentes: a primeira é a preparatória, quando brotam as ideias. A vontade de escrita nasce da leitura. Nutre a passagem de leitora para escritora. Grandes escritores que mais me inspiraram na leitura me transmitiram o desejo de escrever, de imitá-los ou dar eco à suas vozes. Leio com lápis, vou anotando as passagens, os trechos mais significativos. Que tiveram mais impacto em mim. As citações podem ser até copiadas em um caderno, no próprio computador e dar vida à novas ideias. Como pesquisadora, uso os recortes de vários pensadores e escritores, escrevo ideais, argumentos, exemplos, para formar meu próprio texto. Aí vem o segundo momento – planejar, estruturar e redigir o mapa, o esqueleto de meu ensaio. Gosto de começar dando um subtítulo a várias partes, nomeando as problemáticas que vou abordar. Compondo uma partitura, com os movimentos. A terceira fase é o momento da costura, de procurar as transições entre cada parte e achar as nuanças, o tom. Assim manter o fio de Ariane para guiar o leitor até onde você queria.
Desenvolvi uma pesquisa sobre as bibliotecas imaginárias dos tradutores, ou seja, as leituras que vão influenciar a escrita do tradutor na tradução do escritor estrangeiro. De certa forma, sua voz soa diferente e é subjetiva. Os traços estéticos de um tradutor aparecem de um autor para outro, com sua relação com sua língua materna, e as leituras que o constituíram.
As anotações que constituam a proto-escrita, no meu caso, as vezes é denso e preciso na segunda fase refazer o caminho para definir melhor as ideias, reorganizar o texto podando os parágrafos, eliminando ali e acrescentando acolá. Tenho tendência a escrever muito no primeiro jato. No segundo jato é preciso eliminar as repetições, procurar mais objetividade e linearidade. Deixar o texto mais enxuto.
Passar da pesquisa para a escrita é o momento em que você não quer apenas interpretar, mas precisa reescrever, criar algo seu, a partir do que já foi escrito. Achar o tom, o timbre de sua voz. Escrever é uma forma de expressão afirmativa e libertadora. Na tradução também, estamos sempre procurando a interpretar o texto de forma justa e pessoal. Outro elemento importantíssimo que me move, na pesquisa e na escrita é o prazer e a vontade de comunicar com o leitor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Hoje em dia, estamos vivendo em uma sociedade de consumo do excesso. Cobranças constantes de produtividade, eficiência e dedicação permanente. É doentio. Até o mercado editorial está saturado: temos mais escritores que leitores. Na França é o caso, e no Brasil também. Como pesquisadores, somos cobrados a publicar muito, muitas vezes priorizando a quantidade no detrimento da qualidade. Antes de escrever, precisamos mais que nunca ser leitores e interpretar o mundo, e muitas vezes sobra pouco tempo para ler de verdade, e renovar suas leituras. No mercado, o livro se torna um produto cultural para consumir, para produzir riquezas materiais. Estamos vivendo de forma muito acelerada. É urgente desacelerar, e 2020 está nos dizendo claramente isto também: como pensar no descrecimento econômico, como se nutrir e viver antes de tudo. Apreciar o presente, valorizar a essência da vida, os prazeres do quotidiano e a passagem dos ciclos do tempo. Acredito que a cobrança de produzir não deveria nos deixar tão culpados. Travar faz parte do processo de escrita, porque é preciso de muito amadurecimento para apresentar um novo pensamento original numa linguagem nova. Muitos grandes escritores na França, como Michel Tournier ou Pierre Michon, começaram a escrever tarde, aos quarenta anos. Existem escritores que se reinventam, e outros que sempre escrevem o mesmo livro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Com as traduções, faço muitas revisões, umas cinco ou seis vezes. Quando é possível, mas em geral, não tem como, porque trabalhamos às pressas com prazos apertados, deixo alguns dias de repouso antes de cada revisão para tentar renovar o olhar em cada releitura. Até cansar, até não querer mais ficar contigo. Quando o tempo já deu, entrega ao editor. Também mostro a parceiros tradutores quando tenho alguma dúvida, me apazigua ter o retorno deles, ou da cultura fonte ou da cultura alva. Tenho vários parceiros que me pedem para ler seus textos e se tornou um ritual de troca. O tradutor André Telles me escrevia para tirar algumas dúvidas de língua francesa, com a literatura contemporânea ou clássicos franceses. Outra parceira amiga, Elisabeth Monteiro Rodrigues, a tradutora francesa de Mia Couto, com quem fiz meus primeiros passos no ofício de tradutora, aos vinte anos, me ajuda a tirar dúvidas. De 2011 a 2017, participei de várias oficinas com colegas tradutores no Collège International des Traducteurs Littéraire CITL em Arles na França, no IPHAN de Paraty com a Fundação Biblioteca Nacional no Brasil, com quem dividia os projetos de tradução com vários colegas. Neste espaço, tive oportunidade de trabalhar com grandes mestres da tradução como Anne-Marie Quint, uma das tradutoras de Machado de Assis na França, Dominique Nédellec, o tradutor de Lobo Antunes, entre outros, Carlos Batista e Jorge Bastos, entre outros. São experiências muito enriquecedoras de escrita coletiva. Apresentar aos outros seus escritos ainda em construção, demanda muitos esforços – de humildade, de tolerância. É uma forma de generosidade e de trabalho sobre si. Aprender a questionar sua visão do texto, e dialogar com o outro. Demostra o quanto a tradução é uma atividade subjetiva, e um processo de escrita, criação na sua própria língua. Já participei de oficina de escrita adolescente com escritoras quebequenses, Monique Gagnon et Monique Durand, que me marcou muito. Me demonstrou que a escrita é tesão pela sua língua, pela vontade de contar ao outro. E é trabalho, mas não pode se sentir o suor do escritor nem do tradutor na página. Tem que parecer liso e fluído!
Estamos numa época de democratização dos saberes, com múltiplas oportunidades de conhecer os segredos da criação, antes não revelados pelos intelectuais e artistas. Acho que isto incentiva qualquer pessoa a criar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Muito boa, acho fantásticas todas as possibilidades da internet, a variedade de programas e aplicativos que facilitam e democratizam a criação. Abre novos campos para o escritor, leitor, tradutor, criador e cidadão em geral. Mas mesmo assim, eu continuo com vários cadernos. Escrevo a mão – um caderno será mais profissional, com anotações de ideias, reuniões, aulas etc. Outro caderno é dedicado a escritos em andamento: traduções, anotações de expressões idiomáticas, citações, descrições de projetos etc. Gosto de escrever com caneta, e em seguida passar os elementos mais importantes no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm do que leio, do que vivencio, são peças de um quebra cabeça de várias lembranças ou pensamentos de escritores – gênios da literatura ou filósofos que o crítico de literatura vai juntar. Preciso reler os grandes para cultivar a tensão da criação, manter sempre um olhar novo e a memória do que me marcou na juventude: a Odisseia, Flaubert, Proust, Leiris, Queneau, Hemingway, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cortazar, Borges, ou escritores mais contemporâneos Emmanuel Carrère, Scholastique Mukasonga ou Lyonel Trouillot, entre outros. Adoro a ficção curta, como o conto, as mitologias, e me apaixonei muito cedo pelos contos fantásticos de Théophile Gautier e Maupassant, gênios do gênero! Também lia muitos poemas (Rimbaud, Pessoa), peças de teatro (Beckett, Shakespeare, Nelson Rodrigues) – formas de linguagem literárias com códigos mais “específicas”. E paradoxalmente, formas de linguagem que possibilitam uma maior liberdade. Para mim, a origem da literatura mora nestas formas – na epopeia, e nos cantos, como a epopeia de Gilgamesh que usa uma linguagem poética. O hábito é reler o que você gosta incondicionalmente, e renovando seu olhar através das idades. O ritual seria a releitura, como uma forma espiritual de reza. Se apaziguar das adversidades da vida através da leitura. Pierre Michon diz que a literatura é uma “forma perdida de reza” para um ateu num mundo sem Deus. Se escreve para outro alguém, uma grande instância, que seria um Deus desconhecido. Ou seja, escrever seria uma vontade de se reconciliar com o mundo, a partir da solidão do seu trabalho, desta ruptura com o mundo, para recriar um desejo de comunidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevo mais por “obrigação” hoje. Agora são prazos e pedidos acadêmicos, editoriais, de crítica literária ou de tradução. Deadline também é um motor que funciona. Anima para acelerar. Antigamente, escrevia sem compromissos com um leitor. Sempre escrevia cedo, adolescente, produzia textos curtos, crônicas, contos e poemas. Fui tomando o gosto pela leitura de escrever. Adolescente, publicava em jornal local resenhas literárias. Escrevia para jornais criados por amigos, totalmente independentes e artesanais. Em seguida, nos meus estudos de Letras na Université Aix-Marseille na França e na Universidade clássica de Lisboa, precisávamos escrever ensaios sobre escritores, redações, dissertações e comentários comparados, exercícios de estilo acadêmicos.
Em seguida, nas editoras em que trabalhei na França, a editora de l’Aube et Chandeigne em Paris, redigia fichas de leituras, pareceres de manuscritos quartas de capa para publicação, ou apresentação de livros para o catálogo, e se tornava uma escrita mais profissional. A partir daí, achei menos tempo para escrever “por prazer”, como era antigamente, de brincadeira. No quadro da escrita por encomenda ou por projetos, o comprometimento com a escrita cresceu, amadureceu, e ao respeitar os códigos e as exigências do metier, na academia, na mídia ou no mercado editorial.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um monte de projetos de tradução de livros brasileiros ainda inéditos na França! Falta tempo para conseguir dar conta. Gostaria de ler histórias das literaturas e mitologias mundiais traduzidas em várias línguas do mundo. Recentemente, participei de um projeto de pesquisa de História das traduções em língua francesa, estendido em vários séculos. Já existiu um projeto similar em língua inglesa, e outro em espanhol. Seria genial fazer uma história das traduções em língua portuguesa e brasileira. Também gostaria de ler mais livros de literaturas orais, das culturas indígenas e africanas, que são as fontes da literatura brasileira. Pensar também em livros para traduzir, e musicar ou adaptar na tela também me encanta. Continuo fascinada pelas múltiplas formas de tradução, para diversas línguas, várias épocas e adaptações para outras artes. A reunião destas criações filhas de uma matriz originária que se torna mais completa e polissémica com as diversas camadas de interpretações em suas traduções. As formas de interpretar a obra primordial, com suas releituras infinitas sempre me fascinou. Isto para mim é um motor para a criação.