Ema Alba Lobo é a alma mater de Terra.Corpo e é professora na Escola Superior de Educação de Setúbal.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde criança que gosto de acordar muito cedo, de começar o dia pelo princípio, como costumava explicar aos meus pais a razão de ser naturalmente madrugadora. A minha rotina matinal sempre foi sobretudo um conjunto de ritos domésticos ou “bons costumes” com que me predisponho a começar cada dia. Actualmente, não dispenso alguns princípios: um longo longo espreguiçar antes de me retomar vertical, um duche para lavar o sono e a matéria residual dos sonhos, beber as frutas cujas cores líquidas me acordam solarmente o olhar, abrir as janelas para cumprimentar o amanhecer sobre a minha família vegetal. Sinto-me então pronta e humorada para ganhar velocidade, oferecer um bom despertar aos meus filhos, mover lanches e mochilas, abraçando angústias e alegrias, apressando esquecimentos e perguntas pela estrada, de forma a chegarmos todos dentro das horas certas à escola. Antes de começar o meu primeiro momento de trabalho, preciso de ouvir música. É muitas vezes a música ouvida a caminho que me faz chegar as palavras e paisagens da escrita do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não me preparo para escrever, a escrita interpela-me. Escrever é quase um acto de desejo irreprimível para mim. Aprendi a respeitar o desejo das palavras, o seu apelo à escrita. Por isso não há exatamente uma hora do dia melhor para escrever. Às vezes escrevo a meio da noite, às escuras, entressonhando, exigindo-me no dia seguinte um jogo curioso de decifrar palavras sobrepostas e numa garatujada impossível. Da sobreposição das palavras surgem por vezes outras imagens semânticas e imprevistas no curso do que ia dizer originalmente.
Não tenho uma hora melhor para escrever, não tenho um ritual de preparação para a escrita, como também não tenho um lugar melhor para escrever. Os lugares de grande beleza ou de manifestação poética inspiradora, são lugares para estar imersa neles enquanto lá estou. Toda a gente sabe a ligação profunda que tenho com o mar, mas não escrevo junto ao mar. Se escrevesse já não estaria a vivê-lo. Para além disso, escrever é um gesto de intimidade que me exige silêncio, ficar a sós com a escrita e com alguns objectos que são signos poéticos identitários, ou talvez objectos transicionais da escrita não-verbal para a verbal.
Há neste processo uma relação interessante da experiência com a memória, em particular com a memória corporal. Não se esquece o que se viveu e que deixou rumores intensos em palavras. É um hábito que aprofundei na minha actividade profissional enquanto dançaterapeuta: durante pelo menos duas horas, “escutamos” o movimento e as narrativas não-verbais de um grupo de pessoas e, naturalmente, não podemos fazer registo algum do que se passa. Mas porque, para além de escutar, “conversamos”, acolhemos e sintonizamos o nosso corpo e a nossa língua não-verbal à do outro, ela é incorporada e não se esquecem os acontecimentos verbais e não-verbais dessa sessão, permitindo que a escrita clínica registe com rigor o processo psicoterapêutico e a produção de textos transforme o que não era tangível pelo código linguístico, no corpo de uma língua materna compartilhável.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu considero-me uma pessoa privilegiada e feliz porque actualmente faço apenas o que gosto muito e que, apesar das dificuldades, apaixona-me incessantemente. Trabalho dentro de contextos educativos, criativos e terapêuticos, muito ricos e de relação próxima com pessoas, desde bebés in uteroaté jovens centenários. Todos os dias algo muito significativo se passa e chama pela escrita a uma amplitude irrecusável.
Evito estar muitos dias sem escrever pois o músculo da escrita, à semelhança dos outros sistemas musculares, perde força activa criadora no tempo e no espaço, começa a encurtar, dificultando e desviando o movimento natural da escrita.
Dia em que eu que não escreva, parece-me que saltei uma refeição ou deixei alguma coisa perdida algures.
Às vezes, por motivos profissionais, existem períodos muito concentrados de escrita e, após terminarem, tenho de dar um tempo de vazio e silêncio até voltar a ganhar espaço para tornar-me cheia de novas escritas.
Devido a esta relação simbiótica que tenho com a escrita, diz-se que não sou muito disciplinada nas minhas rotinas de escrita. Ainda assim, a poesia é das raras dimensões de mim que vai escapando ilesa à hierarquização de prioridades do dia-à-dia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo acima de tudo poesia. A pesquisa, no que toca à poesia, é sobretudo o movimento respiratório do dia-à-dia, a expiração-inspiração do que acontece à minha volta e de como tudo isso ressoa por dentro.
Há palavras que são uma faísca incandescente e que se materializam rapidamente numa resiliente pedra no sapato, a qual incomodará até que eu as transponha na existência do papel. A poesia é impaciente comigo, aguarda com pouca espera o momento de ser escrita, até porque ela desenha-se de tudo quanto se constrói entre tempos, entre agora e depois, entre isto e aquilo.
Escrever, como todas as acções de expressão, solicita um abecedário e um vocabulário por onde se intrometam ideias, imagens, visões, sentires e o mais insistente desconhecimento de nós próprios. Por isso é tão importante ler, ler muito, ler bem. Não tanto por coleccionismo ou cumulação de saberes, mas para ganharmos espessura na linguagem com que fazemos o mundo.
Com a escrita clínica, académica ou de investigação sociocultural o processo é, na sua génese, semelhante: tem de existir um rubor, um sobressalto, um pulso rápido, uma pergunta inadiável para dar início ao puzzle de caminhos por onde conduzo o meu mapa de indagações e encantamentos, de indizíveis e invisíveis. Depois há todo um trabalho de pesquisa mais extenso e particularizado numa região de interesse e curiosidade, para construir os olhares, as pontes, os meios de navegação, as gentes “inspiradoras e sabedoras” que nos acompanham na viagem de escrever enquanto prática científica e de investigação.
Recentemente, porque às vezes é difícil começar e reunir o que ainda é disperso, comecei a utilizar mapas conceptuais para desenhar os diferentes percursos de pensamento e escrita, sem perder a sua circularidade. Porque quando uma ideia deixa de ser circular, perde a vida, desenraíza-se do pensamento e da sua possibilidade de sentido escrito. Não se trata de um guião fechado, a própria viagem da escrita transforma por vezes o seu mapa, conduzindo a pesquisa por outros destinos e evidências.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A escrita é para mim um meio de preservar a minha surpresa, sentido de humor e amor intactos. Dessa forma, fui aprendendo a aceitar os ciclos e os ritmos de criação escrita com alguma tranquilidade, apesar dos sustos que trazem sempre o demaise o de menos. Há uma paciência e uma tolerância que vão crescendo connosco e com os altos e baixos, os solavancos e as paragens de percurso. A ansiedade é um bom antídoto para a procrastinação, obriga-nos a tornar mais consciente a unidade de medida com que queremos dar área aos nossos corpos textuais, a construir um lugar de encontro possível entre a pressão e a descontração, entre o agir e o esperar.
Escrever é, ou deveria de ser, um acto de liberdade. Cada escritor terá as suas próprias motivações pessoais para escrever e no modo como se relaciona com os seus produtos escritos e com a finalidade que lhes atribui. Pessoalmente, escrevo porque nunca poderia deixar de o fazer, tal como não posso deixar de respirar, alimentar-me, rir, dançar, amar… A vontade de publicar o que escrevo nasce de uma vontade maior de poder levar a escrita, em particular a poesia, a todos, com todos, para todos. Parece-me um sonho justo, conseguir desenvolver gratuitamente as minhas Oficinas de Escrita pagando os seus custos com o que recebo da venda dos meus livros. Esta é a maior expectativa que tenho e à qual gostaria de corresponder, perante mim própria. Quanto a expectativas acerca da opinião de outras pessoas sobre o que escrevo, não tenho muitas porque não fazem parte dos objetivos ou do impulso de escrever. Mas claro que me importa a opinião das pessoas que me são próximas, claro que fico feliz com o elogio de escritores que admiro ou de quem luta diariamente por essa inaudita qualidade humana que é escrever, no sentido mais pleno do verbo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando escrevo poesia, costumo fazer uma única revisão de conteúdo para decantar as palavras escritas e os seus ecos de significado. Não gosto de introduzir muitas alterações pois sinto que vou perdendo simplicidade e complexificando desnecessariamente o poema. Faço em seguida outra revisão, final, lendo o poema em voz alta para afinar a pontuação, a métrica, a fisionomia do ritmo.
Tratando-se de escrita académica, faço muitas revisões, parece-me que está sempre a faltar ainda alguma coisa imperdível, pelo que peço a outras pessoas para ler e partilharem a sua apreciação. Quando estamos num território da escrita em que o rigor do que se apresenta é muito importante, em que o conceito de erro está presente para ser evitado, solicito também outras leituras e outros olhares sobre o que escrevi, para que nenhum engano escape por lapso à nossa atenção e cuidado.
Relativamente à escrita clínica, por questões de natureza ética, os registos produzidos apenas podem ser partilhados em contexto de supervisão. Por outro lado, é importante que não sofra muitas revisões, uma vez que a linguagem utilizada para descrever os eventos psicoterapêuticos deve ser tão autêntica como estes, sendo muito relevante na compreensão de como o terapeuta está a traduzir o não-verbal, as imagens psicológicas que a escrita movimenta e a forma como está a ser vivenciado todo o processo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Preciso de papel. Não se trata tanto de rascunho e versão final, eu preciso dos gestos e da coreografia da caligrafia. Preciso da mão sobre o espaço do papel à velocidade sensorial do que penso e sinto. Preciso de dançar para que as palavras percorram o corpo todo, circulem, “dêem a volta ao sangue e ao barulho que nos ensurdece e nos não deixa ouvir”, como dizia o Vergílio Ferreira no romance Em Nome da Terra. Quando me parece que encontrei a minha melhor forma possível de dizer o que queria dizer – com o carvão de um lápis sobre a folha de um dos vários livros em branco que tenho para esse fim – dou então o meu pulo tecnológico possível e escrevo no computador o texto que passará a estado de editável para revisão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei se lhes chamaria ideias, às vezes são sensações e emoções em estado puro, num aparente mutismo verbal. Se me perguntar o que me inspira, sei o que catalisa sempre o meu ideário e o seu feixe de palavras: o trânsito da luz, os sons da rua, os gestos de pormenor e a pele, as pessoas e as suas tragicomédias humanas. Escrevo muito em movimento, a escrita pede-me movimento. Escrevo enquanto conduzo, escrevo a dançar e danço para escrever.
Por outro lado, sonho frequentemente com binómios. Por exemplo, há uma semana atrás acordei com este na boca: epicentro-infinito. Estas palavras ficam a marinar, num aparente pousio semântico necessário. No entanto, se eu demorar muito, elas começam a surgir em tudo o que faço ou penso, exigindo atenção exclusiva e imediata, uma vez que já fermentaram o suficiente para que o sentido múltiplo de outras palavras crie novas vagas de binómios e se dê maré cheia sobre a página.
Gosto de confabular até aparecer na escrita o que nunca esperei encontrar. Gosto de surpreender-me com o que escrevi e, por isso, tento não premeditar demasiado o esqueleto do texto. Para tal, existem hábitos naturais e de higiene criativa que fui desenvolvendo ao longo da vida. O pensamento divergente, a abertura à mudança e as respostas criativas ao imprevisto, a variação de diferentes perspetivas e configurações imaginativas. Trata-se de uma forma de ser e de estar com empatia para com tudo o que nos rodeia, o que é um constante exercício criativo.
Eu dinamizo oficinas de escrita criativa e expressão poética, facilitando um conjunto de técnicas e de experiências que estimulem a expressão pessoal e as infinitas possibilidades da escrita. No entanto, eu não consigo escrever utilizando “técnicas”, o que escrevo tem de estar na massa crítica e no atomismo do que eu sou a todo o instante. Então, a criatividade é cultivada e amassada na quase total permeabilidade com a intermodalidade dos nossos sentidos, na transformação do silêncio em matéria-prima da nossa imaginação e da nossa identidade escritora.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O meu percurso com a escrita é semelhante ao da dança. Demora muito tempo a descobrir e afinar a linguagem que melhor encontra aquilo que queremos dizer, a abandonar vícios de técnica ou de estilo, de forma a depurar a expressão até só restarmos nós, nós-movimento, nós-escrita. Descobrir o nosso ser-poético, ou melhor, o nosso ser-em-poesia.
Escrever é, no fundo, como aprender a andar: começamos com dois pés para caminhar e vários braços, reais ou simbólicos, que nos apresentam o horizonte quando damos os primeiros passos sem cair. Mas há um caminho para fazer até encontrarmos a nossa forma única, tão singular quanto construída de pluralidades, de caminhar. Escrever é uma pegada que vai mudando ao longo dos anos. A minha escrita nem sempre acompanhou o meu crescimento, da mesma forma que o crescimento nem sempre esteve na idade da minha escrita e esta tem sido muitas vezes um desvio cronológico de mim, muito estimulante e que muito me diverte.
A principal mudança que observo é o salto necessário de não utilizar a escrita apenas como melhor amiga, tábua de salvação ou catarse do que vamos sentindo, sem grande capacidade de metalinguagem, sem debruçar-se sobre si mesma. Mas trago comigo a convicção constante de que tudo acontece por dentro da melhor possibilidade temporal da sua ocorrência e desenvolvimento. Espero conseguir preservar a intensidade e alguma ingenuidade dos primeiros anos de escrita, mas acrescendo à força gravítica que fica de mim na escrita, muito espaço sideral.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projetos por começar são vários e em todos eles a escrita ocupa um lugar de destaque na transversalidade das expressões artísticas que os compõem. Neste momento, tendo em conta os cenários muito preocupantes de iliteracia (global, emocional, crítica, cultural, informacional, visual, científica…) que encontro no meu dia-à-dia, sobretudo nas crianças e jovens com que trabalho, os quais comprometem profundamente o bom desenvolvimento das pessoas como tal, e estão na origem das maiores problemáticas que a humanidade enfrenta, há um projecto a que daria prioridade e começaria já no final desta entrevista, se pudesse.
Eu gostaria de inventar “condições” para que a poesia e a dança fossem área curricular dominante nas escolas, reconhecendo-lhes o seu profundo valor educativo, expressivo, social, cultural, humanizante, ecológico. A poesia e a dança como linguagens imprescindíveis para aprendermos a falar, pensar, interpretar, ler o outro, saber quem somos, reconhecermo-nos por dentro da natureza, exercermos verdadeiramente e por inteiro, a transcendência das nossas circunstâncias.
É um projecto que vai deixando sementes embrionárias aqui e ali, mas eu gostaria que ocorresse uma mudança de igual proporção aos desastres que vemos repetir e multiplicar por todo o lado epidemicamente. É um projecto que já se vai construindo de pequenas coragens anónimas, mas eu gostaria que a poesia e a dança entrassem todos os dias pelo portão principal das escolas e a sua ciência fosse vista, sentida e conhecida por todos. Devolvendo o mundo à poesia e à dança.
Um livro que não existe e que eu traria para casa e leria às escondidas: Manual de emergência para realizares ontem esse teu projecto aparentemente impossível. Com um breve prefácio de Alexandre O´Neill: “entre o real e o sonho / seremos nós a vertigem”.