Elizza Santana e Silva Barreto é psicóloga e escritora, autora de “Cappuccino de Chocolate com Creme”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com minha conexão com o sagrado e conteúdos inconscientes: oração e registro dos meus sonhos, em um caderno dedicado a isso. Ali, inicia também o processo de inspiração do dia, para criação de textos, poemas e narrativas curtas. Como eu costumo escrever sobre minha conexão com os mundos interior e exterior, indo além da cotidianidade, do concreto que pode ser visto e entendido a olho nu, o conteúdo onírico surge como ponto de partida para minhas reflexões e ‘viagens’ diárias. Esse momento matutino é praticamente uma rotina, salvo os sábados e domingos em que minha ressaca assume o posto de gatilho criativo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Produzo de forma satisfatória durante a manhã, mas como trabalho em hospital, dando plantões intermináveis, essa vida perfeita, com tempo para escrever no período matutino, em casa, com a mesa do café posta, praticamente não existe. Assim, a realidade clama pelos intervalos e entrelinhas. Costumo escrever no celular, no bloco de notas, embora meu local favorito seja o Word, no computador. Sinto demais, escrevo. Penso demais, me organizo, escrevendo. Converso com amigos sobre minhas aventuras, escrevo. Assisto um filme que me arranca silêncios ou choros, escrevo. Saio da terapia pessoal, escrevo. Colocar palavras no papel faz parte do meu processo de cura, então basicamente, sempre que posso, estou escrevendo e compartilhando, de modo que elas possam curar outras pessoas também. Sem rituais, sem regras, estética ou preparações, apenas escrevo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A minha catarse precisa sempre ser respeitada, então, não crio metas ou compromissos, transcrevo pensamentos, que automaticamente se transformam em poemas. É um processo simples e fácil para mim, confesso, basicamente respeito a minha catarse e insights. Acho que tenho sempre algo a contar. Acontece que levo isso ao pé da letra e, todos os dias, escrevo, nos intervalos dos atendimentos, ouvindo meu próprio vazio, na hora do almoço, após me entupir de comida que não preenche minha falta. Em algumas noites, antes de dormir, ao som de músicas difíceis de engolir, é comum um texto me saltar pelas mãos, praticamente me pede para ser escrito, mas esse fica no bloco de notas, é só meu e, futuramente, dos livros.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Costumo contar histórias, embora elas comecem através da transcrição de sentimentos, emoções pensamentos, atitudes, desejos e reflexões. Relato o que está havendo, mas através de cenários, personagens, diálogos, detalhes. Tudo isso em formato de poema, texto, poesia ou mesmo narrativa. Na hora de escrever, não penso muito no que aquelas palavras, compiladas, irão se transformar. Versos? Contos? Escrevo e vejo onde vai dar. Depois, leio, lapido, oculto confissões muito expostas, guardo o original só para mim. Antes de começar um texto novo, tenho a certeza de que o anterior está pronto. Uma demanda por vez. Quando estou escrevendo um livro, gosto de escrever na ordem, sejam poemas ou capítulos de uma narrativa, acredito que as palavras também possuem seu próprio tempo para serem verbalizadas, assim, uma coisa por vez, sem bagunça ou explosão de ideias. Pesquiso com bastante profundidade temáticas que fogem da minha realidade ou conhecimento, converso com pessoas, vou a lugares específicos, viajo e até mesmo tiro fotos do local, mas manter registrada a cena que imaginei, antes. Ao chegar em casa, não perco tempo, corro para o computador e digito até amanhecer. Meus amigos dizem que estou sempre escrevendo livros, textos gigantes, ao invés de frases objetivas, então, no momento que eu verdadeiramente me dedico a escrever uma história longa, me divirto, escrevo até o último diálogo. Por outro lado, tento não controlar tanto as coisas enquanto escrevo, por isso, apenas escrevo, sem pensar muito. Deixo minha demanda perfeccionista para a lapidação, sem prejudicar a catarse. A história precisa ter vida, para tocar em vidas leitoras, então, que ela tenha vida, personalidade, autonomia!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Naturalmente, como um chamado, as palavras me reencontram. Costumo dar tempo ao que ainda não consigo verbalizar, transcrever, traduzir. Uma estratégia interessante para quem tem bloqueios ou medo de escrever, é ter um leitor exclusivo, para quem se dedica as produções: você mesmo. Deixar que as palavras te afetem, te atravessem, provoquem mudanças, para então, se dar conta da dimensão e do poder delas ao transformar outras pessoas, outras histórias. Quem escreve, é escritor. Não é necessário publicar um livro ou ter um título acadêmico para ser alguém que escreve. Cada produção irá provocar sentimentos e reflexões diferentes nos leitores, de forma subjetiva, e essa é, para mim, a graça da coisa. Acredito que não exista produção ruim ou boa, mas que toca de formas diferentes quem a lê. O sentido do texto determina o seu potencial transformador para o leitor. Por isso, a poesia só poderá ser lida por quem consegue acessar as entrelinhas. Lido com a ansiedade, insegurança e o medo diariamente, por questões para além da escrita, confesso que em alguns momentos pensei que o meu livro não tivesse potencial algum, até ler os feedbacks dos meus leitores, as críticas construtivas e perceber o quanto minha escrita estava amadurecendo, em especial após publicar o primeiro livro. Tudo é questão de tempo, a escrita reflete o olhar do escritor, a forma como capta as entrelinhas que ele mesmo escreve. É preciso deixar a massa da pizza crescer. E livros são tão bons quanto pizza, por isso a analogia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No máximo uma. Sempre penso que se eu ler mais uma vez, vou apontar vírgulas, acentos e entonações que vão desrespeitar a minha catarse. O que vale é a originalidade da produção, o que deu sentido àquelas palavras, o que fez o texto nascer. A estética mata os insights, a cada revisão. Costumo enviar meus livros para meu seleto grupo de amigos leitores confiáveis, que conhecem minhas palavras mais pueris e viram de perto o amadurecimento delas. Gosto de ouvir o que eles têm a me dizer, como se sentiram, o que faltou, o que ficou em excesso, os caminhos que gostariam de terem conhecido. Após esse feedback, realizo a primeira e única revisão do material.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre carrego comigo um caderninho, seja na mochila do trabalho, na bolsa do rolê de sábado ou da balada. Não existe hora para as ideias nos encontrarem, e eu não sou besta de perder o timing. No entanto, meu local favorito é o computador, gosto de deitar na minha cama, fechar a janela, me enrolar na coberta (e talvez ligar o ventilador), ligar o notebook e abrir o Word. Música no Spotify que combina com o momento e o que irei escrever. Pronto. Perfeito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias são coletivas. Elas estão aí, enquanto vocês leem essa entrevista, e estão aqui, enquanto eu afirmo de onde elas vêm. Acredito que não somos detentores de ideias, mas meros sujeitos de encontro. Acessamos aquilo que estamos prontos para ter consciência, traduzimos em versos e brincamos com a poesia. Minha criatividade nasce do silêncio, momento em que me permito escutar minha intuição, associações, emoções e insights. Não sei se é algo natural, que já existe na ponta dos meus dedos, mas ela vem assim, bem rápida e sem complicações. No entanto, sabemos que nem todo mundo possui essa facilidade, a ponto de não saber explicar de onde ela vem, por isso, acredito que viver seja um bom começo. Sentir. Pensar. Duvidar. Questionar. Brigar. Sentir e entender o que está sentindo. Viajar. Sair de casa. Fotografar. Ouvir canções. Ler. Ler. Ler. Ler. Tudo o que pode compor uma vida bem vivida, com os olhos atentos à simplicidade, entrelinhas e não-ditos, é chave para a criatividade. Geralmente eu viajo, pra dentro, e pra fora, mas esse último só quando tenho dinheiro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ela amadureceu. Acredito que eu também. Sinto que as palavras saem com menos agressividade e urgência, tem ritmo, sintonia, sentido, muito sentido. Me desprendi da estética, dos padrões, do que fulano de tal andava fazendo e que eu precisava andar fazendo também. Aprendi que posso confiar nas minhas inspirações literárias, como Colleen Hoover e escrever meus romances com essa base, sem medo. Acho que está tudo tão natural, que as ideias passaram a me encontrar com uma frequência maior. Se eu pudesse voltar atrás, diria: nunca pare de escrever do jeito que escreve, esse é o começo de algo maior, gigante, continue se colocando em cada verso, pra rir sem pesos ao se ler no futuro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Lançar um livro escrito com outro autor, tenho toda uma história em mente, mas preciso de quatro mãos para torná-la real. Gostaria de ler esse livro, pra rir e chorar a madrugada inteira. Desculpa, meu ascendente é em leão.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Geralmente uma ideia me atravessa e eu começo a levá-la comigo para os lugares, a testo com algumas frases, tento senti-la com canções ao fundo, até que genuinamente ela é projetada por completo em um papel. O começo é sempre mais trabalhoso, para mim, muitas vezes acontece de eu já ter todo o desfecho em mente, a vontade de contar a história de trás para frente. No entanto, sei que sem o impacto das primeiras linhas, dificilmente alguém irá acessar o ponto-chave da ideia que me atravessou, então redobro a atenção nas primeiras linhas e/ou capítulos. Eu costumo planejar projetos, mas permito que eles existam, cresçam e venham na hora certa, ainda que imediatamente. Então, passo a compreendê-la.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Se eu respondesse essa pergunta no ano passado, diria que minha rotina se molda às minhas ideias malucas, porém tenho experimentado viver com calma, leveza, e o mesmo tem ocorrido com as produções literárias, tanto na escrita, quanto na leitura. Ultimamente tenho preferido viver uma coisa por vez e tem sido ótimo, então os intervalos da vida pessoal e profissional (Psicologia) tem sido cada vez menos apertados, com a pressão para produzir algum texto ou trabalhar no próximo projeto. Talvez, tudo volte ao “normal” daqui a alguns meses, já que a minha mente é aceleradíssima, talvez minhas palavras acompanhem o novo ritmo e tudo flua com mais precisão e qualidade.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Os pequenos (grandes) detalhes dessa jornada: saber que minhas palavras, minhas observações, afetos, podem acolher outras pessoas, assim como acontece comigo nas leituras que faço. Tenho me dedicado à escrita, inserindo-a na minha rotina diária, desde que lancei meu primeiro livro, Cappuccino de Chocolate com Creme, em 2018. Quanto mais eu enxergo a escrita como profissão e recurso transformador da minha vida, mais tenho a certeza de encontrei meu sentido no mundo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Eu sempre tive medo do meu próprio estilo, um tom sarcástico e enérgico que salta da minha voz, a todo momento. Acreditava que para ser uma boa escritora, precisava ser culta, mas eu não fazia ideia do que muitas palavras complicadas significavam, ainda que tivesse lido inúmeros livros adultos quando era criança, cheios dessas expressões de adultos chatos. Eu não sabia ser assim, mas tentei. Compliquei meus poemas na adolescência, retirei a personalidade, o tempero, a força do meu próprio jeito de ser e escrever, por medo. Até que me alertaram: Elizza, isso aqui está completamente seco, sem vida, parece que algo travou, não é você. E não era. Demorei a entender que podia ser, na verdade. O próximo romance que lançarei está recheado de baianês, viagens à saturno (porque eu viajo muito nas minhas reflexões), sinceridades que soam como tapas na cara e mentes aceleradas. Acredito que esse processo tem (ainda) acontecido a passos lentos, ler livros de autores nacionais me ajudou imensamente, em especial Um Milhão de Finais Felizes (Vitor Martins), Céu sem Estrelas (Iris Figueiredo), O Peso do Pássaro Morto (Aline Bei), Você Tem a Vida Inteira (Lucas Rocha) e Redemoinho em Dia Quente (Jarid Arraes).
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Amor & Gelato – leveza, tempo, paciência, sincronicidade das coisas. O Auto da Maga Josefa – é de perder o fôlego (de tanto rir). E se passa no meu Nordeste. Um Milhão de Finais Felizes – PIRATAS GAYS.