Elizabeth Harkot-de-La-Taille é professora do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Café da manhã, banho, computador. Quando estou escrevendo, evito começar o dia lendo e-mails, pois como são muitos, facilmente toda a manhã vai embora nessa tarefa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de começar pela manhã relendo o que fiz na véspera e escrever até o ponto em que me sinto bem. Num contexto ideal, escrever seria minha atividade principal e tomaria os dias quase inteiros. Não digo o dia inteiro escrevendo, mas em processo de escrita, que inclui leitura, pesquisa, releitura, descanso, reelaboração…
Não consigo escrever um pouco todo dia, como alguns colegas e amigos, capazes de se organizar dedicando horas definidas a e-mails, orientação, leitura de trabalhos, pareceres, preparação de aulas, aulas, afazeres domésticos etc… e escrita. Preciso dispor de tempo com certa liberdade, ou a escrita se torna uma tarefa penosa, no lugar de exercício de reflexão e, na medida do possível, criação.
Há muito tempo, li uma entrevista concedida por Hemingway sobre sua rotina de trabalho. Metódico ao extremo, o escritor repetia uma rotina diária, para mim, invejável e impossível (a começar por natação, na piscina de sua casa, seguida de um farto café da manhã que lhe era servido pronto). Um item modesto, porém, inspirou-me: aprendi que Hemingway (sim, também ele!) “travava” diante da folha branca, intacta, se a tivesse à sua frente pela manhã, e, ao longo do tempo, aprendeu a começar o dia a partir do que havia feito na véspera. Seu segredo para enfrentar “a folha em branco” estava, portanto, no trabalho anterior: conforme escrevia, ao surgir-lhe uma ideia que não cabia naquele trecho, registrava-a ao pé da folha e retomava o rumo da escrita em curso. Na manhã seguinte, ou em várias manhãs seguintes, começava por reler o redigido e pensar nas notas extras, ao final das páginas.
Mesmo escrevendo apenas textos acadêmicos, adotei a estratégia das notas ao fim da página, como recurso contra a paralisia diante da página em branco, à qual acrescentei outra, que devo a meu esposo, a de um arquivo de citações. Assim, conforme vou lendo um livro, vou marcando trechos importantes e, por dia, dedico uns quinze minutos à anotação, em arquivo, desses trechos, com dados do livro e número da página. Mais tarde, esse arquivo se torna inestimável para repensar o que já foi redigido, pelo ponto de vista de outras pessoas, além de facilitar a inserção e conferência dos dados de citações no meu texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse acima, prefiro períodos concentrados. Quando consigo esses períodos, minha meta é algo como duas ou três páginas por sessão de escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ao responder-lhe, tenho em mente o trabalho de escrever um livro. A pesquisa e a escrita se retroalimentam, intercalam-se. Compilo notas, esboço observações e reflexões em um caderninho que carrego, anoto situações da rua antes e durante o período de escrita.
Começar, porém, nunca é fácil. De uns anos para cá, resolvi começar pelo elemento que mais me provoca ou atrai, sem a preocupação de que seja o “item 1”, ou “capítulo 1”. A escrita não é um processo linear, mas um vai-e-volta, pula-retorna, um registrar-apagar-riscar-recuperar-transformar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
São várias questões em uma só. Quanto às travas da escrita, as notas anteriores e o arquivo de citações ajudam muito. No tangente à procrastinação, felizmente não tenho esse problema, mas tenho uma espécie de contrário seu: se estou num momento truncado da escrita, tendo a mergulhar nela, a ponto de me exaurir. Isso porém, não ajuda em nada, apenas cansa. Raramente resolvo um “nó” da escrita desse modo. Já me ocorreu de levantar, irritada comigo e com o trabalho estancado, partir para uma caminhada, passar em frente a um cinema e entrar, pensando “já que não saio do lugar, vou ver o que alguém conseguiu concluir” – e acordar de madrugada “desatando o nó”.
Por último, as expectativas, próprias e alheias. Aqui, sei que nunca um trabalho será unanimidade, muito menos perfeito, espécie de “ponto final” sobre o tema. Apenas faço o melhor que posso, naquele período. Sobre a ansiedade em projetos longos, estabeleço metas intermediárias. Praticamente 100% das pessoas, ao entrar num mestrado, perguntam-se se conseguirão escrever um texto tão longo; depois se admiram por tê-lo conseguido. Só que alguns o fazem com certa tranquilidade, enquanto outros associam à escrita imagens de tortura, dor, “um parto” talvez seja a expressão mais empregada. Estabelecer metas intermediárias ajuda, tranquiliza e nos dá a medida de quanto tempo mais, aproximadamente, precisaremos. É também importante não se empenhar em coisas inúteis, como fazer e refazer o sumário do livro durante sua elaboração, ou querer escrever a introdução a qualquer custo, no início da redação. E, finalmente, evitar gravar um novo arquivo a cada sessão de escrita, numa série, tal como “cap1 versão1”, “cap1 versão2”, …, “cap1 versão57”. Esse hábito torna a decisão sobre o que conservar e o que descartar extremamente difícil. Surgiu uma ideia interessante, mas não cabe nessa parte do texto? Jogue-a para o pé da página e retome o percurso em desenvolvimento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei dizer quantas vezes os reviso, mas são muitas. Eu gostaria de discuti-los mais com colegas e amigos brasileiros, mas a vida acadêmica tem esgotado a energia de todos, além de não ser um hábito, não sei se brasileiro, ou de minha área. Uma única vez um colega atendeu a meu pedido e discutimos um texto meu. Igualmente, apenas uma vez um colega me solicitou uma leitura crítica de um artigo seu, aqui no Brasil. Por outro lado, fui convidada e fiz a leitura crítica do último livro do Groupe µ, antes de sua publicação, Principia Semiotica: aux sources du sens. Um livro de 592 páginas, propondo um modelo para a gênese do sentido, resultante de mais de quarenta e cinco anos de trabalho conjunto. Tenho também a sorte de conviver com uma pessoa da área acadêmica, com quem discuto todos os meus textos em português ou francês. Quando em francês, à leitura de meu esposo acrescento a de um dentre um pequeno grupo de amigos de Liège, Bélgica, local em que a tradição da troca de trabalhos para leitura e discussão é bem viva. Quando escrevo em inglês, um ou dois colegas do exterior, quando possível.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Creio que sou uma usuária razoavelmente competente da tecnologia, no que diz respeito à escrita, pesquisa e revisão. Em muitos outros usos sou nula ou quase. Atualmente, começo a escrever diretamente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias são desencadeadas por leituras, principalmente, mas também por conversas, filmes, canções, quadros, exposições, caminhadas, observação, tudo isso e outras coisas, desde que haja um fundo de curiosidade e boa disposição física. Pensando pelo avesso, em períodos de grande cansaço ou tensão poucas coisas mobilizam minha curiosidade, sou capaz de assistir a um belo filme e não o relacionar com nada. Aí, preciso descansar, não ajuda me obrigar a sentar e escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Sem dúvida alguma, fui ficando mais tranquila, perdi o medo de subitamente perceber que não teria mais nada a dizer sobre o tema em pauta, ou de “travar” e não conseguir nunca mais ir além. Também passei a cuidar mais da minha escrita, tornando-a mais fluente, clara e simples; quero poupar meu leitor/minha leitora do trabalho de organizar minhas ideias, penso que esse trabalho é meu. Se eu consigo isso de fato, cabe a meus leitores julgarem.
Se eu pudesse voltar à escrita de minha dissertação de mestrado ou da tese de doutorado, eu gostaria de voltar ao início da redação e me dizer que eu poderia começar por qualquer ponto, qualquer aspecto do problema tratado. Gostaria de me dizer que o trabalho da redação não precisa se confundir com o trabalho de apresentação do texto ao leitor. No início da redação de minha tese de doutorado, era tamanha a minha cobrança sobre mim mesma que um dia perdi a paciência, retirei o disquete do computador, juntei todas as folhas escritas e joguei tudo no lixo do escritório, bem dramaticamente. Meu esposo se levantou com toda a calma e me disse: vá descansar, deixe isso comigo. E ele recolheu tudo, guardou em uma gaveta sua, depois de um tempo juntou-se a mim e propôs assistirmos a um vídeo. Se não tivesse recebido esse apoio, eu iria querer voltar para oferecê-lo a mim mesma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, não tenho um projeto, mas um punhado de desejos. Preciso conseguir articulá-los para “achar”, para compor, meu projeto. Provavelmente será algo em torno dos cinco sentidos como porta de entrada do sentido (significação), posição epistemológica que assumo. Podemos ver um quadro e descrevê-lo em palavras. Podemos ouvir uma história e transformá-la em música. Um livro pode virar um filme; um sentimento, um poema; um sabor ou um aroma pode evocar todo um pequeno universo (como a famosa “petite madeleine”, de Proust). Como é possível transformarmos respostas táteis a uma pelagem macia em uma cena ou uma frase musical? Em francês há uma expressão curiosa, principalmente usada para descrever a sensação causada por um vinho excelente: “é o Menino Jesus descendo pela garganta em calças de veludo”. Ainda que não conheçamos o vinho, a imagem, com nada relativo ao paladar, dá-nos uma boa ideia de como deve ser tal experiência. Resumindo, trata-se da inquietação sobre como “traduzimos” o que experimentamos por um canal (tato, paladar, olfato, visão, audição – ou alguma linguagem) para outro, ou como operamos traduções intersemióticas, usando os termos precisos. A pergunta assim colocada é ainda muito vaga. Preciso restringi-la para poder dela construir o projeto que estou buscando.
Sua segunda pergunta me remete a seu contrário, isto é, à quantidade de livros que quero ler e ainda não li. Só em minha biblioteca particular já são muitos. Quanto a um livro que eu gostaria de ler e não existe, essa ideia me leva ao fantástico: talvez um livro que tivesse o poder de contar a seu leitor sua (do leitor) história, de um ponto de vista de outra pessoa. Um livro que, ao ser lido, tornasse seu leitor capaz de se conhecer melhor. Dizendo isso, vejo que voltei ao “real”. Conhecer-se melhor depende do livro, mas mais ainda da atitude do/a leitor(a). Há muitos e muitos livros no mundo que podem nos enriquecer.