Eliza Araújo é poeta, professora e doutoranda em Letras pela Universidade Federal da Paraíba.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa religiosamente com café. É ele que me faz voltar a ser humana e sair do mundo dos sonhos. Depois que tomo café, faço a lista do que preciso fazer aquele dia. Minhas rotinas da manhã nem sempre envolvem escrita. Como trabalho academicamente, posso precisar estudar, ou posso precisar organizar alguma coisa que não tem nada a ver com escrita particularmente. De qualquer forma, sempre tento, em algum momento do dia, revisitar meus arquivos de manuscritos e mexer neles. Também estou escrevendo com uma grande amiga e poeta que mora em Olinda, então de vez em quando vou lá no drive e leio nossas coisas e faço umas edições. Eu adoro organizar coisas, adoro post-its, marcadores coloridos, gosto de agrupar e categorizar coisas. Uma vez falei pra minha namorada: “Há uma beleza em categorizar coisas”, ao que ela respondeu: “Você realmente tem o sol em Capricórnio” (risos).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu amo as manhãs. É a hora do dia que eu tenho mais ideias e energia. Também é a hora do dia em que acabei de sair do universo dos sonhos, então procuro prestar atenção nisso, aos meus próprios processos internos. Quando voltei a meditar, eu estava fazendo sessões de 20 minutos todo dia de manhã, antes de sentar pra escrever e é algo incrível. No momento, com uma transição de cidade, trabalho e algumas coisas que ainda estão se reajustando na minha vida, estou sem essa disciplina, mas é um exercício muito bom. É incrível o que sentar em silêncio pode fazer com o seu espírito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim, escrevo todos os dias. Entre poesia, prosa, e-mails, e tese, estou sempre escrevendo. Não tenho uma meta diária, mas tento estar sempre em contato com o que eu já escrevi, pra manter uma hiper atenção aos acontecimentos poéticos que eu percebo na vida. Isso me ajuda a continuar percebendo essas pequenas coisas. Acho que a poesia é um exercício do olhar, e é algo que a gente precisa continuar praticando pra poder não deixar os acontecimentos poéticos da vida passarem despercebidos. É um pouco como fotografia. Treina-se o olho, a percepção, mas no caso da poesia, treina-se a expressão disso em palavras com respirações. Eu gosto de me referir à escrita poética como uma escrita com muita respiração. O fato de os versos terem quebras e às vezes se agruparem em conjunto e o efeito respirado disso na leitura, principalmente em voz alta, é algo muito importante pra mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu amo escrever, esse processo é muito prazeroso pra mim. Pode ser difícil começar, mas geralmente não. Como boa capricorniana, sou a cabrinha subindo a montanha devagarzinho mesmo, então, meus processos são feitos de muita repetição, revisitação do que já fiz. Um pouquinho cada dia, não trabalho bem sob pressão. Não que eu não consiga trabalhar, mas a ansiedade me faz muito mal e me tira uma das coisas favoritas da vida: o sono.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei muito bem explicar, mas eu tento. Calo a boca dessas vozes que dizem que a gente não é boa o suficiente e me jogo no mundo. Tento lembrar que a vida é muito curta pra não senti-la por completo, em todos os poros. Já deixei de fazer muita coisa por puro medo e nervosismo, mas à medida que envelheço, percebo cada vez mais a beleza de tentar e de aprender com os processos. Eu penso em como me senti quando não tentei e em como me senti quando tentei e como foi bom as vezes que deu certo e prefiro ir por esse segundo caminho porque amo aprender e sentir que estou me movendo no mundo, que não estou parada a ver navios. Claro que tudo isso é muito mais fácil quando a gente tá com a saúde mental em dia, então, basicamente é cuidar dessa parte e o resto é fazer o que meu grande amigo Matheus Almeida fala: “O não você já tem. Por que não tenta?”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito do projeto. Em geral, reviso bastante meus textos, mesmo sem intenção de revisá-los. Tento voltar neles e lê-los, mesmo sem a agenda de adicionar alguma coisa. Depois ler de novo num outro dia. Acho que é importante esse trabalho, porque como sujeito que escreve é tão difícil a gente tomar distância daquilo que a gente mesmo produziu. Mas revisar, reler, é um exercício de ganho de perspectiva pra mim. É retornar pro texto com outro olhar, apesar dele também ser seu. Eu mostro sim, pra amigos e pessoas que acho leitores excepcionais. Eu adoro mostrar textos pra minha namorada, que trabalha com ciência política, porque a forma como ela os lê sempre amplia a minha própria percepção. Também participo de grupos de escrita coletiva e às vezes leio o que produzi numa ocasião assim. Uma vez escrevi um texto sobre um processo de fazer as pazes com uma pessoa que estava indo embora da minha vida. Uma mulher que estava do meu lado me ouviu ler esse poema numa oficina e no fim do encontro me disse que lembrou muito da irmã dela, e lembrou especificamente de imagens que ela viveu com essa pessoa quando ela estava viva e me agradeceu pelo poema. Eu nem estava escrevendo sobre alguém que tinha morrido, mas foi muito interessante ter esse retorno pra confirmar aquela máxima de que o texto, cada vez que é lido e interpretado, é, de alguma forma ressignificado a partir de experiências super subjetivas com uma pluralidade de identificações que a gente nem pode imaginar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu adoro os recursos que facilitam a vida, por exemplo, adoro o Google Drive *sem querer fazer propaganda, mas já fazendo*. Eu fiquei um tempo sem computador e esse recurso me ajudava demais porque eu podia ir pra uma biblioteca pública e abrir o que tinha começado e tinha salvo na nuvem, e partir dali. Eu às vezes escrevo à mão, mas gosto também de ter meus textos online, pela praticidade de acesso. Eu estava revendo um filme (muito ruim por sinal) outro dia em que o protagonista achava diários que foi escrevendo ao longo da vida e os relia e notei dessa vez que cada diário tinha o ano, que ele escrevia na capa. Achei superinteressante essa ideia, pra fazer sentido cronológico mesmo, e quero adotar com meus cadernos. Fazer uma espécie de arquivo anual de poemas escritos e rascunhos da vida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu amo conversar, amo histórias e leio bastante. Acho que a combinação dessas coisas, uma atenção pra as coisas poéticas que as pessoas fazem e dizem, faz com que eu tire daí a minha matéria. Antes de vir pra essa biblioteca de onde eu escrevo essas linhas, eu passei numa pequena lanchonete e pedi um suco de fruta. Só queria uma coisa cítrica e natural pra começar o dia. A moça pediu pra eu sentar, cortou o abacaxi, fez o suco e me ofereceu e ficamos conversando. Achei uma coisa linda e singela, como se eu tivesse na sala da casa dela e ela estivesse preparando uma coisa pra alguém que conhece com todo cuidado. Fiquei pensando muito em como somos um povo incrível e como as pessoas tem a capacidade de expressar amor e cuidado, embora isso seja tão negligenciado. Ela me contou que faz os salgados que vende e o almoço, e pra saber o cardápio, só indo lá no dia perguntar. Não sei se ela se sente uma pessoa criativa, mas achei aquilo tão bonito. Ela, no centro da cidade, cuidando do próprio negócio com o rádio ligado baixinho, cozinhando delícias e sorrindo largo pra quem ia ali se alimentar do que ela tinha feito. É isso. A vida é cheia de pequenos processos poéticos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acredito que escrevo com menos receio hoje, mesmo sendo ainda bastante autocrítica. Uma vez uma amiga me falou que “a arte é urgente” e acredito muito nisso. Escrevo o que penso que precisa estar no mundo, de maneira urgente. Acho que eu diria: não deixe de escrever suas dores e dúvidas. Escreva como parte do seu processo de cura. Acho que isso serve também pra pensar num contexto macro: escrever, produzir e criar arte é um processo de cura ao qual a gente precisa se agarrar nesse momento, como povo nesse país.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever com um grupo de poetas da minha cidade, Campos dos Goytacazes, RJ. Estou de volta aqui depois de um longo período em outros lugares e tenho aprendido muito com o processo de pertencer. Reaprendendo a pertencer ao lugar onde eu nasci, sabe? É mais difícil do que parece. Eu aprendi muito e me adaptei muito a outras cidades, o que foi importante pra mim naqueles momentos, mas esse é o meu desafio de agora e acho que muito importante no meu crescimento pessoal e artístico.
Eu gostaria de ler um livro de autoras que escreveram na minha cidade, desde o séc XIX. As mulheres sempre tiveram, e têm, tanto a dizer. Acho que entre outras coisas, vim ao mundo pra escutar, também através da leitura.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não, nunca planejo tudo antes! Impossível pensar em tudo. Pra mim os projetos se desenham, vão tomando o rumo que precisam pra existir. Outro dia estava lendo que Toni Morrison escrevia um livro à medida que as ideias vinham. Por exemplo, o capítulo 7, depois o 2, depois o 5. Já pensou? Achei louco e transcendental, mas entendo exatamente esse processo de se permitir ser um portal mesmo, pra o que está se construindo a partir da sua escrita, porque muita coisa no ato de escrever é mistério, algo que não se pode medir ou entender muito sistematicamente de onde vem. O mais difícil, na minha concepção, é a finalização. Saber que o que você produziu contém o número necessário de fôlegos. Eu acho que em poesia isso é um processo ainda mais subjetivo, uma vez que, como me disse um poeta uma vez, um livro de poesia é cheio de recomeços. Um poema finda e outro começa, e a movência dessa dinâmica faz com que a leitura de um livro seja não linear. Acredito que essa particularidade da poesia também é o que coloca esse desafio de entender se o fim é fim mesmo, da sua concepção de um conceito até a finalização da compilação de poemas.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
No momento, tenho prazos e projetos definidos nos quais estou trabalhando. Isso atrapalha um pouco a minha autonomia sobre a escrita criativa, porque as obrigações tomam a parte maior do meu tempo. Organizo minha semana a cada dia, porque pra eu saber que direção tomar amanhã, tenho que ver o que consegui concluir hoje. Tenho uma agenda de planejamento e coloco metas nela a cada dia, depois risco o que concluí com marca-texto pra eu poder voltar e reler, se for necessário.
Em relação a escrita criativa, eu estou com três projetos, mas desses três, tenho me sentido mais inclinada a organizar um deles. Eu gosto de ter mais de um projeto em andamento, me deixa atenta a coisas distintas no meu dia a dia. Acho que também me direciona para ler coisas que vão me ajudar com esses projetos.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu acredito que o que tem me motivado é perceber como as pessoas estão sedentas por conexões, sentimentos reais. Penso que o mundo e as pressões que nos cercam têm nos impulsionado a ser seres humanos funcionando num mundo utilitário, onde tudo precisa de um resultado imediato, um uso, uma função. Isso de funcionar em “modo automático” suga a alma das pessoas. Nós estamos programados demais pra fazer o que precisa ser feito e esperado de nós, e isso toma o tempo que a gente deveria estar investindo em se autoconhecer, pensar, refletir; a própria etimologia da palavra refletir se refere a dobrar mais uma vez, estabelecer um retorno. Eu penso nisso como um dobrar-se sobre si, o que eu acho um processo muito interessante e que traz intensidade e sentido à vida, além de potência mesmo.
Saber quem a gente é, é essencial no processo de se amar e praticar o auto-cuidado, a auto-gentileza, que são atitudes que uma vez começadas em nós, podem se propagar nas nossas relações. Uma pessoa que não sabe direito quem ela é tem limitações no que ela pode oferecer ao mundo. Eu vejo a relação do ser humano com a arte também por esse viés. A arte propicia uma alteridade, mas ela também cria espaços pra que o ser humano aprenda sobre si. Na arte a gente encontra os nossos gostos, os desafios daquilo que é difícil de interpretar, as referências que nos ajudam a organizar nossas ideias, um repertório pra a vida no mundo, um sentido. Acho que como indivíduo, a gente se apoia nisso, nesses sentidos interiores, naquilo que nos faz quem nós somos. Quando a gente vive em contato com essa dimensão interior de nós mesmos, ao passar pelos turbilhões e dificuldades da vida; a gente se quebra e se estilhaça, mas numa hora consegue refazer algo das novas possibilidades que se mostram.
Eu queria ser escritora desde que descobri que isso podia ser uma profissão. Foi com aquele filme, Meu primeiro amor, lá nos anos 90. Eu passei a poder me dedicar a isso através da academia, que foi o espaço que encontrei pra exercer a escrita como parte de uma profissão, a de professora. Acho que meu caminho e minha relação com a escrita sempre foram bem intencionais e vieram de um contato com a literatura desde a infância. Antes de saber escrever, eu “escrevia” histórias num papel de pão e desenhava imagens e depois lia pra minha mãe o que eu tinha escrito.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acredito que a minha dificuldade foi mais no sentido de entender que eu escrevia poesia. Passei muito tempo escrevendo, sem me apegar ao gênero com o qual eu mais me identificava, mas foi a prática que me trouxe essa clareza, e a troca também. Estar em espaços de poesia, saraus, entre amigues que escrevem. Eu também escrevo prosa, mas estou num processo de aprender com a prática no momento. Escrever é se jogar em processos que nunca acabam, né, é uma forma de se conhecer e organizar o entendimento do mundo, então pra mim é uma forma que também aprendo e me desafio constantemente.
Em poesia, eu diria que minhas maiores influências foram Elisa Lucinda e Audre Lorde. Em prosa, muitas: Maya Angelou, Toni Morrison, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus… A lista é grande.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Difícil escolher só três, mas acho que vou por três livros aos quais eu sempre volto, por algum motivo.
1. “Eu te amo e suas estréias”, de Elisa Lucinda. Esse livro foi presente de uma prima minha, e acho que nunca expressei pra ela como o achei bonito. Ele tem muitos elementos que eu busco explorar como poeta. Uma corporeidade muito presente, uma tendência a construir e desconstruir os versos de maneira muito delicada, uma forma desmedida de falar de amor e paixão, de processos fortes e transformadores. Eu sou uma pessoa muito romântica, a forma como eu amo define muito a minha forma de estar no mundo, então foi um livro que me impactou por passear sempre por esse tema. Há poemas lindíssimos nesse livro, imagens muito bonitas e uma coisa bem nostálgica. Uma coisa que eu achei interessante, é que alguns poemas têm a data e o local onde foram escritos embaixo, uma espécie de diário. Eu fui lendo esse livro e desenhando coisas que os poemas me lembravam nas bordas.
2. “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke. Esse livro me foi indicado por uma pessoa que passou pela minha vida e não sei pra onde foi. Eu acho que ela passou por mim pra me indicar esse livro. Ele basicamente sintetiza conversas entre um poeta experiente e um jovem poeta em cartas que foram mesmo enviadas pelo Rilke, o poeta alemão, no início do séc XX. Eu gosto muito do gênero epistolar, e adoro conversas, e, embora o livro não traga as respostas do jovem poeta, fico imaginando essa correspondência e essa troca de olhares sobre o processo criativo e poético e sobre o mundo. Rilke é bem franco e direto nos comentários críticos dele sobre os poemas que o jovem envia pra sua apreciação, mas o que eu mais gosto nesse livro é de como ele discute a arte como veículo, com uma função. Eu adoro uma parte em que ele fala sobre o cotidiano, e que “é preciso ser muito poeta” pra tirar dele a sua matéria.
3. “O olho mais azul”, de Toni Morrison. Esse é um dos livros que eu estudo no meu doutorado, e que estava há anos fora de circulação no Brasil, mas recebeu uma nova tradução em português em 2019. Acho que é um dos livros mais impactantes e bonitos que já li na vida e foi minha passagem de entrada na escrita de Toni Morrison, que é genial. O livro conta a história de uma menina negra retinta que sonha em ter olhos azuis e os pede a Deus. A vida dela é bastante trágica, não só pela dificuldade que ela tem de se amar, mas pela forma como as pessoas que a cercam falham em comparecer na vida dela como canais de afeto. É um livro que fala sobre diversos temas tabus e importantes na comunidade negra, e que fala basicamente sobre o cuidado um com o outro. Acho que esse livro me ensinou muito sobre advogar por si, mas também pelo outro. Me ensinou sobre repensar a noção de beleza e de onde ela vem e também me deixou fascinada pela prosa de Toni Morrison, que escreve como diz aquele verso de uma música de Los Hermanos que acho lindo: “com golpes de pincel”.