Elieni Caputo é escritora, mestre em Literatura pela PUC-SP, autora de “Violência e brevidade” (Penalux, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Embora eu seja relativamente organizada com minhas tarefas, nunca fui de estabelecer horários muito rígidos, a não ser quando isso era uma exigência de trabalho. Acabei de concluir o mestrado em Literatura e Crítica Literária na PUC-SP, e estava dividindo meu tempo pela manhã entre assistir às aulas e escrever minha dissertação e outros textos acadêmicos e literários, além de organizar a casa e cuidar dos meus gatos: tenho dois, Oscar e Esther.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre preferi a noite, inclusive para escrever. A escuridão e o silêncio forneciam para mim uma espécie de limiar de apreensão, um locus de trânsito entre as palavras e a imaginação. Também gosto do crepúsculo, da cor e do sentido da transição das horas. Nunca fui muito afeita à manhãs, mas isso mudou radicalmente com a pandemia. Passei a ter hábitos mais diurnos, a escrever de manhã, a sentir uma clareza de raciocínio e a habilidade com a língua fluindo até melhor nesse período do dia. Então, atualmente eu acordo, tomo café e escrevo textos literários e acadêmicos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Olha, essa meta eu crio mais para os textos acadêmicos. Acabei de finalizar dois artigos, um sobre Machado de Assis e outro sobre Hilda Hilst (já no prelo). Também estou finalizando uma autoficção, mas como ela foi construída num fluxo de pensamento que suplanta o tempo cronológico e até o subverte, não faz muito sentido eu estabelecer metas diárias de escrita. Mas isso não diminui meu grau de exigência e rigor com o que produzo. Sou bastante perfeccionista, até a exaustão se for necessário para alcançar o efeito que pretendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O tempo da minha escrita está entre o tempo (atemporal) do inconsciente e o tempo cronológico. Não sigo um padrão de livre associação ou de expressão sem critério, mas também não crio um esquema fixo e padronizado. Tenho uma escrita de limiar, pré-verbal, entre a imaginação e a linguagem, e eu preciso estar nesse entre-lugar para a tessitura da minha poética fluir. É claro que o domínio da língua, dos gêneros textuais, dos recursos estéticos e expressivos são importantes para a escrita, mas certo estado mental que propicia uma visão de si, do outro, do mundo e do próprio corpo com uma atenção especial ajuda na criação. No passado, era mais comum eu alcançar esse estado de limiar no período noturno, principalmente quando era muito jovem. Agora tenho mais domínio de minha escrita e até de minha imaginação, e consigo guiar melhor meu processo criativo; não fico à mercê da “tal inspiração.” Acredito que a criação espontânea sem a dimensão da alteridade não significa muita coisa: você sempre escreve para alguém; o outro nos habita mesmo na solidão. Para acessar o leitor, a técnica e o domínio da língua (não necessariamente da norma-padrão) são imprescindíveis.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sinto muitas “travas” em meu processo. Eu respeito o tempo da escrita, que pode não ser o meu tempo consciente. O tempo da publicação também segue uma lógica própria: às vezes você só começa a ser lido anos depois de ter criado expectativas sobre um texto, e é até engraçado quando você mal se lembra dele e as pessoas comentam (rsrs). O tempo da recepção pelo leitor costuma ser diferente do tempo da escrita, e a forma como ele ou um crítico percebem e avaliam seu texto muitas vezes transcende o que você pensou ao escrever; essa é a mágica da produção literária e aí reside grande parte de seu fascínio. Por exemplo, recebi uma crítica de um poema premiado em Portugal que, de tão bela e elaborada, criou sentidos que eu mesma não pensei ao escrever, ao menos não conscientemente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A preocupação em revisar evoluiu muito com a maturidade. Publiquei meu primeiro livro com pouco mais de vinte anos de idade, o Poema em pó, pela 7Letras. O ímpeto, o imediatismo, a fúria jovem não possibilitavam naquele período ter a calma necessária para revisar. Não quer dizer que, por causa disso, os textos que produzi nessa fase não são bons: são bons a seu modo, pois o conteúdo urgente exigia uma forma de escrita também de urgência, mesmo que com erros. Sabemos que os erros são constitutivos da própria evolução da língua, então é melhor aceitá-los do que brigar muito com eles. Hoje tenho muito mais calma para revisar meus textos, reelaborar; penso mais na recepção, no leitor. Mostro a várias pessoas, geralmente próximas, antes de publicar. Com o tempo, deixamos de viver de urgências…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Até recentemente eu só conseguia escrever textos literários à mão, e depois os digitava. A minha criatividade estava atrelada ao movimento da escrita manual, mas recentemente houve uma transição, meu processo criativo inscreveu-se no meio digital e até lança mão de seus recursos – a autoficção que estou finalizando vai abarcar bricolagem de textos digitais e digitalizados…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias às vezes vêm da angústia, do desconforto, porque a angústia é um afeto sem forma que quer virar linguagem. Minhas ideias não são minhas no sentido consciente do termo; são antes um ímpeto de linguagem que pode virar um livro; são algo latente que quer emergir e ser visto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho mais paciência para revisar meus textos, sou mais crítica, mais parcimoniosa na escrita, mas não daria lições para a Elieni muito jovem porque houve uma razão de ser do meu processo criativo mais cru do passado; ele inclusive é constitutivo do que me tornei hoje.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu estou cada vez mais aproximando a escrita acadêmica da dita criativa, procurando desfazer as fronteiras rígidas entre os gêneros textuais. Quero iniciar o meu doutorado sob tal elo entre o acadêmico e a fluidez do literário propriamente dito. O que gostaria de ler? Bem, estou curiosa pelas produções durante e pós-pandemia. Essa experiência terrível e dolorosa provavelmente se tornará um trauma coletivo, e a linguagem é um dos únicos meios de elaborar vivências assim. Nesse sentido, a linguagem nos salva, e a literatura dá nome ao que é feito só de dor…