Elias Fajardo é escritor, jornalista e artista visual.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa cedo. Faço meu desjejum, vou caminhar ou nadar. Escrevo romances, contos e poesia e cada um desses gêneros me pede uma rotina particular. O romance é um projeto que demanda muito tempo para ficar pronto. Costumo ler o que escrevi anteriormente para me situar e também criar uma pasta no computador onde vou colocando tudo o que possa ter a ver com o que estou pretendendo fazer. Para a poesia não tenho uma rotina: ela bate à minha porta quando está disposta a me visitar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã. A mente ainda não está cheia de coisas. Um ritual que costumo tentar fazer (mas nem sempre faço) é fazer um pouco de meditação antes de trabalhar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro escrever todo dia, mas nem sempre isto me é possível. Minha meta diária vai de algumas linhas a algumas páginas. Em geral não sofro para escrever, mas procuro tomar cuidado pois sei que é muito fácil se desconcentrar e me perder. Quando estou envolvido com um projeto literário, tenho de cuidar dele, como se regasse uma flor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa é muito importante, principalmente para escrever um romance. A linguagem adequada é algo que sempre me preocupa. Os dados podem estar disponíveis, mas o modo mais eficiente de transformá-los em literatura implica sempre num trabalho árduo. Desde menino eu queria escrever ficção e me tornei jornalista como uma maneira de exercitar a linguagem. Depois vi que ser jornalista é tão absorvente que sobrava pouco tempo para me dedicar ao meu trabalho de ficção. Inicialmente eu fazia contos, comecei a publicá-los na década de 1970. Mas foi complicado criar uma linguagem que fosse minha e não se parecesse com a de muitos outros colegas jornalistas. A certa altura da minha trajetória em busca de ser um autor encontrei uma editora que se propunha a publicar um romance meu, mas não os contos. Como fazer? Olhando tudo o que já vinha tentando fazer, descobri que havia dois eixos temáticos: as narrativas mineiras e as cariocas. Tentei avaliar tudo e achei que as mineiras me atraíam mais. Então fui juntando os contos mineiros até me ocorrer um jeito de estruturar uma narrativa longa. Em seguida optei por dois planos: o primeiro na primeira pessoa e o segundo na terceira. O narrador onisciente conta os fatos na terceira pessoa. E o autor do livro comenta e critica. Isto foi a base do meu primeiro romance “Ser tão menino”. O segundo, “Aventuras de Rapaz”, tem um narrador, o autor e um leitor, que comenta e critica os outros dois. Neste ponto, cansei do personagem eu e procurei escrever um terceiro romance “Belo como um abismo”, que não tivesse ligações com a minha trajetória pessoal. Este livro foi finalista do projeto Jabuti 2015. Os personagens principais são uma gata vira-latas que encarna as escritoras Emily Brontë e Emily Dickinson, que viajam no tempo e convivem com Otávio, um poeta frustrada que vive no século XXI.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procuro não ligar muito para as expectativas. O mais importante é curtir o caminho, é mergulhar na escrita até que ela me satisfaça, o que nem sempre acontece.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Escrever é, de alguma forma, reescrever e tentar a melhor maneira de dizer e se exprimir. Tenho dois livros de poesia publicados e gosto de partilhar os poemas pelo facebook. Assim tenho algum retorno de futuros leitores. E gosto de voltar a poemas antigos com novas ideias que, de algum modo, podem aprimorá-los.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Romances e contos são escritos no computador, a partir de alguns arquivos criados anteriormente com a pesquisa. Já a poesia é escrita a mão, em pequenos cadernos. Vou juntando versos até que me disponho a passá-los para o computador. E aí eles costumam mudar muito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ideias não costumam faltar, mas por outro lado elas não adiantam muito. O importante, no caso de quem faz literatura, é a maneira como elas são expressas ou encadeadas. A literatura é uma construção e é preciso trabalhar arduamente para conseguir algum resultado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevo ficção há décadas e posso dizer que hoje sou mais amadurecido. Não tenho mais necessidade de fazer confissões, como acontecia no início. Busco a flor escondida da originalidade, antes que ela despetale diante dos meus olhos apressados.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Publiquei “por assim dizer”, meu segundo livro de poemas, aos 70 anos. Talvez quando eu fizer 75 já tenha material para um outro livro de poesia. Gostaria de ler tudo (no original em inglês) de Katherine Mansfield. Os livros dela existem, mas nem todos são traduzidos e meu inglês não está com esta bola toda.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quase sempre faço um planejamento básico quando se trata de prosa. Meus três romances foram assim. Mas todo plano implica quase sempre em modificá-lo ao sabor do que vou descobrindo durante o processo de fazer. Meu primeiro romance “Ser tão menino” surgiu da costura de contos com o mesmo tema, juntando a eles um personagem: o narrador e depois um outro: o leitor. O segundo “Aventuras de Rapaz” nasceu da vontade de dar continuidade, em termos de época, ao primeiro. O terceiro “Belo como um abismo” (finalista do Jabuti 2015) foi uma tentativa de não falar da minha biografia. Juntei duas escritoras não reconhecidas em vida: Emily Bronte e Emily Dickinson com muita fantasia e uma gata vira latas chamada Emily que incorporava suas xarás.
A poesia não é bem assim: ela bate à minha porta e, quando dá, vou abrir. Meu primeiro livro: “poemas do vai e vem” foi uma tentativa de juntar cacos poéticos que andei fazendo com desenhos a nanquim. O segundo “por assim dizer”, mapeou as tentativas neste gênero, que considero o mais difícil, rabiscadas durante muitos anos.
Estas cinco obras foram editadas pela 7Letras.
O mais difícil é escrever todas as frases, embora isto me dê também muito prazer.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Quase sempre tenho muitos projetos e realizo os mais viáveis. Às vezes me entrego a um que considero principal. Um romance requer pesquisa e muito tempo. Os contos nascem de uma idéia inicial que vai se desdobrando e sendo reescrita muitas e muitas vezes.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Ao longo do tempo a literatura foi se impondo, ganhando lugar e se tornando uma espécie de obsessão positiva. Nunca me arrependo do tempo que tenho dedicado a escrever. Procuro não ter ilusões sobre o sucesso desta empreitada: basta estar no mundo e tentar colocar em palavras reflexões sobre ele.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
O estilo é o homem. E não costumo fazer muita diferença entre forma e conteúdo: se tenho uma idéia motivadora, acabo dando vazão a ela. Literatura é como jogo de bicho: vale o escrito. As belas intenções (das quais o inferno anda cheio) que não chegamos a botar no papel nos escapam como areia fina entre os dedos. O mais difícil é achar uma linguagem própria que, teoricamente, as pessoas lêem e podem identificar como sendo minha e delas. Influências: Guimarães Rosa, Drummond, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Annie Proulx ,Manoel Bandeira, Cecília Meireles. Atualmente estou muito ligado em João Cabral de Melo Neto. Em 2020 comemoram-se os seus cem anos de nascimento. Fiz uma participação na série Concerto de Poesia, da Estação das Letras, no Rio, homenageando este grande pernambucano, que tem muito a nos mostrar e ensinar. Sua poesia é forte como pedra mas também pode ser doce como o mel da cana.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Katherine Mansfield (15 contos escolhidos, edição da Folha de São Paulo) e mais tudo o que consegui achar. Contista de fino trato, mergulhou fundo na alma humana e abriu novas sendas na arte de narrar, antecipando o modernismo. Início do conto Festa no jardim:
“E afinal o jardim estava ideal. Eles não poderiam contar com um dia mais perfeito para uma festa no jardim, foi melhor que a encomenda. Sem vento, cálido, nenhuma nuvem no céu. Apenas o azul velado por uma névoa leve de luz dourada, como às vezes acontece no início do verão. O jardineiro ficara ali desde o amanhecer, aparando e varrendo os gramados, até que a grama e as rosetas escuras dos canteiros onde ficavam as margaridas, parecessem brilhar.”
Paulo Leminski (Obra completa, Cia das Letras.) Um criador extraordinário que pulou a cerca e ultrapassou seus próprios limites produzindo poemas, ensaios, canções, impropérios. Exercia seu texto com liberdade absoluta. Adoro este poema:
Pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando
Amós Oz (De amor e trevas), grande escritor israelense. Virou sua vida de cabeça pra baixo e de baixo pra cima, inseriu altas doses de observação política, existencial e humana e mandou ver. Trecho: “Escrever um romance, eu disse uma vez, é mais ou menos como montar toda a cordilheira dos montes Edron com pecinhas de Lego. Ou como construir uma Paris inteira, edifícios, praças, avenidas, torres, subúrbios, até o último banco de jardim, usando apenas palitos e meios palitos de fósforos colados.”
Orhan Pamuk: (O contista ingênuo e o sentimental, Cia das Letras) conferência que ele fez em Harvard quando ganhou o Nobel. Muitas e profícuas lições sobre a arte de escrever. Trecho: “Escrever um romance equivale a pintar com palavras, e ler um romance equivale a visualizar imagens por meio das palavras de outra pessoa”.