Eliana Mara Pellerano Kuster é professora titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende se dou aula ou não naquele dia. Caso vá trabalhar em casa, sigo o procedimento básico: depois do café, sento no escritório, me cerco das referências que acho que irei precisar e começo a trabalhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã, com a mente limpa. É pela manhã que estruturo melhor as ideias, consigo ter clareza para desenvolvê-las e, em geral, tenho bons insights para novos temas ou direcionamentos para artigos. Vou das 8 ou 9 até por volta das 13, 14 horas assim. Daí paro, almoço e durmo vinte minutos. O período da tarde deixo pra fazer as revisões de texto, checar referências bibliográficas, emitir os pareceres que me solicitam sobre artigos e/ou projetos de pesquisa. No final da tarde faço algum tipo de exercício, seja pilates ou caminhada. Às vezes – se estou no meio de algo muito estimulante ou se os prazos estão apertadíssimos – consigo voltar a escrever à noite, mas é mais raro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta quantitativa, mas tento ter disciplina. Nos dias nos quais dou aulas não há possibilidade de me concentrar para escrever, então tento aproveitar os outros, começando cedo e empregando esse meu “tempo produtivo” que já identifiquei ser o período matinal. Nos dias que não tenho aulas priorizo a escrita e, em geral, passo o dia todo no computador ou pesquisando. Deixo para os outros dias as atividades burocráticas e de planejamento de aulas, ou mesmo as atividades corriqueiras da rotina da casa. Para mim, escrever não é algo que consigo fazer com tempo marcado, do tipo: “ah, tenho uma horinha, vou sentar ali no computador e começar aquele texto”. Não funciona assim, preciso ter um tempo mais extenso para que meu processo mental se inicie.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ah, não sei se tenho um “processo” de escrita! Sempre parto de um tema que me instigue. Como trabalho muito com representações culturais (cinema, publicidade, literatura, música…) sobre a cidade, em geral as ideias vêm do que acontece à minha volta. Nesses últimos tempos ando com vontade de escrever sobre as propagandas recentes de automóveis e o imaginário de cidade que elas “vendem” junto com seus carros: um lugar ameaçador, perigoso e hostil. Tenho reparado em muitos anúncios que seguem esse padrão. Me interessa a maneira como essas construções de imaginários nos atravessam e como passamos a operar no “mundo real” a partir dessas estruturas mentais que vão nos impregnando sem que nos demos conta.
Enfim, a “sementinha” da ideia vai brotando, deixo ela lá quietinha amadurecendo, espero um tempo pra ver se ela se robustece ou não… Pode ser que vire um artigo, pode ser que eu escreva um ensaio, posso fazer um texto no blog, pode não dar em nada. Se eu achar que essa ideia inicial se sustenta, aí sim, começo o processo de pesquisar mais sobre o assunto, ler outras pessoas que escreveram sobre temas semelhantes, coletar exemplos, etc…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que essas questões foram mais presentes quando estava fazendo coisas que precisava terminar em um determinado período, como a tese de doutorado, por exemplo. Ali eu tinha um prazo bem específico, e, claro, sempre rola uma ansiedade ao longo do processo. Com os artigos, ensaios ou pequenos textos as coisas acontecem mais naturalmente, daí essa pressão acaba sendo menos presente.
Acho que há duas coisas importantes a mencionar: a primeira é que sempre escolho objetos com os quais tenho uma profunda afinidade e prazer de trabalhar. Desde a monografia de graduação, passando pelo mestrado e doutorado, os meus temas sempre foram selecionados dentre assuntos pelos quais eu tinha um enorme interesse e encanto em pesquisar. Não sou adepta daquele “discurso do sofrimento” que vemos corriqueiramente na academia, tipo: “não tenho tempo pra nada por causa do mestrado” ou “perdi a noção da última vez em que fui ao cinema porque estou totalmente focada no doutorado”. É claro que há momentos nos quais é necessário foco, mas dificilmente me isolo de outras atividades por causa da pesquisa.
A outra coisa é justamente que nunca parei de ler livros sobre outros assuntos, ir ao cinema, assistir séries. Esses interesses sempre existiram e conviveram em paralelo com a minha atividade acadêmica. Na área das ciências sociais e das artes, nas quais atuo, vejo o pesquisador como uma espécie de elástico tensionado entre o mundo do cotidiano e o da teoria. Qualquer das pontas que se solte é uma perda. Tento manter as duas unidas, equilibrando os meus interesses entre elas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito, sempre com alguns dias de espaço entre as leituras para descontaminar o olhar. Em geral o texto geral “sai” quase pronto e depois vou fazendo pequenas mudanças, acertos, completando referências. Hoje não tenho mais o hábito de mostrar para ninguém antes de publicar, mas às vezes compartilho algo específico com algum colega que possui interesses semelhantes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, deixo milhares de páginas de internet e livros abertos na tela enquanto escrevo e vou consultando. Quando termino a área de trabalho do computador está uma bagunça!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Mantenho os olhos abertos e atentos ao mundo. É sempre daí que vem as melhores ideias. Leio livros de gêneros diversos, vou muito ao cinema, viajo sempre que posso, frequento museus, espetáculos de música, de dança e de teatro sempre que dá. Acho que um mundo interior alimentado é sempre o melhor caminho para formação de repertório e fermentação de ideias novas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
“Relaxe com as vírgulas e crases, você vai errar de qualquer jeito”.
“Não tenha receio de usar o pronome na primeira pessoa do singular, é você que está fazendo essa pesquisa, ninguém mais”.
“Quando empacar, saia e vá ao cinema”.
“Faça backups frequentes”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O próximo projeto é sempre o melhor, ainda que não saibamos qual ele vai ser. Tenho me interessado mais em escrever ou falar para pessoas de fora das universidades, na tentativa de romper um pouco essa barreira que existe entre o conhecimento produzido na academia e a vida cotidiana de quem nem sabe sobre o que pesquisamos. A minha última pesquisa tratou sobre violência simbólica de gênero e foi apresentada para professores e pais de alunos de escolas de ensino fundamental. Embora trabalhando com autores da sociologia e da filosofia, tive que fazer um esforço para lançar mão de construções de pensamento e linguagem que fossem claras e fizessem sentido para quem me ouvia, deixando de lado termos muito específicos ou teorizações muito intrincadas. Me deu um enorme prazer sentir que era possível estabelecer pequenos pontos de contato que fizessem diferença na percepção do cotidiano daquelas pessoas. Acho que o maior desafio é o de ser claro, sempre, para todos que se interessam por nos ler ou nos ouvir.