Eliana Alves Cruz é jornalista e escritora, ganhadora do Prêmio Oliveira Silveira de romances da Fundação Cultural Palmares/MinC 2015.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Seis horas da manhã o despertador acorda, mas por vezes eu já estou desperta faz tempo. Sou uma pessoa que nem de longe dorme tanto quanto gostaria. Quem tem filhos e leva a casa sozinha sabe que vai se estrepar se não tiver o mínimo de rotina matinal. Acordo o filho para a escola, percorro as necessidades da casa, como alguma coisa, vejo notícias e escrevo. Sai comigo debaixo dos lençóis uma compulsão e não raro escrevo no próprio celular que me tirou do sono. Preciso esvaziar a cabeça que o inconsciente encheu à noite. Embora eu escreva a vida inteira, pois sempre trabalhei com jornalismo e em assessorias de comunicação, demorei muito a assumir para mim este lado escritora e hoje sinto uma vontade e um entusiasmo em recuperar o tempo de criação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu escrevo a qualquer hora. Criei-me escrevendo a qualquer momento e lugar, literalmente, pois como trabalhei anos a fio cobrindo esportes e nos lugares mais diversos do mundo, já escrevi sentada no chão de aeroporto, de hotel, de clube, de estádio… com muito conforto ou com quase nada. Quando finalmente enveredei pela literatura, minha filha era muito pequena e se eu não escrevesse enquanto ela dormia, não saía do lugar. Meu ritual para a escrita é nenhum além de sentar, abrir o computador e escolher a música certa. A música aciona um gatilho qualquer em mim que me faz nem sentir as horas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando em uma história não consigo parar, mas não tenho uma meta porque estabelecer um gol na hora de criar é como podar os galhos de uma árvore que nem nasceu. Atletas e executivos têm metas porque precisam de resultados exatos. Acredito que a arte não se comporta da mesma forma. É algo um tanto indomável, embora eu hoje consiga controlar melhor esse ímpeto para não me perder em divagações sem jamais concluir a história. Quando decido que já é hora sento e vou em frente porque depois de finalizado o texto, nesta hora sim acredito ser preciso fazer como os atletas, que antes de uma competição importante descansam dos treinos pesados. Esse repouso que eles chamam de “polimento” é necessário para voltar ao texto depois e enxergar o que você não conseguiu ver enquanto estava mergulhada nele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu preciso me transportar para os cenários que descrevo, desta forma, vou fundo na pesquisa e uso tudo o que estiver ao meu alcance para conseguir viajar no tempo e no espaço. Entrevisto, se posso vou aos locais, busco em arquivos, leio livros e pesquisas relacionadas, vejo fotos, filmes, ouço músicas. Depois crio um guia com capítulos que, vão sendo muito alterados ao longo da escrita, mas dão uma estrada por onde seguir. No entanto, a pesquisa nunca cessa e enquanto faço isso vou paralelamente escrevendo. São coisas que, no meu caso, caminham juntas. Isso, obviamente, faz com que a história seja reescrita muitas vezes, pois à medida que vou descobrindo vou acrescentando, mudando, ampliando ou suprimindo. Sempre que crio uma nova versão mando para mim mesma e-mails com a data. Assim não me perco na evolução da história.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu respeito os meus “lapsos”. Quando empaco em algum trecho ou ideia, tento parar e ver o que está causando isso. Eu tenho uma pessoa a quem preciso convencer muito, que sou eu mesma. Quando algo não me convence de verdade não adianta insistir: é preciso mudar os rumos e às vezes até desistir deles. O primeiro sinal de que algo não vai bem é a procrastinação, pois quando estou verdadeiramente envolvida na narrativa acontece o inverso, ou seja, uma urgência em seguir adiante. Quando estou procrastinando é porque algo não está funcionando no texto e paro para ver o que afinal está fora de lugar. Não me angustia a ideia de não corresponder a expectativas porque não sei quais seriam elas. Não podemos nos angustiar com o que não podemos controlar. Sou consciente do meu processo. O jornalismo me deu a noção de prazos, mas não me angustio com o tamanho do tempo, mas com a qualidade dele.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Esse é um processo que me parece infinito. Vou revisar toda vez que ler, mas não existe um número exato de vezes para a revisão. É bom rever também depois de submeter a outra pessoa. Sim, submeto trabalhos a outras pessoas. Tenho um pequeno grupo que é absolutamente competente, sincero e íntimo o suficiente para dizer “está muito bom” ou “jogue isso tudo fora”. Tanto na forma quanto no conteúdo. O olhar do outro é importante. Como diria o poeta Patativa do Assaré: “É melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada…”
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tomo algumas notas à mão porque as ideias às vezes surgem e não estou com acesso a nenhum equipamento. Eu estou escrevendo o tempo todo dentro da minha cabeça, mas organizo tudo no computador. Crio arquivos para as pesquisas, imagens etc., e outro para o texto. Crio cópias em diversos dispositivos. Tenho pastas no e-mail aonde vou guardando tudo também. Perder textos é muito ruim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
O dia a dia é uma fonte de inspiração, mas o passado também. Vejo que temos ainda muita coisa a falar sobre quem somos. Vasculho e reviro nossos baús, que são riquíssimos e repletos de coisas ainda desconhecidas. Isso é muito instigante e desafiador. A ideia de ancestralidade é muito presente no que escrevo e vejo constantes conexões com a nossa realidade. O principal hábito para me manter criativa é não me isolar. É buscar contato com outras mentes e toda e qualquer manifestação de arte.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Acredito que a paciência é uma virtude para quem escreve. Cada texto tem o seu ritmo e é necessário respeitá-lo. Percebo cada vez mais esta realidade. Hoje eu sei que vou encontrar o ritmo, a música de cada um. Não é preciso angústia. Eu diria a mim mesma: Calma. Respire. Releia. Escute. Leia em voz alta. Ouça e saboreie as palavras. Tenha calma. Vai acontecer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vontade de escrever muitas coisas e não ponho obstáculos para isso. Tudo o que eu gostaria no momento de certa forma já comecei. Acho que temos nomes incríveis, por exemplo, que nossas crianças precisam ser íntimas desde cedo. Tenho um projeto de biografias para o público infantil, que já estou organizando.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quando começo um novo projeto tenho quase sempre uma ideia central, mas vou deixando fluir e sentindo como o texto funciona. A partir daí direciono pesquisas que me dão apoio para criar cenas, situações e personagens. Começar, para mim, é sempre mais difícil, pois gosto de iniciar de uma forma que possa quase que “sequestrar” o leitor para a história. Gasto tempo e energia pensando em como instigar a curiosidade para que sigam navegando na trama. O final vai sendo construído ao longo da narrativa.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sim, trabalho em vários projetos simultâneos. Tenho uma rotina bastante atribulada, logo, procuro tirar ao menos uma hora todo dia para escrever e um dia no final de semana para uma imersão e adiantamento de projetos. Tenho escrito tarde da noite, pois é o tempo que dá.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Muitas coisas me motivam. Trazer novos narradores e protagonistas; reconstruir cenários; colocar territórios excluídos também como personagens; aprimorar a minha maneira de trazer novas histórias; brincar com o tempo e fazer o leitor viajar nele. Também me motiva ver que tantas pessoas, especialmente jovens mulheres, estão se inspirando no que escrevo para igualmente se expressar literariamente. Isto não tem preço!
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Comecei por um romance histórico baseado em muitas histórias e personagens reais, logo, minha maior dificuldade foi em como usar a criatividade da literatura, sem ferir a ética dos fatos em como encadear os acontecimentos de forma que tivesse verossimilhança e coerência. A pesquisa profunda também foi uma tarefa trabalhosa até encontrar o meu ritmo e a minha forma de realizar. Tenho dificuldades em selecionar apenas uma pessoa como influência. Muita gente me auxiliou na forma e no conteúdo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Baratas (Scholastique Mukosonga) – Pela forma como rememora sua infância numa Ruanda dilacerada pelas rivalidades étnicasLuanda, Lisboa, Paraíso (Djaimilia Pereira de Almeida) – É linda a prosa poética, o sentimento de estrangeirismo e as sensações que provoca.Ponciá Vicêncio (Conceição Evaristo) – Um talento extraordinário que Conceição tem em mostrar tantas coisas da nossa herança escravocrata em pequenas passagens do cotidiano. É uma mirada com essência e cheia de poesia no dia-a-dia.