Elen Juanini é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Assim como Kafka, acho que o despertar é a hora mais perigosa do dia. Para mim é como nascer de novo, é traumático e mesmo cruel. É ter que sair de um universo interessante e caloroso (o do eu interior das fantasias tresloucadas) e ser atirada no caos da realidade cujas regras são as dos outros. Sempre acordo de péssimo humor, não importa o dia. Depois melhoro vagarosamente.
Minha rotina matinal se resume a acordar umas 6h30, vinte minutos depois de o despertador entrar em modo soneca, fumar um cigarro, tomar um banho rápido e engolir alguma comida a contragosto, apenas para que o corpo não pare de funcionar antes do almoço, pegar a Linha Vermelha do metrô e ir trabalhar.
A partir das oito horas, trabalho com eficiência mecânica enquanto deixo que minha imaginação me transporte para longe, como em Dançando no escuro. Mesmo acordada continuo sonhando.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu prefiro viver e escrever à noite. Já tentei escrever durante o dia um tempo. O que aconteceu foi que eu simplesmente não conseguia parar. Escrevia de manhã até à noite, sem almoço nem nada. Fumava o dobro de cigarros e meu estômago se esbagaçou de tanto café preto. Quando escrevo, entro numa espécie de transe. Então, escrever durante o dia disturba minha rotina. À noite, a escrita funciona como uma chave de ouro.
O que também acontece é que os poemas que quero escrever vão maturando dentro de mim ao longo do dia e à noite me surgem mais completos, como se eu os trabalhasse internamente antes de começar a trabalhar com eles no papel.
Talvez meu hábito tenha adquirido essa feição pelo fato de eu ser uma poeta proletária e ter sempre dependido de minha força de trabalho não-poética para subsistir. Isso inverte as coisas: faz com que eu use as horas mais preciosas do dia para trabalhar para os outros enquanto que o tempo que me sobra eu uso para trabalhar para mim.
Entretanto, defino assim meu horário de escrita apenas se pensarmos o trabalho de forma sistemática. Quando chegam as ideias, escrevo quando e onde tiver que ser. Não é incomum para mim acordar no meio da noite tendo uma ideia e rascunhar, ou mesmo no banho, etc. Quando vem A ideia, eu paro tudo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não trabalho, em hipótese nenhuma, com metas ou coisas que remetam à produtividade do tipo industrial. Tenho verdadeiro horror a essa linguagem. Escrevo quase todos os dias por uma necessidade minha. Uma busca por entendimento, é quase uma urgência. Se há uma meta, é simplesmente fazer hoje melhor do que fiz ontem. Não sou exatamente disciplinada, mas produzo em quantidade e quando fico alguns dias sem escrever, me sinto mal. O porquê não sei. Escrever é como respirar. É preciso, embora impreciso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Cada poema é um universo próprio, então o processo é diferente toda vez. Eu não gosto de notas. Sou desorganizada demais para isso. Se é para anotar, melhor já fazer um rascunho do que será o poema. Aí sim posso trabalhar com calma depois. Tem poemas, principalmente os mais longos, que me vêm quase inteiros, eu escrevo como se eles me fossem ditados. Nessas horas me sinto a Zíbia Gasparetto. Tem outros que eu quero escrever mas eles teimam em não sair. Aí faço uma primeira versão. Depois outra. E outra. Faço mil versões. Às vezes sai uma merda e desisto, chateadíssima. Desisto às vezes para sempre, às vezes só por um tempo. Já levei dez anos para concluir um poema, para olhar para ele e dizer: isso.
Escrevo à mão e uso bastante nicotina durante o processo. Preciso estar num lugar silencioso, ouvir música para mim não rola enquanto escrevo.
A questão da pesquisa é interessante. É raro eu pesquisar antes de escrever. Eu escrevo e vou pesquisando conforme surgem dúvidas ou conforme o texto vai enveredando para áreas onde não tenho domínio. Uma pesquisa que faço é a de plágio. Às vezes os versos vêm tão inteiros na minha cabeça que fico na dúvida se isso eu não li em algum lugar. Aí dou um Google para me certificar que não tô fazendo a Elza.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No fundo, sou muito feliz em escrever. Eu amo escrever, então não tem tempo ruim. Como não há meta, não há procrastinação. Porque mesmo quando não estou escrevendo, estou vivendo, estou pensando, estou sentindo. Tenho uma visão romântica da escrita. Não sou poeta apenas quando estou sentada com meu caderno. Sou poeta. O que não é escrito vale tanto quanto o que é escrito. Não encano. Mesmo quando não estou trabalhando, eu estou. Minha poesia e eu somos uma coisa só. Talvez romântica não seja a palavra certa e sim performática num certo sentido.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, bem, ele aparece às vezes. Mas sua visita é rápida. Eu sou naturalmente uma pessoa confiante. Confio que sempre vou dar o meu melhor, e dou. Na verdade, as minhas próprias expectativas me parecem mais importantes que as dos outros. Primeiro, porque sou desconhecida no mundo literário e isso me dá uma liberdade incrível. Segundo porque quando se faz arte e não entretenimento, a relação com o público não é subserviente, é mais provocativa. Terceiro, acho que todas as pessoas têm o direito de gostar e de não gostar do que bem entenderem. Uso as críticas como mais uma ferramenta para o meu trabalho.
Sobre projetos longos, sou ariana. Ou seja, prefiro tarefas rápidas e passar para a próxima. Perco facilmente o interesse pelas coisas. Isso não só com a escrita, também na minha vida. Este é um desafio que ao longo do tempo terei de superar. Ou não. Ou esse nosso mundo será cada vez mais líquido (ou gasoso, vai saber?) e veloz e gente com o meu perfil inquieto estará mandando muito bem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho certeza que o trabalho fica pronto. Não sei se um poema tem fim. Por mim, eu mexeria neles até o fim da minha vida. Mas, uma vez publicado, já era. Eu reviso os poemas centenas de vezes, sem exagero. E quando eles parecem “prontos” faço um negócio que chamo de revisão cabralina e que consiste em perguntar a cada palavra se é ela a palavra certa para estar ali. Se é ela e não outra. Não acredito em sinônimos. E há a questão da sonoridade, do ritmo. Leio em voz alta e mais, peço a outros que me leiam em voz alta, que é para eu não me viciar na minha própria interpretação oral.
Eu mostro meus poemas para os outros, mesmo quando são rascunhos toscos e imperfeitos. Escrever me dá alegria e gosto de compartilhar essa alegria com quem amo. Eu também escrevo sobre as pessoas que conheço, sobre momentos que vivemos juntos ou sobre coisas que conversamos. Faço alguns poemas como uma vó faz um bolo. É assim que eu amo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia não me sobe a saia. Isso, evidentemente, afeta meu trabalho. De todos os escritores que conheço eu sou a única que trabalha com papel e caneta. E não qualquer papel nem qualquer caneta. Tem que ser um caderno de tamanho A4, de preferência algum bem vagabundo, e caneta Bic. Moleskine, caneta tinteiro, esse tipo de coisa me deixa desconfortável, confere muita pompa ao ato e para escrever preciso me sentir confortável.
Começar um poema no computador? Jamais. Aliás nem tenho um. Estou respondendo essas perguntas com o celular. Tempos atrás mandei setenta páginas de poemas para um edital. Tudo digitado no celular.
Escrevo no papel até chegar a uma versão ok. Aí digito e reviso outras mil vezes. O bom de digitar os poemas é que a estrutura deles fica mais evidente. As sílabas nos versos. O tamanho dos versos. Também porque minha letra é praticamente ilegível. Na época do vestibular, a professora de português me obrigou a fazer exercícios de caligrafia. Segundo ela, a redação não era problema para mim. A caligrafia, sim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Essa pergunta é um tanto filosófica e minha vontade é responder: eu lá sei? Mas vou tentar. Acho que eu tiro as ideias da minha experiência no mundo. Então, parte delas vêm de dentro e parte de fora. Há também essa tensão entre o que é e o que pode ser, como no ensaio do Milan Kundera sobre o riso do anjo e o riso do diabo. O anjo ri porque o mundo é perfeito e ele está feliz. O diabo ri porque acha o mundo um belo saco e sente que faria melhor. Minha poesia é sobretudo política e eu rio junto com o diabo. Mas há os meus momentos de anjo também. Minhas ideias vêm desses dois risos.
Para manter a criatividade, eu vivo da forma mais intensa que consigo. É a paixão, é a loucura o que me alimenta. É ver o que eu nunca vi antes. É conversar francamente com as pessoas. É lutar. É estar próxima de pessoas que admiro. É ler poesia foda, ver filmes que mexem com a cabeça, ouvir música incrível, sobretudo dançar. Enfim, a vida é a matéria da arte e a arte é a matéria da vida para mim. Não faço nada com o objetivo de aumentar minha criatividade, apenas sou quem eu sou. Às vezes gostaria é de ter menos criatividade e ser mais prática e chatonilda. Talvez fosse mais fácil viver e escrever.
Pra não dizer que não faço nada nesse sentido, às vezes pratico alguns exercícios inspirados no grupo da Bernadette Mayer, coisas como escrever enquanto caminho ou fingir que sou outra pessoa enquanto escrevo. Só para sair da zona de conforto e também para flertar mais graciosamente com a cena contemporânea.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo do tempo, eu mudei. Não tinha como minha escrita não mudar junto. Isso é natural. Além disso, tudo o que leio afeta minha produção. O acúmulo de leituras deixou meu texto com uma qualidade superior. Quanto melhores suas referências, melhor fica o trabalho. Quando eu era mais jovem, e eu escrevo desde que me entendo por gente, as leituras me influenciavam a ponto de eu não conseguir me desvencilhar do estilo do autor que eu lia no momento. Então, por exemplo, se eu lia Clarice, eu escrevia Clarice. Era uma ótima falsária, mas isso, é claro, não é suficiente. Meu desafio foi me tornar eu mesma no texto, achar minha voz. E isso nem é original. Esse é o desafio de quem escreve.
O que mudou no meu processo foram várias coisas. O objeto do meu canto mudou. Com isso, mudou também a atitude e a linguagem diante desse objeto. Antes eu escrevia para mim, agora escrevo para as mulheres. Antes, eu escrevia esporadicamente. Agora já faz uns anos que escrevo regularmente. Antes eu revisava muito menos do que reviso hoje em dia. É como se minha escrita passasse do hobby à razão de ser. Hoje eu levo minha escrita terrivelmente a sério. Escrever é uma necessidade desde sempre mas agora a necessidade é escrever um texto que eu leia e pense: “Isso aqui mata a pau!”
Se eu pudesse dizer algo para mim mesma no início, eu diria: pare de olhar para dentro e comece a olhar para fora. Não perca tempo com a prosa, que não é a tua. E não use a ênclise jamais (a menos que a sonoridade exija isso de você).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Algo que eu quero muito fazer é escrever peças. Eu amo o teatro e acredito que o texto é a base de tudo. Já rascunhei algumas peças, mas a pergunta se refere a algo que eu não fiz ainda. Lá vai: uma peça sobre trabalhadores de uma loja diante de uma forte reestruturação. A peça falaria das relações de poder no trabalho, dos tipos de trabalhadores e das hierarquias e também da relação entre vendedor e cliente, que eu acho complexa, pesada, fascinante e pouco explorada na literatura. Penso que o vendedor é um tipo de ator, seria como um teatro dentro do teatro.
Tem muitos livros que não existem que eu adoraria ler. São tantos que eu poderia escrever um livro sobre esses livros. Vou dizer um livro que não vai existir, porque o autor está morto. Eu gostaria de ler um livro do Robert Mapplethorpe sobre os anos que viveu com a Patti Smith. Ou então vou escolher um livro que vai existir, de fato. O próximo do Murakami, qualquer que seja ele.