Eduardo Veras é poeta, pesquisador e professor de Literatura na Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
É preciso confessar que tenho certa dificuldade em estabelecer e em manter uma rotina, por menos rígida que seja. Faz tempo venho traçando em vão planos e cronogramas de atividades profissionais e de lazer, principalmente para o período da manhã, que é de longe o mais fértil do meu dia. Recentemente, descobri que era necessário aprender a explorar criativamente o caos da minha inquietude ao invés de combatê-lo em nome de padrões disciplinares alheios à minha personalidade, então passei a conviver melhor com a ausência de um programa mais rígido de organização temporal. Hoje percebo que as melhores coisas que escrevi ao longo da carreira coincidiram justamente com tempos mais ou menos longos de armistício interior, quando as autocobranças obsessivas arrefecem um pouco. Houve uma época que fazia natação pela manhã, o que me proporcionava um grande relaxamento; houve outra que preferia as caminhadas na praça; atualmente, o máximo de rotina que consigo seguir depois de acordar é escovar os dentes, regar as plantas e tomar um rápido copo de leite. O que vem depois depende sempre do meu humor – infelizmente bastante instável – e da ordem do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Funciono bem nas horas extremas do dia: pela manhã bem cedo, especialmente, quando experimento a felicidade de me levantar pouco depois do sol, e na fronteira entre a noite e a madrugada. São horas de quietude e solidão, importantíssimas para uma personalidade inquieta e turbulenta como a minha. O problema é conseguir conciliar essa tendência com as exigências da vida prática, o insano trabalho na universidade e as muitas tarefas domésticas. Quanto à preparação, tenho costume de organizar minha mesa de trabalho diversas vezes antes de começar a escrever. Também gostava muito de ouvir música ou tocar violão para exercitar a concentração, quando havia tempo para isso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo lidar com metas. Não apenas na escrita, mas em todas as outras áreas da vida, pensar a longo prazo é muito angustiante para mim. Tenho ideias vagas a respeito do futuro, traço planos de carreira e de produção literária, mas estou certo de que o melhor de mim aparece quando tudo isso fracassa e sou levado a repensar a direção no calor da hora. Sobre escrever todos os dias, sim; não há um único dia em que passe em branco, sem rabiscar as dezenas de caderninhos e agendas que me acompanham a todo lugar. Para mim, há algo de esportivo na escrita. Preciso escrever, como preciso nadar e caminhar, meio que para manter a forma.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A passagem para a escrita final não é simples. Veja que demorei quase trinta dias para, finalmente, sentar à frente do computador e responder suas perguntas, que, no entanto, ficaram ressoando e girando na minha cabeça durante esse tempo todo. Escrever é uma forma de exorcismo no meu caso. O bem-estar que sinto ao colocar a mão na massa é análogo àquele que experimento quando consigo correr ou nadar ou praticar Boxe Tailandês (atividades que, todavia, nunca consegui realizar com a frequência desejada). Escrever me permite esvaziar a cabeça, sempre tomada de ideias e projetos fantasmagóricos que precisam da atividade – mental e física – da escrita para ganhar corpo e vida real. Em resumo, para mim, há algo de diabólico nesse momento que precede o ato redentor da escrita. Uma vez vencido esse duelo, escrever torna-se a mais prazerosa das atividades.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal com tudo isso. A procrastinação é o próprio inferno para mim, e o medo e a ansiedade e a raiva e o desânimo não passam de consequências diretas dela. Como disse, meu grande desafio pessoal é vencer essa primeira barreira. Quando me sento ao computador e consigo digitar, digamos, um primeiro esboço de título ou de parágrafo inicial de um ensaio, por exemplo, as névoas da angústia se dissipam e o prazer e a fluência assumem, felizmente, as rédeas. De alguma forma, minha autoconfiança está diretamente ligada ao ato em si de escrever, como se aquilo já bastasse, como se fosse – e, para mim, é – um fim em si mesmo, não dependendo de mais nada para se justificar. Com a poesia não é muito diferente: o primeiro passo – o primeiro verso, o mote inicial – é sempre uma luta, mas depois as coisas correm mais soltas. Até o momento, venho enfrentando o monstro da procrastinação à unha, o que nem sempre funciona, mas espero que o tempo e a experiência me ensinem a lidar melhor com isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho costume de revisar demais os meus textos, o que já me trouxe pequenos problemas e algum arrependimento. Meu processo criativo é muito intempestivo e me custa uma energia enorme. Talvez por isso, mantenho uma relação de estranhamento com meus textos quando prontos. Preciso me livrar logo deles. A sensação de liberdade que experimento ao terminar um artigo me leva a querer enviá-lo o mais rápido possível para a publicação. Em suma, não seria exagero dizer que me canso dos textos e começo muito rápido a desprezá-los quando saem do meu ateliê. Mas aprendi com o tempo a valorizar uma boa revisão final, da qual não abro mão. Mantenho uma pequena rede de amigos leitores desde a graduação. A eles confio principalmente meus poemas, talvez porque me sinta na corda bamba quando me meto a fazer literatura. A poesia, em especial, tem um quê de salto no escuro para mim. Como crítico e pesquisador, sinto-me mais seguro, com os pés no chão, no controle da situação, por mais falsa que essa sensação possa ser.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto muito de escrever à mão. Na verdade, preciso escrever à mão. Resumos, fichamentos, notas, resenhas, faço sempre à mão. Tenho uma grande fascinação por arquivos, embora não entenda bulhufas do assunto. (Como você pode ver, há uma certa tensão entre o caos e o desejo de organização por aqui). Mantenho cadernos e pastas catalogadas, dividas por autores, onde escrevo e arquivo textos de e sobre meus autores prediletos. Tudo isso em papel, com existência física. Detesto ler em computador, celular, tablete. Em minha última temporada na europa, me convenceram com mil e um argumentos a testar um Kindle, que adquiri a preço de ouro em uma semana para vender por pouco mais da metade do preço na semana seguinte.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideia vêm predominantemente do contato com outras pessoas. Preciso muito do encontro, do diálogo, de boas conversas de bar para cultivar novas ideias. Jamais me contentei com o isolamento que o trabalho de pesquisa às vezes nos impõe. Em todas as minhas fases de formação profissional, da graduação aos estágios de pós-doutorado, sempre fiz questão absoluta de dar aulas. A licenciatura está na base de todo meu trabalho como pesquisador. É na sala de aula, mais que em qualquer outro espaço de convivência acadêmica, que minhas ideias brotam com mais fluência e clareza. Aprendo muito com minha própria fala e, claro, com o retorno de meus alunos. Também preciso participar de congressos e de grupos de pesquisa, espaços de troca que sempre funcionaram demais como fertilizantes intelectuais no meu caso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Por incrível que pareça, acho que mudou pouca coisa. Talvez eu me penalize menos hoje por não corresponder ao meu próprio ideal de intelectual de gabinete, com mesa, escritório e estantes de livro instalados num cômodo isolado da casa e do mundo. Mas nem sempre consegui ver esse ideal com a necessária ironia, e esse seria o primeiro conselho que daria a mim mesmo se pudesse voltar ao tempo do doutorado, administrar as cobranças excessivas e gerenciar criticamente os ideais de intelectual, professor e pesquisador que não raro somos levados a cultivar. Eu também me aconselharia a nadar, correr e praticar boxe, atividades que descobri depois. Também me diria que o trabalho acadêmico precisa se reconciliar com o prazer, o prazer da vida lá fora, o prazer de leituras “nada a ver”, o prazer do ócio criativo. A escrita não pode ser uma tortura produtivista, sob pena de não valer a pena. Gosto muito da minha tese de doutorado, apesar de certas imprecisões e de alguma ingenuidade juvenil que nela identifico hoje. Talvez eu também dissesse a mim mesmo – covardemente – para ser menos pretencioso, menos intempestivo, menos apressado na leitura de um poeta tão pesado como Baudelaire. Mas torceria intimamente para o Eduardo daquele tempo não me dar nenhum ouvido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Voltarei certamente ao tema da minha tese. Se não vier a publicá-la integralmente, com algumas correções, minha ideia é retomar o tema da Queda como princípio poético em Baudelaire. Não estou muito longe disso, pois andei rabiscando algumas coisas nesse sentido durante meu estágio de pós-doutorado em Campinas. Também gostaria de escrever sobre Carlos Drummond de Andrade, mas isso ainda é puro desejo. De uns tempos pra cá, tenho me interessado também por trabalhos que intercalam crítica literária e relato pessoal de leitura. Queria escrever algo assim sobre minha relação (pessoal, existencial e intelectual) com Baudelaire.