Eduardo Selga é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Muitas vezes, imediatamente após acordar me vem uma ideia interessante para a construção literária, ou uma pendência na trama de algum conto que eu esteja escrevendo se resolve por meio de uma ideia que desata o nó. Afora nesses casos, eu não escrevo durante as manhãs. Elas ficam destinadas à leitura e a assistir a vídeos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu me sinto mais à vontade em escrever nas noites e nas madrugadas, mas não há propriamente um ritual, exceto, talvez, pela necessidade de café enquanto escrevo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não trabalho com metas. Aliás, detesto esse conceito, que advém do mundo empresarial e tende a mecanizar o trabalho intelectual. A coisa acontece assim: determinada ideia para construção de um conto me vem de algum modo, mas ela nunca acontece inteira. É sempre uma coisa vaga, muito mais uma atmosfera do que ação ou conflito entre os personagens fulano e beltrano. A partir daí, a construção textual segue aos poucos. Mais ou menos após cinco ou seis dias a essência do conto está pronta; a partir daí, vem a revisão, que não é apenas ortográfica: ela inclui também a trama ou personagens. Mas, como disse, não trabalho com metas, de modo que o tempo necessário para formar o corpo pode demorar mais que seis dias, ou apenas durante a correção eu perceber que o texto merece ser impiedosamente rasgado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma vez que surge a ideia, antes de digitar qualquer coisa eu escrevo uma espécie de esqueleto não da trama completa, e sim da essência da ideia ou imagem que me veio. Faço isso para que o esquecimento, comum em mim, não me faça perder a ideia.
Além daquilo que me vem tão logo acordo, inúmeras situações do cotidiano me servem como pontapé inicial, desde que eu vislumbre um conto que esteja dentro do insólito e/ou que se possa explorar o psiquismo, muito embora aconteça vez por outra a produção de textos dentro da estética realística.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Algumas tramas simplesmente travam em determinado ponto. Nesse caso, não insisto: dou a ela o tempo necessário para que se mostre a mim do jeito que deve ser para destravar. Nesse sentido, a procrastinação às vezes é muito necessária, pois funciona como um tempo de gestação.
Outro ponto importante é que eu não escrevo tendo em vista a satisfação do público xis ou ípsilon. Sei que pode parecer arrogante e até falso de minha parte, mas se o leitor gosta ou não do meu conto não me faz mudar o caminho da trama, o caráter de algum personagem ou ainda a atmosfera insólita. Então se pode afirmar que escrevo para mim mesmo? Olha, eu tenho necessidade de traduzir esteticamente meu mundo interno. Se o resultado atrai muitos ou poucos leitores, isso para mim é secundário.
Tenho dificuldade em trabalhar com projetos longos. É por isso, por exemplo, que nunca me aventurei a escrever romance. Prefiro a intensidade do conto, com suas entrelinhas, lacunas, pressupostos e subentendidos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muito raramente mostro o texto a outra pessoa, exceto em casos bem específicos. Quanto à correção, faço-a muitas vezes, mas não há um número determinado. Inclusive, não gosto de reler contos que já dei por terminado porque tenho certeza que encontrarei algo a ser corrigido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou meio primário quanto à tecnologia. Mal e mal domino o necessário para escrever, não tenho interesse por grandes inovações nessa área. Como já disse antes, rabisco um esqueleto de personagens e atmosfera, e isso acontece com o que estiver à mão, até mesmo no Word do celular.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como já disse anteriormente, o instante em que acordo é fundamental, mas também qualquer elemento do cotidiano pode funcionar como gatilho.
Para manter a criatividade eu leio todo gênero textual, evidentemente com maior predileção por alguns. Faço isso não apenas porque a diversidade estilística dos outros autores é enriquecedora: também porque escrevo artigos ligados à literatura e à política, o que me obriga à leitura de gêneros informativos. Outro elemento que me ajuda a manter cultivar a criatividade é a música: ouço muito, principalmente a brasileira, de vários períodos históricos.
Determinadas pessoas instigam minha curiosidade, por alguma característica pessoal que nem sempre consigo definir. Nesses casos, presto muita atenção ao que diz e aos seus gestos, mas não que eu vá necessariamente copiá-los de modo realístico em algum personagem. Esse conteúdo fica armazenado em algum canto de mim, às vezes anotado em algum rascunho e, junto com outros dados, vão posteriormente compor algum personagem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Até aproximadamente o ano 2000, eu escrevia contos muito longos, e me perdia um pouco ao construir um texto excessivamente estético, caminhando para o neobarroco ou neoexpressionista, embora desconhecesse tais conceitos. Ainda escrevo assim, predominantemente, mas meu senso de equilíbrio foi muito aprimorado. Hoje, de um modo geral, os contos têm a metade do tamanho dos escritos há quinze anos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Dentro de mim há uma casa abandonada, motivo pelo qual muitos de meus contos são ambientados no interior de casas. Sinto a necessidade de organizar um livro de contos com esses textos, mas não comecei ainda porque a dificuldade de publicação aqui no Espírito Santo é grande.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não há um planejamento, no sentido de inicialmente sistematizar um roteiro para narrativa e uma metodologia de trabalho. Isso porque toda a vez em que a construção de uma nova narrativa me vem à mente, sempre surgem várias alternativas simultaneamente nas partes fundamentais dela, e é na feitura mesma do texto que uma é escolhida em detrimento das outras. Por causa dessa característica, há narrativas cujo começo é difícil, e outras nas quais o desfecho é mais complexo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
De um modo geral, prefiro escrever durante a noite e nas madrugadas, mas isso não é uma regra. Do mesmo modo, não tenho dias específicos para escrever, mas sempre carrego comigo um bloco de notas, para anotar tramas e personagens, quando surgem. Não tenho preferência por ter apenas um projeto ou vários simultaneamente, é a minha dinâmica criativa que estabelece isso.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Sem dúvida, os ambientes familiar e escolar, nos quais o livro e a literatura brasileira eram muito presentes, na infância e pré-adolescência, foram os principais fatores que me motivaram a escrever. Não dá para saber o exato momento em que me decidi a escrever, mas acredito que a vontade de criar mundos foi fundamental e pulsões do meu inconsciente construíram esse instante. A segunda motivação até hoje existe muito fortemente, na medida em que minhas tramas são pontuadas pelo insólito.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
As narrativas iniciais eram de cunho realístico, uma tentativa de copiar o real, mas logo comecei a trilhar o caminho no qual estou hoje, pavimentado pelo insólito, o surreal e a linguagem figurada. Certamente houve influência de minhas leituras, mas não posso garantir com certeza quais os autores que mais me afetaram na infância e pré-adolescência. A partir daí, contudo, posso dizer que Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Gabriel Garcia Marquez e Érico Veríssimo foram escritores que têm responsabilidade no caminho que escolhi. Quanto às dificuldades, elas se mostraram sempre que me vinha uma construção mental, mas não tinha ainda o devido domínio das ferramentas narrativas necessárias para consolidar no papel essa construção.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa), pelo trabalho com a linguagem e arquitetura de um sertão pessoal, baseado na realidade; O Prisioneiro (Érico Veríssimo), pela abordagem do autorracismo, produzindo uma pessoa traumatizada; Lavoura Arcaica (Raduan Nassar), pela alegoria ao patriarcalismo, pela linguagem carregada de crítica à sociedade e à interpretação da Bíblia feita ao pé da letra, e pelo elogio ao pensamento anarquista.