Eduardo Lucas Andrade é escritor e psicanalista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia começa conforme com uma rotina que inventei, tal como descrita naquela música que inclusive carrega o mesmo que meu primeiro nome: “Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar. Ficou deitado e viu que horas eram”. Depois, do mesmo modo que uma pálpebra puxa a outra e uma palavra convida a outra a dançar, um café puxa o dia! Porém, anterior ao café, ainda deitado, na horizontalidade da existência, movido pela preguiça, usufruo das recordações dos sonhos, quando deles lembro. Sonhos são histórias singulares contadas a si mesmo pelo lúdica que dribla o retilíneo uniforme da suposta lucidez do acordado, não há acordo, o sonho se escreve pelo que no sonhador foi inscrito – o sonho é a parte essencialmente escritora de cada pessoa dela para ela mesma. Quando não consigo lembrar dos sonhos, brinco comigo mesmo pegando as 5 primeiras palavras que vierem. Aleatórias mesmo. Depois, em algum oportuno momento, desafio-me a amarra-las em alguma escrita. Pelas palavras me recordo de viver. As palavras são escritas por letras em pé, no pé da letra, neste texto mesmo você não verá letra deitada, então ciente disso levanto para escrever meu dia e fazer minha história. Lentamente vou pegando embalo. Lavo o rosto, escovo os dentes. Lavo a preguiça e dou aquela escovada no comodismo. Furo meu dedo, meço a glicemia (sou diabético), e com a vida furada tenho espaço de sobra para me mover. Feito isso, volto ao café que puxa o dia. Preparo a alimentação, o café e coloco música a tocar. Cada dia coloco uma música diferente para tocar e deixo o aleatório puxar as demais, ou elejo um estilo para o dia e assim vou conhecendo músicas e sons novos. Com o espresso começo a me expressar. Leio jornais regionais, da cidade em que eu estiver e os jornais que abrangem o território nacional. Vasculho as telas de olhar a si mesmo, redes sociais e análogos. Aqui encerra-se a breve rotina que me proponho diariamente. Não tenho horário fixo para acordar, nem para levantar. Pode ser 5h, 7h, 10h. O real do dia me guia, se tem viagem, se no dia anterior dormi tarde, se tenho atendimentos a realizar e outras bens aventuranças. Nesta segunda parte não tenho mais rotina, tudo varia conforme cada dia, em qual cidade estou e demais transversalidades. Pois é aqui, no depois que vou fazer o que está posto na agenda, cada dia com seu ritmo, correr, clinicar, ler, escrever, responder e-mails, estudar, pegar estrada, cuidar dos cactos e etc. E vida que segue, que sigo, que vivo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho livros em três estilos de escrita, sejam elas: poesia, infantil e técnicos.
Na escrita das poesias e crônicas também adentram aqui, escrevo no instante em que posso anota-las e por elas sou interpelado. As poesias são desafiantes, elas arrancam fios, emergem em instantes cuja anotação corre risco de não poder ser feita: banho, na direção do carro e corrida. Mas aprendi a domar este joguete da poesia em mim, eu a provoco, saio nas ruas com o propósito de observar o mundo, as pessoas, o ritmo, a circulação, as flores, procuro ser capturado por algum detalhe, instante, acontecimento. A poesia está ali, em algum lugar, brincando de esconder, mas um esconder que seria catastrófico de não ser encontrado, então ela aponta em algo e sabendo que sai para provoca-la, carrego comigo, neste momento, instrumentos para a anotação. Depois que vou reler. A ortografia aqui não tem valia, é capturar o que veio na arapuca da emoção, deixar escapar faz com que aquele presente perdido seja um futuro perdido para sempre. Anoto o que vem, como vem. Um escritor não é um professor de português, costumo dizer a mim mesmo. Um escritor é o avesso, não ensina, mas algo se transmite. É o avesso, não o contrário. O professor de português atua na correção pelo saber e o poeta pelo o que ele nem sabe que sabe, mas transcreve. A poesia é visceral, não da cobertura da razão. A razão é uma cobertura e esta pode acobertar poesias. O poeta não tem razão, mas também não é sem causa, é causado pelo mais familiarmente estranho que lhe habita. Outra forma que faço com as poesias é ficar rodando a imaginação igual roda-se pião, gosto de pião, o movimento de quem joga é absorvido pelo pião e lhe dá equilibrista vida. Então, comigo mesmo, fico modificando o óbvio, incrementando elementos e acontecimento e de repente vem algo. Tem poesias que são feitas para serem jogadas fora, fazem parte da limpeza. Outras são para serem salvas mesmo, partilhadas, fazem parte da desorganizada organização humana. Nos meus livros de poesia tiro sempre parte de uma para ser o título, assim foram com os livros Livrai-me de todo normal, amém! Um joguete, né. Eu não trabalho, eu só escrevo! Veio de tanto escutar esta pergunta. E este só é um condensado de questões, só do somente, só da solidão. Tem também Risco de Vida: da Doença Crônica à Crônica da Doença! Nasceu após minha descoberta acerca da diabetes. E nele também brinco com esta frase Risco de Vida que comumente é utilizada de forma distorcida. Vi uma vez no metrô: “não pise no trilho, risco de vida!” Me deu uma vontade danada de pular lá. O que mais quero é risco de vida, se fosse risco de morte, eu não desejaria pular, mas era de vida! Então jogo com isto. AMORnheci Pensando em Nós! Contém neologismo e desafio à adaptação da fala.
A construção dos livros infantis se dá por outro ritmo. Estes carecem de uma precisão nas palavras para que alcem a alma infantil na criança de qualquer idade, seja ela de 3, 5, 47, 79 anos. Primeiro vem o tema, geralmente polêmicos. Atualmente nos meus livros infantis abordo o respeito à diversidade com o personagem Caio o passarinho de saia no livro As Lágrimas do Crocodilo Jão. Este livro, por exemplo, nasceu na necessidade de intervir naquela frase covarde de que homem não chora. O machismo que tanto assassina mulheres gerando catastróficos números de feminicídio cotidiano, também cobra do homem colocando-o como o ser da não falha. Desumana proposta e este acaba por reagir com agressividade na tentativa de buscar uma suposta garantia ou de anular o que aponta sua condição faltante. É uma problemática do ser falante ser faltante. A grande diferenciação do humano com o mundo que se move e com os animais é a capacidade de indagar-se, de questionar, de criticar, de mudar, de inventar, de ser diferente e tal como no jogo do resta um, da dama, do xadrez, é preciso espaços, faltas, vazios, para que o movimento aconteça. Deste modo uni a frase que sempre achei ab-surda, surda mesmo, da não escuta, de que homem não chora, do engula este choro, com a metáfora das lágrimas de crocodilo, que são lágrimas da própria dor, tidas como hipócritas pelo outro. Não são lágrimas do arrependimento, é bem verdade, mas são da própria dor mandibular. Ele sente, salga os olhos e chora. Outro livro infantil que toco em tema delicado é Estrela: a Bezerra Que virou Saudades! A história toda está já no título. Fala da morte, luto e prevenção ao suicídio. O nome da personagem é Estrela, então não tem como ela virar estrela quando morrer, aqui um dizer comum é desassossegado. É uma bezerra, então no luto ficam pensando na morte da bezerra. E ela vira saudades, quem me ensinou isso, de que quando se morre transforma-se em saudades nos que ficam foi uma criança. Fica no final uma parte para a criança interagir. Os meus livros infantis são feitos após longa escuta com as crianças, elas falam, eu escuto, transcrevo do meu jeito. Busco interação. No livro Morangos: o mundo não é dos espertos! Uso do tem da ética e da disputa que atravessa a idade das disputas das crianças com intensidade aos 4, 6 anos, fase fálica por assim dizer, busca pelo poder e que em nome de uma esperteza é ensinado que elas pisem em todos. Mas daí, no livro, é trazido que o mundo é dos resilientes. Novamente contém interações. Em todos meus livros infantis trago prefacio para ao adulto, as crianças os saltam, mas ajuda muito adultos que tem o tabu ainda no tema. Me Lembra do Meu Queijo? Memória Vale Mais do Que Dinheiro, intervenha justamente naquilo que o título aponta. Na mensura das palavras tento interagir com rimas, com nomes que contém ecolalias, sonorizações, joguetes, mas que não infantilize a linguagem. Aqui os momentos que tiro para a escrita são mediante o projeto que traço: escolha do tema, escuta das crianças, escuto pais e professores, pesquiso curiosidades acerca dos animais elegidos para a história e assim vou dando corpo a ela.
Nos livros técnicos, tal como o Psicanálise e Educação, escrevo mediante uma problemática e uma prática que conheço, estudo inúmeros autores, busco referências, tento escutar quem trabalha na área e vou tecendo os capítulos, este requer muita leitura, idas e vindas no corpo do texto, um apalpamento que vai se intensificando. Este estilo de escrita eu escrevo geralmente nas férias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo sempre, seja cartas, (sim, cartas), seja anotações soltas, seja lembretes, seja banalidades nas redes sociais. Escrever é um exercício diário. Ler também, quando me deparo com um tédio, saio lendo embalagens de produtos. Não consigo estabelecer meta diária, mas a médio prazo sim e nesta me viro. Metas para uma semana, um mês, assim é com solicitações feitas por colunas de jornais, capítulos de livros, revistas e blogs. Raramente topo uma escrita que atropela o tempo, assim só aceito se eu já tiver sido atropelado anteriormente pelo tema. Meta diária seria uma meta não lapidada, alguma escrita tem que acontecer, não sei qual, qual tema, quando e quanto, mas tem que acontecer. Inauguro a verdadeira surpresa, a verdadeira surpresa é aquela do qual se espera sem saber quando aparecerá. Um dia sem escrita é um dia a menos, um dia com escrita é uma eternidade a mais. Sou imortal, membro de academia de letras, mas este imortal em mim são as escritas que ficam. Não sei precisar quando, mas tem momentos que escrevo de forma mais concentrada, mais longínqua, mais duradoura no tempo. Passo horas assim, viro noite, se eu tiver dormido de dia. Careço de estar presente para escrever. Não gosto de escrever sabendo que terei que parar para algo de imediato, gosto de supor uma liberdade, apesar de que sei que o mundo segue e pode me interromper, mas ao menos não é algo que no relógio sei que terei que cumprir. Então sento, escrevo, me distraio, retorno, bebo algo, vinho, café, água, cerveja, algo, dissolvo o garrado na garganta e esta evapora em palavras. Escrever correndo é igual aquela história do cara que vê a casca de banana no chão e sabe que vai cair, por isto prefiro de prazos mais médios para longos. Mesmo tendo o período concentrado não significa que esgoto a escrita ali. É um concentrado não todo. Tem volta, o mundo da escrita dá muitas voltas! Concentrado é que algum centro está sendo abordado, ganhando contornos, gerando marginalidades que depois se tornarão centro e uma hora este ciclo terá que parar e as margens verdadeiramente marginais terão que assim ficar. Dar um basta na escrita é difícil. Ou ela se basta por ela mesma ou tenho um problemão. Textos com quantidade de caracteres demarcados me sugam muito, enxugo duas palavras, acrescento outras. É hercúleo este trabalho braçal, um árduo processo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tem escritas que me movem, interpelam-me por dentro e quando vejo já estou escrevendo, este é o caso de poesias, crônicas, aforismos e análogos. Tem escritas que me fisgam por causar-me desejo, vejo algo, uma problemática geralmente, injustiças e se posso contribuir com palavras que causem onda, além de me saciar acabo por intervir. Busco melhor forma de transmitir, pois para mim texto técnico, texto com objetivo traçado, deve ser o mais transmissível possível. De forma que alcance o leitor e que este possa pertencer na identificação àquela questão. Não para concordar, nem eu concordo comigo, mas sim para gerar algo autônomo. Causar ondas com base, para que as mesmas o abale, mas não o afunde “Fluctuat nec mergitur”, diria os franceses por esta célebre epígrafe. Tem escritas que são para abalar e outras para acolher, carece do tema e do objetivo que move aquela escrita. A escrita tem vida, mesmo que eu tenha já rascunhado muita coisa, imaginado, devaneado na solidão de escritor que não colocou ainda no papel seu argumento, mesmo que tudo pareça ordenado, o texto se mostra vivo e como ondas me faz navegar descobertas transversais que acabam por me ensinar mais do que eu transmito. Aprendo muito escrevendo, tanto pelo esforço de estudo que coloco para trazer cultura, história e desassossegos, quanto pela surpresa que a escrita viva me prega. Ela prega em mim, cola e depois vai perdendo seu teor tenaz e flutua vida afora. Difícil é acabar. Sou longínquo, apesar de ter escritas pontuais. Meus textos curtos são longínquos de outra forma, pois eles continuam falando em mim. Tenho pelas delongas da cadeia de significantes, que como trem, um vagão puxa outro, e uma palavra encarrilha outra, acabo por ir por de mais. Cessar, terminar o texto, enxugar caracteres quando delineado e mensurado, me estrangula linguisticamente e tento usar de artifícios mirabolantes para substituir o retirado por compactas palavras que condensam e jogam com o texto dizendo mais do que falam. Sempre que termino um texto digo a mim mesmo: terminei, mas não acabei! É, como a análise, postulado poeticamente por Freud, terminável e infindável. É até ali que ele começa, se pensarmos pela lógica de que chegará como novidade para o leitor. Tem textos que me fazem mover da escrita para a pesquisa, vejo as faltas e vou atrás e tem os avessos, onde a partir da pesquisa vou à escrita. O texto começa por si mesmo, quando vejo ele já está ali. Transcrever é que é um processo também árduo, no sentido do laborioso, de dar trabalho, de cansar a alma presente que se entrega naquele ato de colocar em palavras. Transcrever, começar o texto no papel, tem textos que começo com minha letra bonita, porém ilegível, no papel e outros no celular, no computador. Hoje com as nuvens, o arquivo me acompanha. Uma noite tardiamente dormida pode ser um texto não escutado a ser redigido e que não sossega até ser descoberto. Transcrever é enxugar gozo, não enxugar gelo, enxugar gozo mesmo, algum deleite é saciado e depois não adianta chorar pelo deleite derramado. Tá escrito e pronto! Ali assumo meu lugar de sujeito e arco com minha despedida enlutado do gozo partido, repartido, compartilhado. A culpa que advém em muitos escritores não carrego. Sei que poderia ter sido melhor e que sempre tem o que modificar. Sei e tenho experiência assim, de que tem escritas que outrora escrevi e hoje penso diferente. Isso é bom. Texto é mutável, é das palavras. Não é sem tempo, espaço e corpo. Faz tempos que quero fechar esta resposta e veja que vou dando voltas. Clarice Lispector tinha disso nas suas crônicas, não se perdia, se encontrava por surpresa. Aqui estou, agora abordando uma coisa que pode não ter nada a ver, mas que pode também ser a parte mais importante da resposta. Minhas vírgulas ganham ares de meu respiro e algumas até invadem o texto e depois nem sei o que foram fazer ali. Ponto final deve ser assim. Aqui está! Uai, exclamei. Quem trem, pontuei!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Os verdadeiros trava-línguas né. O outro trava-língua, da brincadeira, trava o ritmo, este trava a língua. A linguagem do depois é sentida como ausente de sujeito. Ela é empurrada por outro do agora. Priorizar, pegar aquela linguagem pela orelha e dizer para ela que fique ali que bateremos dois dedos de prosa, é complicado. Ela é teimosa. Custosa, custa libido, custa compromisso, custa tempo investido. Daí me ajeito. Ou uso a estratégia de que como sei que sou bom com datas, eu vou pela obrigação prometida ao jornal, editora ou a mim mesmo (este renegocio – tenho incrível facilidade de argumentar comigo mesmo) e acabo me apertando. Faço lembretes. Esqueço de olhar os lembretes. Faço lembrete lembrando do lembrete. O inconsciente tem destas coisas. Tem procrastinações que levo para análise e lá respondo por elas. Tem outras que entendo e relaxo, geral que mente, são as que sinto que estão mais dominadas, mais estruturadas. Complicado é que é incomensurável o processo de escrita, tem partes da montagem na cabeça que pode estar demorando para quem aguarda no papel, mas que agiliza quase tudo por ali mesmo e que depois como avalanche caí no papel. Tem também as inversas, que quando colocadas no papel prematuramente, acabam por tardar. Ideias maduras em demasia apodrecem e tardam, pois necessita novamente de enterrar e plantar as sementes. Existem também as procrastinações escópicas. Um jogo Voyer, elas se exibem, eu as olho e nada mais fazemos além de delirar nos vazios permitidos. Tem escritas que advém para corresponder às inquietações internas, pelo fato de ser escrita já correspondem ao cerne do escopo dela mesma. Tem outras que carecem do outro, que são prescritas, ainda que não cumpridas e assim geram mesmo expectativas. Tenho comigo que desde que dentro da ética, o escritor existe para transgredir mesmo. Desassossegar, para usar de Fernando Pessoa. Aquietar. A si mesmo, ao outro, permitir faltar, não ser todo. A expectativa diz de transversalidades incontornáveis, pois o fato de ser da linguagem, ela existirá amalgamada ao risco de frustração. Interpretação é nó de linguagem, novelo, pode embaraçar ou se alinhavar. O título geralmente me pega, pois ele é a cara, o representante, do texto, do livro, é o que vai no lugar de, compacto, intenso. Me ocupo mais nele que em alguns textos. O título sim, penso se diz e condiz com o conteúdo, se passa o recado, se dá pista, se atiça, aguça, faz salivar o interesse. Se causa desejo. Titular, o texto é reserva, é a procrastinação mais séria de minha escrita. Brigo com este abrigo. Vagueio. Até que por pressão, eliminação, recorte, algum modo, decido que será aquele e pronto. O título é contexto, com texto. Projetos longos me pegam por surpreenderem e a vontade danada que dá de mostra-lo. Projetos que faço entre literatura e parceria fotográfica, por exemplo, um que estamos amarrando fotografia, poesia e saúde mental, designado, olha o título aí, quase um prêmio mesmo: “Invisíveis: com que olhos se olha a depressão?” Este já me aquieta. Estamos nele, eu e Maíra Mendes, fotógrafa, trabalhando passo a passo no projeto. É longo, aborda muitos detalhes, muitas etapas. Tento usar a ânsia como impulso, embalo, energia, motor. Não pode cessar, se não procrastina. Não pode ser em demasia, se não estagna. Usar como bússola desejante do ímpeto de montar a intervenção. Um friozinho gostoso de parir a arte! Arte que pariu! E daí vivemos o nascimento. Neste caso não há a expectativa, há o progresso da e na realização. Para lidar com a ânsia eu falo, tal como estou falando aqui. Conto, reconto, provoco curiosidade, mas não mostro. Falo, pois a fala neste caso convoca, é invocante! Daí começam a perguntar sobre quando deixo faltar e posso novamente ir falando. Vivifica a gestação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar, visar novamente, é por excelência um revisitar e de tanto visitar acabo fazendo morada. Me sinto em casa. Revisar, olhar visando, tem algo do familiarizar-se, do enturmar-se e acabo deixando pontos cegos pela mesmice do costumeiro. O visado como objetivo se transforma no visado da imagem vista, parada. É neste momento, quando brota o mais do mesmo, que paro de revisar. Não tenho números, tenho tato e quando este não mais desliza linguagem é o sinal de que basta e de que chega. Mostro sim às pessoas. Há trabalhos que mostro as ideias, outros os textos, outros mostro determinadas partes, alguns tantos quando não mais consigo avançar e preciso de que alguém me dê palavras para que eu deslize nela. Sim, sou catador de palavras. Saio catando e fazendo dela trem novo. Hesito em mostrar alguns, outros publico nas redes sociais partes que começam e terminam em si mesmas, mas que são partes. Não anuncio que faz parte de algo e deixo ressoar. Por elas acabo tendo novas ideias e reformulando o corpo do projeto. Postar pontualmente faz com que reviva este familiar cristalizado. O cristal é tido como transparente, mas ele tem suas ligas de rachaduras, é preciso ir nelas, elas que fazem o cristal ser cristal e poder ser lapidado. Nas redes as pessoas me mostram estas ligaduras invisíveis ao olho desnudado do cansado escritor. Geram um familiar estranho, o verdadeiro familiar, um familiar não todo. É neste que se pode se reinventar. O familiar não é nós, somos partes dele e ele parte de nós – é preciso reconhecer isso, no texto, na vida. Poesias permito-me erros hortográficos, pois é lá planto. Nos textos técnicos tomo cuidado para ser transmissível e com este cuidado solicito correção profissional da ortografia e fluidez do texto. Este processo com a correção perdura o tempo necessário. Nos textos infantis, livros infantis, leio para crianças, converso com educadores, mostro a eles e escuto muita sugestão. Os nomes dados dos personagens nasce em grande maioria inclusive das ideias das crianças. Mostro, porque, apesar de escrever ter seu lado egoísta, ele é um ato de egoísmo ao outro, não um autoerotismo. Mostro também pela potência que as palavras possam tomar. É um cuidado!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A palavra ainda é a mais eficaz tecnologia que temos, me relaciono bem com ela. Das coisas que a palavra possibilitou para a escrita, me dou bem com os computadores e até com celulares. Escrevo muito na estrada e estas invenções na palma da mão ajudam e muito. Tenho uma letra ilegível, até a acho bonita, mas é ilegível até para mim quando feita na rapidez da necessidade de escoar escritas no papel. Minhas letras se atropelam, tropeçam em si mesmas e se embaralhando acabam por se codificarem. Quando vou ler este embaraço que mais parece dois fones de ouvidos guardados com carinho no bolso e que se entrelaçaram sabe-se lá como, deste modo acabo por perder demasiado tempo. Me divirto, mas me atraso. Deste modo, quando as ideias surgem no meio da estrada, em ônibus, avião, barco, carrinho de rolimã, seja onde for, anoto no celular para depois transcrever no Word com lapidações necessárias. As ideias gostam de passear, é pegar estrada que elas dão na perna. Ariscas, costumam vir quando podem fugir. Elas amam se esconder após aparecer. Muitas não são mais encontradas se não forem pegas ali. Então ter onde anota-las é imprescindível para caracterizar, com caracteres literalmente neste caso, as ideias fugidias. Tenho no WhatsApp um grupo chamado Guarda Trem. Guarda Trem é um grupo que só tem eu e lá envio meus rabiscos. Rabiscos encorpados, esqueletos, fragmentos, varia, mas é lá que envio. Ainda escrevo com caneta tinteiro, mas em escritas leves, cartas, dedicatórias, algo mais pontual e compacto, ou mesmo especial, algo que tenha um direcionamento determinado a tal pessoal. Quando escrevo sabe-se lá para quem uso estas ferramentas e sempre salvo os grandes textos em e-mail, nuvens, WhatsApp, pen drive, HD, já estou calejado e perdi muita coisa por não salva-las assim. Escrever é perder, mas não precisa ser um perder todo. Escrever é perder parte. Na escrita a matemática muda um pouco, quando você divide o texto, ele se multiplica! Teve rascunhos que começaram na palma da mão, pedaços de papeis, pois como vou muito na natureza, tem locais que não levo celular, mas as ideias eu as levo até sem saber, elas parecem aqueles cachorros de rua que adotam a gente e saem acompanhando. Como tem locais que não levo celular, mas levo minha bolsa com itens de diabetes e nela sempre tem papel e caneta, por vezes anoto ali mesmo e depois passo a limpo, quando lembro, ou quando acho o papel que eu nem lembrava, até parece que escrevo carta para mim e me surpreendo ao recebe-la. Nietzsche falava dos benefícios da memória vulnerável, este é um deles.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Cultivo, eis aqui uma boa palavra. Sim, cultivo cactos. Aqueles trens espinhentos, suculentos, que florescem lindezas em meios aos rachados do chão, que resistem, que honram sua existência e ainda se protegem, pois são espinhos variados, espinhos curvados de proteção, espinhos pontiagudos para não serem invadidos, espinhos de linguagem. Assim os interpreto. Tentáculos que possibilitam viver. Cultivo atoices, rodo pião, vejo ele ganhar ritmo e vida na ponta de um prego, tão bailarino aquele trenzinho! Cultivo o mineirês. O hábito de tomar café, apreciar vinho, degustar coisas novas e sair andando. Ando muito. Corro também, sou atleta de maratonas, mas como escrita o que mais é essencial é andar. O cultivo da observação! O cultivo de captar detalhes, é disso que estou dizendo desde quando falei dos cactos. Paro observo o que se movimenta, as pessoas, animais, brisas e também as coisas paradas. Imagino a história por detrás, devaneio e pesquiso sobre origem das coisas, de como foi parar ali, dos atravessamentos do real, dos detalhes. Sou tarado por detalhes, um curioso por excelência! Experimentar a vida. Escutar pessoas, histórias, observa-las, ter tato de alma ao ritmo cotidiano permite problematizar, poetizar e escrever. Tem horas que a escrita está ali, esperando para ser capturada e passamos correndo por ela. Por isso é preciso o cultivo do andar com tempo, serenidade, ou até mesmo ira, desde que observando. Balançar na rede, sentar debaixo de árvores, comer cores, sim, comer cores, pego uma uva, por exemplo, fiz isso agora, fecho os olhos e sinto o gosto daquele roxo esverdeado. O paladar da vida desafia os sentidos!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita acompanha a vida. Metamorfoseia-se com notícias e experiências. Ao longo destes anos escrevendo percebo que minha escrita está cada vez mais com vida própria, linguaruda e abelhuda. Toca em temas polêmicos e desafia pelo humor. Ela também tem uma pegada de trocadilho e de valorizar as curvas das palavras, fazendo assim jogos sonoros e de recortes. É uma escrita transgressiva, teimosa. Não era assim. Mas também não se trata de uma escrita sem educação ou que ofenda, não é isso. Ela tem autonomia e se sustenta. Ela ousa deixar falhar, deixar faltar e que quem ler que se vire para dar interpretação àquela carência. Minha escrita no começo era uma escrita que trazia nas palavras a sudorese da alma, era escrita preocupada com os olhares, depois descobri que quem olha primeiro é a minha própria escrita. A escrita é o olhar falante da palavra! Um olhar olhado que diz. Minha escrita hoje é uma atleta que começou seus inseguros passos, caminhava pouco e sempre olhava os outros correndo. Hoje ela corre no meio do mato, rodando os braços, mostrando língua e divertindo com seus próprios objetivos. Freud postulou em 1922 que “escrever é andar com palavras”. Uma maratonista. A origem da maratona é inclusive curiosa e relacionada com a anúncio pela palavra. Conforme eu disse, gosto de ir atrás das origens. Pois bem, Maratona, com letra maiúscula assim mesma, é uma cidade grega com média, isso varia do trajeto, obviamente, de 35km até Atenas. Diz-se que no ano de 490 A.C após os gregos vencerem os persas na batalha de Maratona, que ficou a encargo de um sujeito chamado de Pheidippides o anúncio da vanglória. Este saiu correndo, correu, correu, os 35km e ao chegar em Atenas ele gritou “Vencemosss” e desabou mortinho. A palavra chegar ali foi a verdadeira vitória, pois a palavra libertou. O anúncio mudou tudo. Até hoje se tem a maratona entre Atenas e Maratona. Então a escrita é uma maratona após a batalha dos escritos com suas ideias e um ou outro vem e anuncia a vitória. Neste caso a minha escrita tem anunciado mais que a mim mesmo. Escrevo com o saber que não sei que sei. O inconsciente ama ser escutado e na escrita o meu fala e fala e fala! Se eu pudesse dizer algo para eu mesmo quando eu iniciava a aventura da escrita, seria uma carta. Mais ou menos assim:
Eduardo,
A vida vai te exigir muito. A vida vai exigir o inesperado, apesar de que sempre se espera a vida, não se sabe com o que ela vem. Ela virá acompanhada de surpresas. Não tente dar à ela seus contornos sem faltas, mas também não a entregue para o dito destino. O destino humano é inventado mediante possibilidades. É sempre possível fazer algo com o que acontece. A vida vai te pregar surpresas, uma vez que ela não é retilínea uniforme. Então faça assim com a escrita. Permita que ela te pregue peças, peças que se souber escutar saberá que sabia mais de si mesmo que imaginava. A razão é uma cobertura, dizem: está coberto de razão! Deixe o texto fluir, desacoberte o texto. Desnude-se nas vísceras das letras. Ou então estará fadado a mentir a si mesmo. Não escreva o que pensa que o outro queira ler, nunca se sabe, nem mesmo o leitor. Escreva, se quiserem ler, que leiam. O escritor é o que escreve, não o que é lido. A vida vai te exigir muito, você vai sofrer muito, também terá deleitosas alegrias. Não laive a escrita com ignominias do saber. O escritor existe lá onde não sabe que sabe. O escritor existe quando escreve. A vida vai te exigir muito, então escreva a partir disso! A vida carece de linguagem, escrever é oferta-la. No mais, escreva! Falar nada com nada é melhor que falar tudo. Falar tudo assassina a linguagem.
Abraços e queijos!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou para escrever uma série, mas não comecei. Projeto para sair em 2020. Uma série sobre o cotidiano de um diabético de forma leve, bem-humorada ou até mesmo mal-humorada, tem é que haver o humor, uma série que retrate o dia a dia quebrando preconceitos, tabus e desmistificando horrendas ideias que se tem acerca da diabetes. Apontando pontos divertidos e os dramas do tratamento pretendo possibilitar um olhar diferente para as pessoas. Unir a arte do teatro e do cinema com minha escrita será um desafio. Penso em uma série que aponte curiosidades e promova intervenções em quem tem diabetes e em quem cuida. Talvez se chame, tal como um livro sue estou terminando para ser distribuído gratuitamente em E-book “O Doce Lar do Diabético”. Talvez se chame isso, talvez o nome não tenha nada disso. Título, volto neste ponto, é a parte mais difícil para mim. É um prêmio mesmo, uma conquista. Mudo várias vezes. Todos meus livros tiveram mais de um título antes de serem publicados. O andar do livro muda o título e o título novo muda o andar do livro e assim vou indo, escrevindo!
Sobre qual obra não existe, mas que eu deseje ler, penso que neste momento seria uma obra que falasse o destino das coisas que ainda não chegaram ao seu destino. Seria o par perfeito para meu prazer de ler a origem das coisas. Nem estou dizendo da vida, da existência, das partículas iniciais, mas sim de coisas mais inventivas mesmo, no intervalo do humano. Uma obra que apontasse até onde as coisas iriam, se iriam, como se transformariam e com isso um deleite do futuro que não viverei, eu poderia usufruir em leituras de saudade precoce. Não desejo que este livro aborde como será o trajeto de cada coisa, mas sim seu destino, focado mesmo no seu fim. Para fazer laço com o que tenho das origens, ainda que sugestivo e especulativo, mas com pés no chão. Tal como pisaram na lua, pisar no futuro e relatar soltices mundanas. Acho que algo assim. Se vai existir este livro? Penso que enquanto eu estiver vivo não, mas fica aí a ideia, ideia esta que nem sei qual destino terá. A origem? A interrogação. Na vida humana muita coisa é oriunda das interrogativas da vida linguística.