Edna Bueno é escritora, membro da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não pulo logo da cama, fico um tempinho ainda de olhos fechados tentando segurar algum sonho que tenha acontecido ou dedicada a algum pensamento. Uns cinco minutos que sejam. Então o café. Não gosto muito de falar nessa hora da manhã, o que é impossível em uma casa com movimento, até riem (sorriem) de mim.
Tenho um refúgio, que é uma casinha de praia, para onde vou muito. Lá o café da manhã é diante de uma janela, uma árvore linda, flores na cerca do jardim, na rua pouquíssimos carros. Maravilha. Fica perto aqui do Rio, onde moro.
Mas a rotina… Sem rotina. Não consigo. Aquelas coisas cotidianas: fazer a cama, saber das notícias em jornal e/ ou mídia virtual, correr atrás de algo faltando em casa, dia de hortifrúti, de supermercado, pilates duas vezes por semana, nadar quando dá (adoro!), resolver alguma burocracia… Ou de repente sair para uma caminhada, ou para ver vitrines, ou deixar tudo pra lá e rabiscar, escrever, ler.
Se estou na casa de praia, a vontade de sair para ver o mar é irresistível. Tão pertinho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Hoje em dia acho ideal que escrever seja a primeira função do dia. De manhã depois do café, cedo ou tarde. Por estar descansada, mas não quer dizer que tenha que ser sempre nessa hora. Quando estou na casa da praia, bastante silêncio, até de noite escrevo.
Se estou muito envolvida com um texto, deixo tudo pra lá. Se a gente não cava o tempo da escrita, dança.
E se quero escrever, tenho que ter cuidado para não dispersar muito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ah, seria maravilhoso escrever um pouco todos os dias! Não, não faço isso. Muitas demandas do cotidiano. Além disso, esse ano me envolvi com a leitura de dois livros grandes, em grupos de leitura. E mais: 1) faço parte de um grupo de leitura e estudos sobre a obra de Lygia Bojunga; 2) faço parte de um grupo chamadoLetra Falante: cinco amigas que escrevem para crianças, focamos o folclore. São textos coletivos. Publicamos um livro – Haicontos de Fadas/ Editora Bambolê –, temos novos textos e projetos; 3) alguns meses do ano frequento oficina de escrita. Resultado: meu tempo de escrever, dos projetos pessoais, solo, ficou espremido. Não me organizei bem.
Ainda uma viagem esse ano, mês de setembro fora. Visitar a família. Em termos de escrever, tudo parado; não em termos de criar: por aí pensando, sentindo.
Essas atividades todas são ótimas, mas ano que vem planejo privilegiar tempo para escrita, deixar tempo livre para o acaso. Alguns livros esperando na estante para serem lidos, muitos planos para o ano que vem, veremos… chega verão e sol e mar me chamam. Fico verão todo na casa de praia, nem sempre muito disciplinada, quase nunca.
Tenho pensado muito em conseguir uma mínima disciplina. Escrever também é exercício. Sinto que quanto mais escrevo, mais me abro para a escrita. Mais a palavra fica na ponta dos dedos, mais os pensamentos me tomam. Certamente as leituras nesse ano de 2019 vão enriquecer meu texto, mas preciso dar uma desacelerada, sobretudo guardar o tempo para o acaso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Faço mil notas, escrevo em todo canto: cadernetas, guardanapos, pedaços de papel de embrulho, embalagens, o que tiver em mãos. Perco a maioria. Às vezes, arrumando o quarto, a escrivaninha, encontro mil guardados. Divertidos e interessantes achados. Mas o que acontece, o mais importante, é que uma vez escrito, uma vez no papel, essas palavras vão entrando, vão virando pele e ficam em mim: nessa modalidade “pele” perco pouca coisa.
Também tenho anotações em arquivos no computador. Abro pastas, guardo ali. Esse ano encontrei, numa dessas pastas, uns textos antigos. Memórias. Chatos de ler porque grandes, cheios de detalhes, mas uma preciosidade para mim, afinal lembranças minhas. Um projeto de 2012/ 2013 que chamei de “retalhos”. Surgiu numa oficina de autoficção, professoras amigas queridas. Reescrevi, de forma totalmente nova, estou gostando.
“Entre os Bambus”, um livro para crianças, que foi o que me levou a publicar, veio de um texto que escrevi numa oficina de ficção. Passaram-se quinze anos e, numa oficina de literatura para crianças e jovens, ampliei o texto antigo.
Escrever me ensinou um tempo novo. De maturação. De entender quando não estou pronta para determinado texto, esperar acontecer. Não quer dizer cruzar os braços, mas trabalhar e esperar, ir fazendo o tempo.
Na verdade, me formei em engenharia química e trabalhei vinte e um anos na área. Não curtia, me sentia calçando um sapato apertado. Ainda engenheira comecei em oficinas de texto, prosa e poesia. Na década de 1980, fiz parte de um grupo de poesia: Ladrões do Fogo. Lançamos pequenos livros, formato chamado de plaqueta, um de cada autor (foram doze publicações), impressos em gráfica que trabalhava com tipos, tinha que acertar tudo de novo se retirássemos uma vírgula ou palavra. Ainda não contávamos com a facilidade do computador.
Passei a me dedicar à Literatura, sem engenharia no meio, a partir de 1999. Meu filho nasceu em 1998, fiquei desempregada em 1999 e aproveitei: descobri, em uma oficina, toda uma literatura para crianças e jovens que não conhecia.
Depois disso, cursei duas especializações, pós lato-senso, na UFRJ: Literatura Infantil e Juvenil em 2004 e Literaturas Portuguesa e Africanas (de língua portuguesa) em 2009.
Contando meu currículo para me desculpar da falta de disciplina? De uma certa desorganização? Talvez.
Mas, para finalizar, dizer que nesse quesito “processo de escrita” considero um tempo “pré”, digamos assim. Um tempo de assimilar o texto, pensar nele, ficar de olho perdido no entorno e voltada para dentro. Adoro ficar sentada na areia da praia, em silêncio, pensando (praia não urbana, quieta, a do meu refúgio). Tempo de criar. Daí escrevo o primeiro parágrafo e entro no tempo de escrever, nova etapa da criação. Mergulho no mar, mergulho no texto.
E, sim, o tempo do acaso. Deixar as coisas acontecerem, ser fisgada pelos acontecimentos, pelos sentimentos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Puxa, isso é difícil. Para as travas, sento e vou escrevendo qualquer coisa. Tipo fazendo exercício para desenferrujar. E leio, muito. Sempre leio.
Quando minha mãe ficou doente e veio a falecer com 94 anos, meu espaço foi para ela. Lidei com a doença durante dez meses e sete dias, sofrimento, ao mesmo tempo etapa da vida, foi uma trava enorme. Custei a voltar, aí tive paciência comigo, esperei. São coisas que acontecem, muitas vezes, e depois acabam saindo em algum texto. Vivências.
Procrastinação: respiro. Vou lendo. Acabo voltando a escrever. Ruim é se a questão é algum compromisso com data, aí respiro fundo e encaro. Nesse aspecto, o trabalho na engenharia ajudou: trabalhei em firmas de consultoria e projetos, com prazos.
Medo de não corresponder às expectativas: esse é eterno e acho que bem comum. Escrevo meu texto. Existe um momento em que ele se dá como pronto para mim, um momento em que fico satisfeita com ele. Não sei dizer o que identifica esse momento, acho que é coisa de pele. Costumo dizer que escrita é pele, esse sentimento na pele. E muito trabalho, claro. Bom, chegado esse momento eu me sinto mais segura. Tenho a consciência e a certeza de que meu texto não vai agradar a todos, nenhum texto agrada, então que o texto encontre seus leitores. Escrevo para quem o meu texto encontrar. Mas não quer dizer que sou essa segurança toda, sempre existe o receio de que não agrade ninguém. Então agrada um, mais um, já fico bem felizinha.
Ansiedade de trabalhar com projetos longos: sempre existe. Nunca trabalhei com projetos muito longos, meus textos são mais para curtos. Gostaria muito de juntar contos em forma de livro. Tenho escrito, vou guardando, ainda não tenho em quantidade suficiente para um livro. Paciência e respiração, seguir escrevendo.
Mas qualquer trabalho que pego dá uma ansiedade danada até achar um fio. Minha cabeça vira um trator, não sossega. Pesquiso, adoro. Algo a meu favor é que quando cursei as especializações perdi o medo: acredito que vou chegar a algum lugar, que é questão de tempo e dedicação. Até agora tenho chegado, tenho conseguido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso milhares de vezes, obsessivamente, deliciosamente. Gosto demais desse trabalho de revisar, procurar a palavra exata, burilar o texto. Escrever, para mim, se define muito nisso: no revisar, burilar.
Em geral, peço para o meu marido ler. A leitura dele me ajuda a perceber onde o texto está mal resolvido. Pena é que, conhecendo os rascunhos, quando o texto fica pronto já perdeu a surpresa para ele, perdeu a graça. Acaba sendo um leitor prejudicado, digamos assim, mas me ajuda muito.
Também mostro em oficinas, e como ajuda. Chega uma hora em que a gente já não enxerga mais nada no texto, já leu e escreveu infinitas vezes, um outro olhar é essencial. Essa troca é muito rica, alarga horizontes.
E, alguns casos, peço para uma amiga/ um amigo ler. Também leio textos de outros e comento. A arte de comentar/ criticar é difícil, comentar sem invadir o texto do outro, o jeito do outro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Rabisco algumas linhas antes, à mão, mas começo mesmo no computador. Acho as funções copiar e colar muito úteis. Deletar. E algo que aprendi na engenharia: começo um arquivo que nomeio “revisão 0”, na próxima mexida copio esse arquivo e nomeio “revisão 1”, daí por diante revisão 2, 3, etc. Fico com o histórico do texto guardado numa pasta.
Coisa boa no computador também é a pesquisa de significado de palavras, de sinônimos, de significado de nomes, alguma nota de uma época ou lugar, mapas. Rápido acesso a dicionários e informações mais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm geralmente das minhas vivências, do que me toca os sentidos. De observação. De ouvir. De estar atenta. De me preocupar com determinadas questões, procurar ter um olho para o outro.
Muitas vezes a escrita é uma fotografia feita de palavras.
Não cultivo hábitos para me manter criativa, mas estou de olho em dicas de amigas. Estou de olho em um livro da autora Julia Cameron, “O Caminho do Artista”, dica de mais de uma amiga. Até por conta dessa dica tenho mantido os olhos fechados um tempinho logo que acordo, tentando segurar algum sonho. Pode ser maluquice, mas maluquices são boas. Verdade é que nem sei se vou conseguir cultivar hábitos para me manter criativa, não tenho essa organização toda: fica tudo na cabeça, meio intuitivo, acaba dando certo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A gente encontra uma linguagem própria. Escrever é um caminhar. A minha prosa tem um tanto de poesia, isso é meu. Acho interessante experimentar, ousar gêneros diversos, aceitar desafios. Acabo um texto e quero ousar andar mais um pouco, ir além, me desafiar. Ok, não sei avaliar exatamente se consigo, mas quero.
A alguns textos eu volto, contei isso na resposta à quarta pergunta.
A alguns textos volto, reviso exaustivamente e descubro que é melhor desistir. Não vão além, ficam como exercício.
Outros são para ficar do jeito que estão. Iniciantes, iniciadores, partes de um caminho.
As vezes que voltei e deu certo, o que aconteceu foi a linguagem ficar mais precisa, sem medo: sem tantos esclarecimentos. Quando comecei a escrever explicava tudo, o que mais aprendi foi a cortar. O texto precisa ficar em pé, sem muletas. Geralmente o que é muito caro para mim é o que é preciso cortar, coisa que só interessa a mim. O primeiro jorro do texto, a minha “revisão 0”, costuma até ser brega, sentimentalóide, ridícula.
Também noto que, por vezes, escrevo muito sobre um personagem e depois vou cortando. Escrevendo travo conhecimento com o personagem, sei quem é, e quando estamos íntimos é só continuar (e cortar informações que não interessam).
Basicamente foi o que mudou: perder o medo de afirmar, deixar de explicar. Mostrar, mais que explicar, deixar de tanto adjetivo e advérbio (não completamente, na medida).
Não foi logo que encontrei minha linguagem. Estava tudo lá, hoje enxergo, mas escrever e escrever e escrever mais me levou a me encontrar. Acho que domino um pouco mais a minha linguagem, pelo menos um pretenso domínio.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que gostaria é um livro de contos, já falei dele. Ando guardando alguns que escrevi, pensando em ano que vem me dedicar a isso.
Além disso pensei em alguns temas que gostaria de desenvolver, de repente minicontos, prosas pequenas, eles vão me dizer como serão.
Mas mais que projetos, são sonhos. Ideias.
Até agora não escrevi tanto assim para falar de projetos, quero escrever mais.
Existem muitos livros que gostaria de ler, ando até ousando um planejamento. O maior aprendizado sobre escolhas é esse de selecionar livros para ler, quantos deixados de lado…
Sobre um livro que não exista: não desconfio de um. Acho que histórias e sentimentos estão todos aí. Soltos no vento, a gente pega e conta do nosso jeito.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Esse ano, 2020, me propus a fazer projetos, ter uma relação mais organizada com a escrita. Separei textos soltos e guardados para trabalhar neles e agrupá-los em forma de livro. Surgiram três projetos e novos desejos. Era começar.
Penso que é preciso puxar algum fio, ter uma noção do que se quer. Se juntar alguns contos, por exemplo, que fio os une? Para escrever uma história, um conto, que fio vai sustentá-la, conduzi-la? Deixo fluir, depois trabalho na costura do texto, na arquitetura dele.
Nunca me dediquei a um projeto grande. Penso que seja necessário planejamento, mas, ainda assim, acredito que deixar fluir é o primeiro passo. Primeiro fluir, depois planejar. Uma ideia que começa por rabiscos, palavras, imagens, sentimentos, e vai tomando corpo.
Encontrar o foco narrativo, a voz do texto, e continuar por ali.
Encontrar o fio que reúne uma série de textos, que passa por eles, e continuar por ali. Pode ser o tema, o ponto de vista, algum sentido.
Então é uma alegria escrever a primeira frase, a que faz a gente mergulhar no projeto de escrita, prosa ou poesia. A última frase, geralmente, vai se construindo ao longo do processo. Digo geralmente porque pode acontecer de a última ser o ponto de partida. Mais raro para mim, mas já aconteceu.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Justamente esse ano planejei me organizar. Tentar separar as manhãs e planejá-las como horário de trabalho. Não sei se daria certo, mas tinha o firme propósito de tentar. Veio a pandemia e tudo mudou. Lembro do meu pai que dizia “a gente mira um alvo e acerta noutro”. Tantas vezes assim. Finda a temporada de verão no meu refúgio na casa de praia, de volta ao Rio começaria. Fiquei alguns dias do mês de março no Rio, apenas, e voltei para a casa de praia com marido e filho. Preocupação e tristeza, aos poucos fui me acertando com a (des)rotina que vivemos por aqui. Na verdade, é uma bênção estar aqui. Um privilégio. Venho sempre, mas nunca por tanto tempo seguido. Faz toda a diferença estar num lugar tão natureza e tranquilo.
Não consegui manhãs livres. Continuo escrevendo em qualquer horário, cavando meu espaço e silêncio. Tenho escrito pouco, mas me sinto em maior sintonia com as palavras. Aqui o céu é mais amplo, tenho um quintal que é um mundo, só não conhecia esse quintal em cotidiano tão prolongado.
Como disse, identifiquei três projetos ao separar meus textos. E surgiram novos desejos. É preciso foco para não ficar colecionando projetos inacabados, tenho pensado nisso. Em uma entrevista, Marina Colasanti diz, não lembro bem as palavras, mas diz que não fica pipocando entre um texto e outro, um projeto e outro, que é preciso ter foco. Guardei. Bom ter mais de uma frente de trabalho, mas gosto de ir com calma. Um de cada vez. Posso parar um trabalho para uma respirada, passar para outro, mas um de cada vez. E são pequenos os meus projetos, pequenos e queridos.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que me motiva é o que me toca, que toca meu sentimento. O que me inquieta, o que me encanta, o que me indigna, o que me apazigua, o que mexe comigo. Pode ser memória, pode ser um acontecimento, uma vivência, a árvore que vejo enquanto tomo o café da manhã. Muitas vezes, em conversas com amigos, até por mensagens de whatsapp, vem uma frase, uma palavra. De repente estou ouvindo ou falando algo que já entra pelo terreno da escrita. Também quando assisto uma palestra, um filme, ou quando leio um livro pode vir alguma luz, algum pensamento.
Decidi me dedicar à literatura em 1999, não só escrevendo, estudando também. Fiquei desempregada na engenharia, meu filho tinha um ano e entrei para uma oficina de literatura infantil e juvenil na Estação das Letras. Anna Claudia Ramos era a professora. Ganhei o prêmio França-Brasil de Literatura para Crianças com o texto “Entre os Bambus” e nunca mais voltei para a engenharia. Já tinha frequentado vários cursos e oficinas, mas escrevia sem notar: porque gostava, porque precisava, era jeito de me situar. Escrever sempre me fez bem.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Escrever é um caminhar. A gente vai ouvindo daqui e dali nas oficinas, mas demora um tanto a compreender. Sinto dessa forma: o texto progride, empaca, vai crescendo, de repente aparece. Por isso digo que escrita é pele. Engenharia é ciência exata, tem suas fórmulas, escrever é ciência de pele: outro aprendizado.
Apaixonada pelo texto de Guimarães Rosa, passei um bom tempo imitando. Tentando, que ousadia: impossível imitar esse mestre. A verdade é que sempre me encantei pela poesia e a prosa poética. Participei de um grupo de poesia, os “Ladrões do Fogo”, década de 1980. Fui sempre caminhando por aí. Escrevendo erros e acertos, estancando às vezes, aceitando desafios outras tantas. Encontramos afinidades nas nossas leituras, fazemos escolhas, e penso que escrever é questão de tempo e exercício. O estilo, a linguagem própria, está no modo de sentir e de olhar. É a nossa palavra. Dificuldades nem sei especificar, coisas de caminho, mas talvez a pior seja a autocensura, esse censor cruel que mora dentro da gente. Milhares de vezes quis desistir, como se a única possibilidade fosse escrever textos perfeitos. Escrevo porque está em mim, o que aprendi é que não dá para fugir da própria palavra: minha palavra.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
“Grande sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa. Gosto imensamente do modo como escreve, a beleza do texto, escrever sobre tema tão denso a partir de personagens tão comuns. Tão nossos, nosso sertão. Mestre Rosa esmiuça a vida, contradições, sentimentos, essa travessia. Fala de um sertão que é geográfico e é o dentro da gente. Alguma aflição, alguma angústia, posso consultar esse livro: está tudo lá.
Também tenho paixão pelos contos de Guimarães Rosa. Guardo comigo, do conto “Desenredo”, em Tutaméia: “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”.
“O Saci”, de Monteiro Lobato. Um livro que me marcou quando criança. Ainda lembro do medo que senti, de estar doente na cama de minha mãe lendo esse livro. Era um presente ficar na cama da mãe. Adulta, cursando especialização em literatura infantil e juvenil na UFRJ, fiz um trabalho sobre “O Saci”. Fiquei encantada com a fala sobre a vida: uma fada invisível, espécie de eletricidade que muda de um ser para o outro. Pensei o que foi ler isso quando criança. O medo reconhecido era dos seres encantados da floresta, mas, de fato, talvez o assombro fosse estar diante de pensamentos sobre a vida e o homem, a mata e a cidade.
“Vermelho amargo” de Bartolomeu Campos de Queirós, todos os livros dele, pelo texto poético e denso. Pelas memórias de menino, a vida simples da roça e tão grande. O jeito de sentir e de olhar.
E, burlando o pedido de recomendação de três livros, a poesia de Adélia Prado, por onde comecei com a leitura de “Bagagem”. Porque uma autora que encontra poesia nas coisas simples, nos gestos, no cotidiano.