Edmar Oliveira é psiquiatra, blogueiro, escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias em que escrevo (não escrevo todos os dias, geralmente três vezes por semana) começo o dia com uma boa caminhada. Caminhar me ajuda a pensar sobre o que vou escrever. Embora já tenha uma ideia, na caminhada organizo mentalmente a estruturação do texto. Após o café avanço na leitura de um dos livros que estou lendo (geralmente três ou quatro). Só após uma hora ou uma hora e meia de leitura vou escrever. No final da manhã é a hora que mais rendo. Às vezes o almoço é adiado por interesse do que estou escrevendo. Outra hora que rendo é à tardinha, entrando na noite. Noutras manhãs em que acordo preguiçoso, já sei que não vou escrever. Aproveito para manter a correspondência em dia, ando pelas redes sociais, leio jornais, reviso e refaço textos já escritos. Não tenho uma rotina rígida, mas tenho produzido desse jeito desorganizado. Nesses dias em que não escrevo de forma sistematizada as ideias sobre textos a produzir aparecem e embarco nelas até o dia em que vou sistematizar essas ideias, o que pode acontecer no dia seguinte.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No final da manhã e no final da tarde. Não sou notívago para escrever. Penso muito durante a noite. Quando durmo, não raro sonho com situações que envolvem as ideias sobre as quais estou querendo escrever. Acordo e penso muito nesses sonhos, que vão me ajudar na caminhada do dia seguinte. Raramente anoto os sonhos, mas fico bastante tempo acordado, remoendo-os para não irem embora ao dia seguinte. Geralmente funciona. Esse é um dos meus rituais. São vários que envolvem o pensamento sobre o assunto e a forma que quero escrever. Ouvir conversas dos outros, principalmente em bares e restaurantes é um ritual necessário a elaborar diálogos ou buscar uma racionalidade bem diferente da minha. Observar o comportamento humano: às vezes vou ao mesmo lugar apenas para construir num personagem o comportamento observado. Posso dizer que quando estou trabalhando em uma ideia, tudo que acontece em meu entorno poderá ser utilizado na construção do que vou escrever: conversas, trabalho, cinema, jornais, passeios. Todas as banalidades me interessam. Nos momentos em que escrevo as palavras fluem com facilidade. Por isso até uso pouco tempo para escrever. A construção da ideia sobre o que vou escrever é muito mais trabalhosa e viciante. Às vezes as pessoas não compreendem meu interesse em prolongar uma situação em que estou observando e colhendo material. Nem eu posso dizer a elas, sem parecer um comportamento mórbido. Divirto-me com isso. O psiquiatra sou eu.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como já disse, não escrevo todos os dias. Procuro manter uma regularidade semanal por que quanto mais se escreve mais fácil fica escrever. Escrevo muita coisa que não aproveito para publicação. Escrever no blog e nas redes sociais exercita a escrita também. Escrever pra mim é como dirigir, tocar violão, andar de bicicleta, nadar. Ficam melhores quanto mais se exercita, embora eu não toque violão, ande de bicicleta ou nade. Não se fica pronto para escrever. Vai se aprontando. Não tenho uma meta diária. Em períodos concentrados produzo muito mais. Mas estou escrevendo sempre quando estou no computador.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que já falei um pouco nos rituais. É como se eu precisasse ruminar o que vou escrever. Preciso de um tempo enorme para essa fase de ruminar as ideias. Meu primeiro romance foi começado quando eu era muito jovem. A ideia dele vinha e ia. Até comecei a escrevê-lo antes, mas depois desprezei tudo. Faltava uma pesquisa histórica que foi dolorosa. Só perto de publicá-lo, ele aconteceu num supetão. Mas ele estava sendo ruminado há muito tempo e eu já tinha publicado dois livros sobre histórias da loucura. O segundo romance foi completamente diferente. Primeiro me interessei por uma pesquisa histórica. Nela trabalhei longamente, ao mesmo tempo em que as histórias de cavalaria que estava lendo se misturaram com a pesquisa. Trabalhei nisso por quase dois anos. Escrevi em poucos meses. Ruminar a ideia e pesquisar fatos de interesse me toma bastante tempo. Escrever, depois dessa fase, é bem menos doloroso. Diria que prazeroso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Falei que meu processo de “ruminar” é bastante longo, portanto gosto de prazos longos, não para a escrita – ela é sempre adiada até o limite, quase sempre. Quanto maior for a fase em que fico ruminando, menor a ansiedade para a escrita que é sempre procrastinada quase até ao limite. O medo de não corresponder às expectativas sempre existe até a avaliação do resultado. A ansiedade é sempre nessa espera da avaliação do resultado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um texto nunca fica pronto. Dou por terminado quando ele é publicado. E a partir daí evito lê-lo para não querer mais uma vez revisar o que já não tem jeito. Só uma proposta de segunda edição me faria voltar a ler o que já está publicado com os cuidados de revisão. Leio-os – quando sou obrigado – superficialmente. Antes da publicação quase nunca estão prontos. São releituras, um refazer de cenas, troca de palavras, refazer parágrafos. Mostro para algumas pessoas que me ajudam na correção ortográfica e de concordância (confesso que sou quase analfabeto nas armadilhas do português). Sei que as editoras farão uma revisão definitiva, mas quero já consertar o que está muito deformado. Mostro para algumas pessoas com quem discuto literatura. Mas mostro também para leitores comuns para entender a reação e para que possa mais uma vez mudar alguma coisa. Esse tempo de revisão não está computado em meu tempo de escrever. Faço nos dias que não quero escrever algo inédito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrever à mão só antes do computador. Agora só pequenas notas, cálculos de idade, períodos históricos, para não me perder. Qualquer texto eu faço diretamente no computador. Confesso que me adaptei a ele de imediato. Nem me imagino usando uma máquina de escrever, que me acompanha até hoje. O problema disso é que você perde a memória de sua escrita. Como você corrige no original desaparecem as emendas que você fazia na mão e aí se perde – de fato – a história da construção de um livro. Embora escreva há muito tempo, só publiquei depois do computador. E, a não ser a ideia do meu primeiro romance, não aproveitei quase nada dos escritos na máquina ou à mão. Escrever, pra mim, é uma coisa de agora. É uma construção atual. As anotações passadas nunca foram passadas ao computador. Eu sou incapaz de escrever o mesmo texto duas vezes. Ele é sempre mudado e vale o atual.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que parte da pergunta eu já respondi quando falei de rotinas, hábitos. As ideias de tema aparecem como pássaro em voo. Um tema pode aparecer em qualquer lugar se você está disponível para ele. Como diria Paulinho da Viola “as coisas estão no mundo, só que eu preciso apreender”. Agora, um tema é apenas um pretexto para iniciar uma escrita. Na minha forma de escrever, uma história vai ganhando vida. Um personagem que não tinha importância pode se impor e tornar-se maior do que o que você imaginou como protagonista principal. Pode requerer a aparição ou criação de novos personagens. Na minha maneira de escrever a história e seus personagens ganham vida própria a partir da ideia inicial e mudam o rumo da prosa. O que é surpreendente e prazeroso. Um personagem menor pode ganhar tamanha importância que vai requerer para si uma quantidade da escrita que pode mudar o seu destino. Raramente, quando começo a escrever, acerto o final de uma história. Elas ganham vida própria durante a escrita e, assim, a própria escrita pode interferir nas ideias que são ruminadas, que acontecem antes de prosseguir escrevendo o texto. Às vezes paro um projeto para ficar distante dele e só o retomo muito tempo depois. Para mim esta é a parte mais deliciosa do ato de escrever: a imposição que a própria escrita me obriga a mudar a construção de uma história.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No meu caso, eu vivi um longo processo escrevendo para chegar a ter a coragem de publicar. Posso dizer que tive bastante tempo para construir o aprendiz de escritor que existe hoje. Se pudesse voltar atrás, talvez tivesse coragem de publicar antes. Mas posso dizer que me preparei muito para o estágio atual. Talvez por exercer uma profissão que me tomava bastante tempo eu não tive tempo de ser o escritor. Mas meus dois primeiros livros foram sobre a experiência prática que eu realizava e os fiz ainda quando trabalhava. Agora, aposentado, me dedico em tempo integral – com as idiossincrasias de não ser um escritor todo o tempo, como já falei – a ser aprendiz de escritor. Quando eu achar que estou pronto, posso estar apenas demonstrando sinais de demência da idade. (risos)
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho projetos que eu gostaria de fazer e ainda não terminei. Alguns foram interrompidos pela necessidade imposta pelos que foram feitos. Mas tenho alguns projetos começados que gostaria de terminar. Pode ser que antes, outros projetos aconteçam pela forma quase caótica como eu trabalho e talvez nem consiga terminar os que estão começados. Qualquer livro que ainda não li não existe para mim. Essa é a magia da leitura. Um livro antigo é sempre uma novidade para quem não o leu.