Éder Rodrigues é poeta, prosador e dramaturgo, autor de Três Vírgula Quatro Graus Na Escala Richter.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma relação muito próxima com a escrita que já dura um certo tempo. Quase todos os dias, recolho anotações acerca das belezas e dos espantos diários. No decorrer do dia essas anotações vão sendo verticalizadas em forma de poesia, prosa ou dramaturgia. Algumas demoram um pouco para serem verticalizadas. Já outras, a princípio, tornam-se apenas argumentos. Estes argumentos me assombram até que eu lhes dê a atenção devida. Costumo ler à noite e faço da manhã um espaço para avaliar o que sobrou dos sonhos e pesadelos. É até possível estabelecer uma rotina para escrever, mas é a escrita que traça o seu próprio cotidiano na vida da gente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã e durante a noite são momentos em que a escrita flui de forma mais natural. Tenho um pequeno ritual para me manter concentrado: costumo escrever ouvindo as composições do Arvo Part. Ouço repetidas vezes até a música criar um círculo propulsor. Isso quando estou naquela labuta para espremer a essência das coisas. Mas também chega uma hora em que a obra ganha vida própria e aí você não tem mais sossego. A obra é que passa a ditar as regras, que lhe furta o tempo, o pensamento e as forças. A Clarice Lispector tem um livro (Sopro de vida) que destaca bem essa fase do processo. Como disse Borges: é um momento em que fazemos de tudo para nos livrar da obra, e se livrar dela significa concluí-la dentro dos parâmetros que colocamos para nós mesmos. Esse é o nosso maior tormento e também o mais prazeroso dessa coisa árdua de escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo por compulsão, por desespero. E também para dar aquela sensação de eternidade a tudo o que é provisório. Trata-se de um vício. E quando não alimento este vício, entro em colapso e o corpo sintomatiza. No começo, achei que fosse algum indício de loucura. Agora tenho certeza. Só que uma loucura terrivelmente lúcida como tão bem frisou Hilda Hilst. Escrevo todos os dias, nas variadas frentes. Claro que grande parte dessa produção não vinga. Mas alguns núcleos se mantêm e depois passo a desenvolvê-los. Aí vem a fase mais difícil. Já disseram e é verdade. Mais do que inspiração, escrita tem a ver com transpiração. O quanto você está disposto a polir pedras que podem destacar um brilho ao final ou não. Lanço sempre metas que não cumpro e outras que me obrigo para avançar diante dos nós que aparecem no percurso. Mas todo processo é falho. Escrita é lidar com o erro, com a intuição, no cuidado extremo com a palavra para que ela sublinhe sempre aquilo que temos de mais frágil e poderoso: o coração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Passo todo o processo de verticalização de um texto atento até descobrir como aquele texto respira. É demorado. Exige calma, transparência e algumas técnicas de artes marciais. Depois que descubro como o texto respira aí fica mais fácil saber como lidar com ele. A respiração dele é o que considero como o mais importante para que ele sobreviva enquanto ideia. O interessante da arte é que todo método falha porque a ciência se assusta com a alma das coisas. A arte não. A arte descansa na alma de tudo. Já fiz pesquisas homéricas sobre determinado assunto que não teve o fôlego suficiente de vinte páginas instigantes. Já escrevi poemas no susto ou para me salvar de mim mesmo. É claro que há segredos seculares sobre como processar os abismos que a escrita coloca. Mas também faz parte da arte manter esses segredos. O que mais me propulsiona é o diálogo que teço com os escritores mortos. Eles sopram no meu ouvido alguns detalhes, curvas e recuos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevo poesia, prosa e dramaturgia.
Meu trabalho como dramaturgo tem duas frentes. Assinando obras autorais e escrevendo in lócus junto aos coletivos. Já vivenciei processos que duraram quase dois anos. E nesse percurso, toda sorte de travas, obstruções, desistências, solavancos e escuta são fundamentais, por mais difícil que seja sobreviver a tudo isso. Tento me dilatar ao máximo para que o texto encontre em mim o sossego necessário para descansar e nascer.
Na escrita de poesia e contos gosto sempre de dar um tempo para que o texto amadureça. Tenho também um arquivo vivo onde guardo restos, vestígios, partes de textos não foram finalizadas e que esperam o momento certo para vingar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eles nunca estão prontos. Considero-os sempre inacabados. Mas reviso infinitas vezes até considerá-los justos. Chega um momento em que precisamos dar por acabado determinado trabalho, senão o sofrimento perdura. Eu tenho uma interlocução muito profícua com outros escritores para quem os envio. E também testo os textos antes em rodas de leitura, ensaios abertos e pelos concursos literários que, muito mais do que os círculos editorais, conseguem apresentar, de fato, uma cartografia da diversidade escritural do nosso país.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As anotações são feitas à mão porque na digitação corro o risco da ideia escorregar e sumir. À mão você registra, desenha, constrói fluxos que só fazem sentido dentro do processo. Depois transfiro para o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
É desespero. Só isso. Puro desespero. Ver um abismo e para não pular, brincar com o fato de que possa existir beleza nele.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Os anos nos deixam mais críticos com o próprio material produzido. Isso é bom e ruim. Eu diria para sempre lembrar de que a escrita tem de ter o peso para mover o oceano, mas também deve caber num barco de papel.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever para o cinema e gostaria muito ler os textos que se perderam dos dramaturgos gregos. Gostaria também de ler um livro capaz de reunir a diversidade e a pulsão latino-americana dentro de uma subjetividade capaz de nos conectar a partir dos traumas, da pulsão e da resistência.
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Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Já iniciei projetos de escrita usando as duas formas: elaborando e organizando um planejamento mais sistemático e também deixando a própria fluência do processo ditar a cadência. Porém nas duas formas, acabei sendo surpreendido pelo que há de mais instigante no exercício da escrita que é o fato de, a todo o momento, retornarmos à estaca zero. Nesse sentido, todo planejamento desaba, e também o próprio curso fluente é obstruído pelos mistérios da palavra. Sempre digo que o árduo processo da escrita, seja ela poética, em prosa ou dramatúrgica, mora na descoberta de como determinado texto respira. Depois que descobrimos o seu fôlego e os seus silêncios, aí a escrita se torna dona dela mesma e apenas cumprimos o ofício de dar-lhe vida. Tanto a primeira quanto a última frase são difíceis, mas talvez o que tem de mais complicado é manter, a todo o momento, o sopro capaz de mover a alma das coisas no quintal infindo da palavra.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sempre que tentei me preparar ou me organizar, acabei desorientado e atrapalhado pelo próprio fluxo. Mas confesso que escrever um pouco todos os dias me deixa terrivelmente calmo. Fujo e procuro esta calmaria com o mesmo desejo. Prefiro ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo porque diluo neles as doses de leveza e de intensidade que sempre procuro imprimir às coisas que escrevo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
A poesia continua sendo aquela instância tida como “desimportante” para o mundo e é exatamente nesta desimportância que mora o seu poder subversivo e pulsante que, inclusive, atravessou séculos de maestria e pungência. Pode ter certeza que insistir na poesia em tempos confusos, como este que estamos vivendo, talvez seja o ato mais revolucionário possível. Escrevo motivado pela possibilidade que a palavra tem de ressignificar o mundo, não para transformá-lo, mas para transtorná-lo perante as doses de beleza e de dor que a existência varre.
Comecei a perceber o poder e os desastres que as palavras causam ainda na escola e, posteriormente, esta percepção tornou-se o meu ofício junto à arte performática que também faz parte do meu trabalho. Fugir de casa e dos eixos esperados aconteceu naturalmente e me reconhecer como artista acabou assentando esta minha passagem nas águas do imponderável. Tenho percorrido o Brasil há mais de dez anos e constatado que a literatura faz parte da vida das pessoas porque há nela algo de ancestral. O jeito de se contar, de se inventar, de se constituir é tão imensurável quanto esta esfera da realidade onde todo mundo prefere se conservar. A escrita oferece a experiência do sensível, algo que a humanidade tem sentido falta e cartografado como se fosse uma ausência de algo que não se sabe.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Beckett, Lispector e Hilda Hilst são referências importantes que até hoje conversam comigo. Tenho o costume de escrever para os escritores mortos e, vezes ou outra, respondem-me soprando sobre essas linhagens de estilo, estética e poética. A minha formação acabou aguçando e aperfeiçoando o olhar treinado para estes detalhes que fazem toda uma diferença. Mas como autor, procuro sempre percorrer o abismo que existe entre a ideia e a obra, no caso, suando (porque escrever tem mais a ver com transpiração do que com inspiração) para deixar o resultado final o mais próximo possível do que originalmente apareceu enquanto miragem a ser desencantada.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Primeiro gostaria de recomendar O Infindável Museu das Coisas Efêmeras, publicado pela Editora Telucazu. Trata-se de um museu inventado para abrigar o repertório efêmero das coisas e de nossa existência. As gavetas, a memória e o passado são instâncias onde guardamos grande parte de nossos rastros e provas. Mas e as coisas que escapam por natureza? Trata-se de um livro denso, de muita entrega e com uma dosagem de poesia que me desvela por inteiro. O ofício poético também encontra outras ressignificações neste museu cujos poemas “expostos” encontram-se nas seguintes alas: Inventário de cheganças e nascença; Acervo de quintais, esquecimentos e outros detalhes que empoçam dentro do olho; Delicário (Coleção de delicadezas, tristesses e profundâncias); Arqueologia dos desejos e perdições; Catálogo de sopros, disritmias e outras pulsações que fazem o coração bater fora do peito; Manuscritos da notória turvação entre um abismo e outro. Não posso dizer mais nada além disso, a não ser convidar o/a leitor/a para compartilhar dessas efemeridades.
Segundo, O Ciclista, de Walther Moreira Santos, pela forma imagética, fragmentada e tensa com que abordou corpos, desejos e pulsações. Walther Moreira Santos é um grande nome da literatura contemporânea.
Todos os abismos convidam para um mergulho, de Cinthia Kriemler, pelo soco no estômago que a autora imprime ao investir em uma escrita que diz por todos os poros e ventres.
Domanda Nísio, de Emir Rossoni, pela técnica apurada e formas múltiplas de configuração do conto.