Douglas Pinheiro é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias em que não dou aulas, eu me levanto entre 8 e 9 horas. Depois de um banho e de tomar café da manhã, faço um rápido giro pela web para saber as notícias, conferir minha caixa de e-mails, responder as mensagens pendentes. Depois, passo ao trabalho do dia. Nos dias em que dou aulas, o horário da universidade é que dita o ritmo das coisas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu costumo ter duas janelas de escrita. A primeira começa pela manhã, após a rotina acima, e se estende até às 14h, horário em que almoço. A segunda janela acontece à noite quando volto para casa após dar aulas. Normalmente, começa às 22h e segue até às 2h da madrugada, quando vou dormir. Até este momento, eu nunca tinha racionalizado que são ciclos semelhantes com espaçamento de doze horas. Essa dinâmica não foi previamente projetada. Decorreu mais de uma percepção de que nesses horários eu consigo escrever de maneira mais fluida. Quanto à preparação para a escrita, eu apenas formato a página – já que sempre escrevo em Times New Roman 12 e com espaçamento simples entre linhas. No caso de ser um texto já iniciado, eu releio os parágrafos anteriores e as dicas que deixei para mim mesmo quando o abandonei.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para mim, há três grupos de textos. O primeiro grupo inclui as produções urgentes por motivo externo e inclui os textos com deadline, como os artigos escritos para alguma chamada pública. O segundo grupo inclui as produções que considero urgentes por um senso interno de necessidade. São artigos que surgem de alguma questão concreta que me instiga e me move a uma resposta imediata. Nesses dois casos, depois de iniciada a escrita, eu escrevo todos os dias até concluí-los, valendo-me inclusive de metas diárias para respeitar o prazo final. O terceiro grupo de textos são aqueles que produzo sem um prazo específico. Um artigo desse tipo pode demorar mais de um ano para ser finalizado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu só começo a escrever quando tenho clareza quanto ao título provisório (que raramente sobrevive até a escrita da conclusão), quanto ao mote inicial da introdução (que seja suficientemente elegante para atrair o leitor) e quanto à estrutura geral dos subitens do texto a ser produzido. Essa estrutura geral, porém, é muitas vezes traída no curso da escrita. Por vezes, alguns argumentos parecem se adequar melhor à concisão, enquanto outros pedem uma abordagem mais detalhada – o que leva a fusões ou subdivisões dos subitens originalmente pensados. Além disso, é bastante comum eu abandonar a escrita, deixar as notas de lado e voltar ao livro original para reler trechos inteiros. E não é raro o livro me surpreender com alguma explicação que havia sido negligenciada na primeira leitura. Eu jamais marco o livro que leio: não sublinho, não dobro a página, não uso marca-texto de qualquer espécie. É uma tentativa de não condicionar as releituras que faço do livro – e, ao menos para mim, tem funcionado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O processo da escrita é o registro de um diálogo que eu travo com outros autores por meio dos seus textos e com quem escolhi conversar. Este diálogo é tão temporalmente situado que, algumas semanas depois, quando leio os meus próprios textos, experimento um certo estranhamento em relação à minha própria escrita. Assim, a dificuldade da escrita para mim é semelhante àquela enfrentada quando pretendo manter uma conversa mais próxima com alguma pessoa recém-conhecida: um processo que só é superado por meio de uma aproximação, uma atenção, um desvelar do universo do outro, a identificação dos pontos de contato e de divergência e, finalmente, a sensação de proximidade que me permite estabelecer pontes de conhecimento. Quanto à procrastinação, ela só costuma ocorrer nos textos para os quais não tenho prazo de entrega. Quanto aos projetos longos, eu costumo cumulá-los com projetos de menor fôlego a fim de evitar o desgaste mental de me dedicar a um único tema por muito tempo. Por fim, quanto às expectativas alheias, eu as levo em conta quando necessárias: por exemplo, se pretendo publicar em um periódico que tenha uma linha editorial muito específica. Mas não diria que tais expectativas me impactem negativamente. O meu receio é, na verdade, de que meus textos acabem sendo utilizados para justificar exatamente o que pretendo combater – e, contra isso, só me resta o uso rigoroso da linguagem, mesmo sabendo que tal recurso não é suficiente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu escrevo muito lentamente. Cada parágrafo, logo após escrito, é revisto algumas vezes. Observo a clareza do texto, a repetição de palavras, a pontuação e a existência de adjetivos ou advérbios desnecessários. Assim, só passo à escrita do próximo parágrafo quando me dou por satisfeito com o anterior. Por isso, ao concluir o artigo, ele praticamente está pronto. Faço uma última revisão apenas para observar se houve algum deslize não previamente identificado. Se o texto trata de um tema muito novo para mim, eu costumo apresentá-lo a alguns colegas que conheçam do tema. Mas, essa submissão prévia ao crivo alheio não costuma ser a regra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo apenas no computador. Ao término de cada turno de escrita, eu armazeno o texto parcial em algum repositório da nuvem. Antigamente, antes de encaminhar o texto final para publicação, eu tinha o hábito de imprimi-lo para fazer a última leitura corretiva. Mas aboli esse hábito há alguns anos. Agora todo o processo é digital. Quanto aos insights, que podem ocorrer em qualquer momento, eu costumo registrá-los no bloco de notas do celular.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Meus insights costumam surgir nas minhas leituras, especialmente de detalhes marginais dos textos ou de referências curiosas identificadas nas notas de rodapé. Todas as vezes que esses elementos me inquietam eu costumo persegui-los por meio de uma nova pesquisa. Com isso, não é incomum eu postergar um programa de leituras porque algo, em algum dos textos, gerou um estranhamento tão incômodo que passa a se tornar prioritário. Embora tal postura possa tornar minha produção um pouco mais difusa, ela me permite dialogar com um espectro maior de pesquisadores – o que realimenta o ciclo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
As minhas leituras de teoria da história fizeram com que minha pesquisa passasse a ter um zelo muito maior com as fontes, o que tornou minha escrita mais concisa e rigorosa quanto à narrativa do provado e do provável. O que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar à escrita da tese, sabendo o que hoje sei? Absolutamente nada. Eu me comportaria como a personagem Louise Banks no conto Story of your life de Ted Chiang: “From the beginning I knew my destination, and I chose my route accordingly”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de traduzir a peça Come tu mi vuoi, de Luigi Pirandello, que é baseada no caso italiano Bruneri-Canella (também conhecido como o caso do amnésico de Collegno), e publicá-la numa coletânea com textos que refletissem a peça à luz dos conceitos de identidade, memória, narrativa e evidência histórica. Porém, tenho continuamente adiado este projeto. Em relação à segunda pergunta, há muita coisa que eu gostaria de ler e não está escrito. Vários são os livros literários que decido ler pela sinopse presente na orelha da obra ou artigos científicos a que me dedico por causa do abstract. Nem sempre, porém, os textos atendem às expectativas que eles mesmos criam ou que eu neles projeto. Sempre fico imaginando se seus autores, com o conhecimento e o dom que tinham, não poderiam ter feito algo que saciasse de forma mais completa minha curiosidade, minha ignorância ou, apenas, meu desejo estético. Mas, resigno-me. São as lacunas que normalmente me provocam a ler ou a escrever mais. E assim, minha escrita segue produzindo outras tantas lacunas…