Douglas Felipe é escritor, autor de “O Gabarito” (2017) e “Daydream” (2020).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende muito de como fui dormir. A noite costuma ser um período muito caótico pra mim. A cabeça se apega aos problemas, os textos fluem ou não até altas horas, sou interrompido de três a quatro vezes por pesadelos e entre esses um sonho pode me obrigar a abrir o bloco de notas e guardar uma ideia ou até um texto inteiro – costumo viver assim até estar tão exausto que precise recorrer aos chás, relaxantes musculares e a deixar o celular no modo avião. A única coisa que consigo cumprir de uma rotina matinal é tomar café da manhã, na falsa esperança de que terei energia e serei mais produtivo – isso soa trágico, eu sei, mas é bem divertido, na verdade.
Quando durmo cedo, bem, ou muito, levanto aliviado. Se tenho compromisso, costumo seguir um pequeno roteiro de banho para despertar e café como recompensa antes de me arrumar e sair. O ritual de colocar a alma de volta no corpo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu ritual de preparação para a escrita é abrir o Word. Não sei dizer se há uma hora melhor para escrever, mas sempre acabo sentando pra revisar um capítulo, um conto, uma crônica, e daí tiro ideias novas para outros textos. É complicado responder a essa pergunta porque ela parece se referir a conteúdo novo. Um novo livro, um novo romance. Se eu ainda estivesse escrevendo meu primeiro texto publicado, que se tornou meu romance O Gabarito, em 2017, diria que a escrita era um trabalho para todos os dias depois das 23h, quando terminava meu expediente no hotel. Eu tentava escrever pelo menos duas mil palavras por dia como sugerira Stephen King em Sobre a Escrita, um puta impulso pra minha produção daquela época. Hoje não é mais assim, tenho muitos textos em andamento. Com nomes sem corpos, corpos sem nomes, corpos e nomes ainda sem gênero – infelizmente, ainda precisamos dar gênero a tudo para passarmos pelas peneiras – que escrevi em episódios da vida dos quais já não me lembro, mas que provavelmente foram turbilhões que guardei para trabalhar depois.
E eu vivo constantemente nesse depois.
Sobre trabalhar com escrita, sigo minha intuição para cada projeto com o que cada projeto pede – sim, os projetos pedemcoisas, demandam até, e eu só obedeço –. Só posso garantir que vivo vinte e quatro horas por dia com a cabeça imersa em literatura, pescando frases, parágrafos, corpos astrais e nomes – e esse é um processo que amo tanto quanto trabalhar no texto já terminado. Sempre que termino algo, preciso dedicar algumas horas a olhar o bloco de notas para o caso de haver ali alguma ideia solta que possa ser usada.
Já aconteceu no ônibus, no trabalho, na cozinha, na rua, na chuva. Tecnicamente, escrevo o tempo todo. Até mesmo quando não estou escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu costumava ter essa visão do escritor como se fosse emprego registrado, com cartão de ponto e tudo. É o que acham fácil de “vender” pra gente quando estão tentando ensinar alguma coisa sobre escrita criativa.
Hoje, não me importo mais com isso.
Não tenho metas diárias porque estou sempre focado no projeto e no que ele precisa de mim. Claro que sentar e escrever também ajuda o texto a fluir, mas não estamos falando (ainda) de uma profissão exclusiva para mim. No meio tempo, já fui recepcionista de laboratório, recepcionista de hotel, amigo, namorado, babá, filho, primo, etc. Não me diverte colocar a escrita num relógio de ponto assim como não me divertem as metas de leitura. Eu funciono muito mais com uma produção fluida conforme o que o projeto pede.
E o projeto pode ser qualquer coisa.
Pode ser um conto para um concurso, escrever a orelha do livro de um amigo, pegar aquele texto engavetado e ajustá-lo para enviar às editoras em temporada de originais. Pode ser até um post nas redes sociais – eu sempre os passo pelo bloco de notas e por algumas pequenas revisões antes de postar.
Também essa entrevista pode ser um projeto.
Como autor independente, tive poucas oportunidades de trabalhar com prazos, mas acredito que mesmo assim seguiria meu ritmo. Posso prometer um texto esmerado, mas não posso prometer estar todos os dias às nove da manhã ou da noite com o Word aberto nele.
Espero que isso não soe como desorganização. Afinal, apesar dessa falta de rotina protocolada, sou muito organizado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ah, agora sim: o projeto.
Eu amo falar sobre o projeto, sobre o processo do projeto, porque é tão empolgante! Como qualquer trabalho escrito – desde meus trabalhos da faculdade até posts nas redes sociais – há um escopo. Eu pego esse escopo pelo pescoço e decido o que fazer com ele. Dou uma olhada no prazo; nos textos que já tenho; nas ideias que ainda estão incompletas, mas adaptáveis; nos livros que decidi que ainda preciso ler para desenvolver aquela outra ideia…
Resumindo: o prazo tem bastante peso.
Mas se estamos falando de um romance, priorizo algumas coisas: livros para pesquisa, reflexões, resenhas e artigos sobre autores afins. Às vezes, acaba que não uso nada disso no livro, mas sei que aquelas leituras podem beneficiar o projeto final.
Começo a escrever qualquer coisa que eu tenha na cabeça, independentemente de ter notas guardadas ou não. O importante é ter uma pequena faísca de história e começar a escrever, que o texto também se ajuda a escrever e de repente funciona como um ímã para novas leituras e até relações. Já aconteceu também de eu perder ideias por achá-las desimportantes e, no futuro, vi que teriam me ajudado se eu as tivesse anotado.
Dou tempo aos textos. Nessa questão, Knausgård e King concordaram: dar tempo ao texto é a melhor coisa que podemos fazer por ele. Então, depois de tudo pronto, deixo a massa do pão crescer.
Não há um limite de notas para começar a escrever um novo projeto, apenas o pequeno pacote de desejo e inquietação que, por exemplo, fizeram textos que eu tinha serem percebidos como crônicas e, no final, montados passo a passo para um novo livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Às vezes, pensando em desistir. Eu paro e espero, mas não totalmente.
A cabeça ainda fica escrevendo.
Mas em pausa.
Se tem uma coisa que aprendi desde que comecei a escrever é que tem muita gente que escreve melhor. Todo ano, em todo concurso que você se inscreve, vai ter finalista vencedor primeiro lugar segundo lugar terceiro menção honrosa e você talvez não esteja em nenhuma dessas listas não por ser ruim mas por eles terem atingido pontos diferentes em épocas diferentes. Não estar em nenhuma dessas categorias me deixa bem triste. Não podemos escrever exclusivamente para jurados, mas a produção textual para concursos no Brasil para escritores como eu são uma constante busca por portas que a gente não consegue abrir sozinhos.
Sempre procuro por uma desculpa para continuar escrevendo, mas não passar por essas portas/ peneiras me entristece muito e é o que mais me mantém em pausa.
Mas, dentro da pausa, eu viro as costas para os textos e me dou esse tempinho. Infelizmente, não é formulário: assim como não tenho um relógio de ponto para a escrita, não tenho um para essas horas em que estou infeliz comigo mesmo ou com o que escrevo.
Só espero passar da mesma forma: esperando.
Tudo bem.
Posso voltar amanhã ou mês que vem ou ano que vem.
Depois, sempre aparece uma história. Surgem parágrafos terrivelmente autopiedosos, mas dos quais alguns trechos puderam ser emprestados ou reformulados.
Pessoalmente, gosto dos projetos longos. Gosto de pensar que, apesar de estar preso num agora em que quero desistir, ainda há ideias guardadas pra eu me dedicar quando decidir não desistir mais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
São três as pessoas essenciais para quem mostro um projeto, mesmo sem revisar: Carol, minha prima; Guilherme Oli, meu amigo, também escritor; Lucas, meu irmão. Espero as opiniões deles enquanto o texto fica em banho maria. Dentro desse processo, releio para correções ortográficas e para ir dando uniformidade. Leio em voz alta. Fuço tudo que é gaveta atrás de anotações que possam ajudar – aquelas ideias que você lembra ter guardado em algum lugar.
Tenho sortes maravilhosas de vez em quando: encontro pessoas que se dispõem a ler aquele tal texto e me dão luzes incríveis, mesmo fora do círculo, que acabam transformando a ideia inicial. São muito caras pra mim as conversas com amigos escritores, principalmente as mais recentes com o Raimundo Neto, autor do livro Todo esse amor que inventamos para nós. Esses laços, a princípio, parecem até interesseiros, sabe, como se eu caçasse pessoas por aí para nos lermos e discutirmos. Mas não. São chaves. São partes do que aquele projeto pede e acaba atraindo, como o Raimundo diz: o caminho afetivo do livro.
Não estipulo número de revisões, mas preciso de pelo menos uma que seja externa, contratada, que é a melhor forma. Para O Gabarito, contratei uma revisora que me fez muito feliz. Para o segundo livro, como era uma publicação exclusivamente online e ainda em busca de um selo editorial, fiz tudo por conta própria.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Às vezes tomo um pau da tecnologia em vários dispositivos de uma só vez, mas geralmente uso o computador e o celular para escrever.
Até que me dou bem com a tecnologia.
Se estiver com a vaidade e a paciência em harmonia, escrevo no papel. Há, inclusive, um romance em andamento em um caderninho japonês sem pautas que tenho. Aprendi apenas recentemente a passar os textos escritos a mão para o Word com o mecanismo de voz do celular, o que me deu ainda mais liberdade pra trabalhar nesse projeto sem me desesperar pensando em como passar tudo pro computador depois.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O desejo sempre me manteve atento a qualquer coisa sobre a qual pudesse escrever. Quando aprendi que podia escrever sobre coisas não exclusivamente fantasiosas e que a ficção pode de fato ser de verdade, peguei tudo que tinha coletado e até hoje transformo ideias de quando ainda era pequeno. Acho que, hoje, já ciente disso, da vontade tão pungente de ser escritor, tento manter uma vida social ativa – afinal, foi o que me deu as melhores histórias pra contar. Os pequenos desafios de enfrentar algo de que se tem medo, como pedir uma promoção ao chefe, ou até mesmo ter a coragem de pedir demissão de um emprego, essas pequenas excitações sempre foram combustível para minha escrita. Mas o único hábito que me mantem mesmo na escrita é a leitura e o reconhecimento – aquele momento em que encontrei uma história que queria contar e amigos escritores que também a estavam contando.
Meu desejo pela escrita é tão grande que sempre tenho uma desculpa pra transformar tudo em jornada de escritor e tentar impulsionar esse desejo.
As ideias vêm de conjuntos muito longínquos para que eu consiga explicar. São histórias que aparecem em formatos e você de repente precisa sair correndo pra escrevê-las e se aperfeiçoar, elas precisam servir não só como entretenimento, mas também de experimentação das ferramentas de linguagem, experimentos de escrita. Eu posso dizer que minhas ideias surgiram, principalmente, de quando minha amiga Bia me perturbava horrores dizendo: “você devia escrever sobre isso” e eu, nunca dando bola porque estava pensando que só poderia ter algo pra escrever depois dos trinta. Foi quando percebi, talvez já tivesse material para alcançar aquele escritor em mim. Daí, comecei a abrir várias portas no chute. Não me levava a sério. Eu tinha várias ideias anotadas mas sabia que precisava de mais alguma coisa, mais aperfeiçoamento, mais conhecimento, mais algumas vivências e mais algumas perguntas a pessoas que eu ainda não conhecia, algumas frases que eu ainda não tinha pensado e, principalmente, queridos que ainda não tinham morrido. Quando percebi isso, ler, escrever e me relacionar se tornaram o suficiente, pelo menos até agora…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em dois aspectos, muita coisa mudou: primeiro, aprendi como funciona o livro como produto, como funciona o mercado do livro, uma parte da qual não tenho muito controle; em segundo lugar, minha caixa de ferramentas e acessórios só aumentou, o que me fez redescobrir ficções e literaturas e a conhecer pessoas incríveis. Também mudaram as tecnologias, as ferramentas textuais e o acesso a obras e a escritores, o que influencia diretamente minhas narrativas.
Essa última pergunta foi bem perturbadora. Acho que só diria para o Douglas dos primeiros textos contar para a vó Nice que ele queria ser escritor antes que ela fosse embora. Foi algo que não me lembro de ter feito e eu sempre quis ser o escritor favorito da vó Nice. Queria poder ter tirado dela reações e ter essas reações na memória agora. Também diria a ele para escrever mais mediocridades – eu achava ridículo escrever antes de ser “mais velho” – e que se foda. Afinal, há muito espaço nesse mundo para nossas artes medíocres. Qualquer texto e destaque que você possa dar a ele, vá atrás disso. Talvez, desse tempo de algum destaque desses chegar à vó Nice antes de ela ir embora e eu ter ainda mais daquelas reações na coleção.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O roteiro, o filme e o cinema. Esses são projetos que ainda não comecei, mas serão passos que darei um dia.
O livro talvez seja simples, toda vez busco por ele e encontro pequenos pedaços aqui e ali. Não consigo dizer se existe ou não porque não parei de buscar então pode ser que alguém já o tenha escrito e me xingue por achar que ele não existe, mas eu adoraria ler uma comédia romântica LGBTQIA+ brasileira, sabe, importante e representativa, popular e doce, um microcosmo no qual ser LGBTQIA+ tem mais a ver com as nossas histórias engraçadas do que com nossos abusos – queria que a realidade fosse assim também. Os que já conheço não me agradaram muito até agora, infelizmente. O mais próximo que cheguei da sensação de ter encontrado isso foi ao ler Amora, da Natalia Borges Polesso.
Enquanto busco, tento escrever esse livro também. É uma missão. E eu estou adorando.