Divanize Carbonieri é professora de literatura, poeta e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há os dias em que tenho que dar aula de manhã. Nesses, obviamente a rotina profissional prevalece. Mas há as manhãs em que posso trabalhar em casa. Uma parte importante da minha manhã é preenchida com o cuidado dos animais da casa. Tenho dois gatos e uma cachorra, e eles exigem uma atenção matinal. Antes de qualquer coisa preciso ver se estão bem e se têm o que precisam. Depois tento fazer o que é mais urgente na minha lista de prioridades, que sempre é um pouquinho grande. Muitas vezes não consigo fazer o mais urgente, mas alguma outra coisa que me atrai mais no momento. Não sou de me forçar muito porque sei que isso é contraproducente. Procuro fazer o que tenho vontade para inclusive me manter criativa. Claro que às vezes a responsabilidade fala mais alto, mas normalmente só quando já passei bastante do limite dos prazos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho bem melhor de manhã. Antes eu conseguia acordar muito cedo, e o período mais produtivo era aquele ainda antes das sete da manhã. Era um momento quase mágico em que a mente parecia responder rapidamente às demandas, a concentração era alta e, em relação à escrita, o resultado era quase sempre satisfatório. Mas em razão da estafa profissional e de outros fatores, nos dias em que não tenho aula de manhã, não consigo mais me levantar tão cedo. Até acordo para cuidar dos animais, como falei, mas volto a dormir por mais algumas horas. Só que dificilmente perco toda a manhã porque sei que, quando isso ocorre, o dia de trabalho ficou praticamente inutilizado para mim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, normalmente com uma meta em mente. A escrita acadêmica ocupa há muitos anos uma parte importante da minha criatividade. Então, muitas vezes, essa meta se refere a um ensaio no formato de capítulo ou artigo. Nesses momentos, eu costumo estabelecer uma quantidade mínima de páginas por dia, mas nem sempre é fácil de cumprir. Mais recentemente eu comecei a levar mais a sério a escrita criativa, ficcional, que inclusive passou a ocupar a maior parte do meu tempo destinado à atividade de escrever. Embora minha intenção seja escrever diariamente, ainda o estou fazendo em períodos concentrados, muito em razão das outras atividades como professora e orientadora que desempenho. Em dias muito bons, consigo escrever uns três poemas, que depois, é claro, serão reescritos inúmeras vezes, podendo ser até abandonados. Mas há os dias em que surge apenas um ou outro verso, depois de horas olhando para a tela do computador. Em relação à narrativa, ela parece surgir ainda mais a conta-gotas, praticamente a fórceps.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Faço fichamentos de textos teóricos. Nas obras literárias que vou analisar em meus ensaios acadêmicos, só faço anotações nas próprias páginas enquanto vou lendo, mas muita coisa registro apenas na cabeça. Na hora de escrever, os fichamentos dos textos teóricos são úteis porque indicam qual é exatamente o trecho que preciso para fundamentar minha análise. Mas a maior parte da construção é mental mesmo e vai surgindo conforme vou escrevendo. Quanto ao trabalho ficcional, minhas anotações são apenas mentais. Tenho uma boa memória e até o momento ela nunca me falhou. Não uso agendas ou caderninhos, e dificilmente esqueço uma palavra, frase ou cena que tenha me marcado e que depois pode ser usada em algum texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sou uma grande procrastinadora. Mas aprendi a não ter tanta raiva disso. Parece que o meu cérebro precisa de uns momentos em que aparentemente não está fazendo nada. É por essa razão também que escrevo em períodos concentrados, porque há alguns em que nenhuma linha assoma, por mais esforço que inicialmente eu faça. Não digo que não me causa certo desespero, certa sensação de desperdício de tempo, mas no fundo acho que é importante para a criatividade ter esses intervalos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
As revisões são infinitas. Na verdade, todos os dias em que estou escrevendo, releio várias vezes o que já produzi e vou alterando obsessivamente. Nunca considero realmente um texto pronto, mas acabo enviando quando acho que é possível. Demorei muitos anos para mostrar meus textos ficcionais para outras pessoas, mas quando finalmente o fiz, sentia algo indescritível quando recebia os comentários delas. Mesmo quando não eram exatamente positivos, só de perceber que meu texto podia gerar um pensamento, um discurso, por parte da outra pessoa, me enchia de satisfação. Assim fui mostrando cada vez mais até ter coragem de publicar. E os resultados têm sido bons.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo quase que inteiramente apenas no computador. Mas uso um truque, uma espécie de ritual inexplicável que sempre funciona: quando a escrita no computador emperra, recorro à escrita manual. Reescrevo à mão todo o trecho emperrado até sentir que está fluindo de novo (e volta a fluir quase que automaticamente). Daí passo novamente ao computador. Existe algo poderoso na escrita à mão também, algo que não podemos perder completamente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de inúmeros lugares. Percebo que muita coisa vem da simples observação. Gosto de observar as pessoas, os animais, a natureza, a realidade, qualquer coisa. Sempre parece haver uma força por trás ou por dentro de tudo o que existe, e apenas observar isso leva a insights realmente importantes a respeito da vida. Depois existem as leituras, é claro, mas qualquer influência que venha disso é sempre mais difusa, imprecisa, uma espécie de dança mental em que muitos textos, muitos discursos bailam uns com os outros. Não posso deixar de registrar também que há muitos anos eu tomo alguns florais australianos para a criatividade, uma mesma fórmula que também tomo em períodos concentrados, justamente quando mais preciso para escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo de escrita ficcional é que tenho escrito cada vez mais. Eu sempre fui muito exigente e até por isso demorei muito para divulgar esses textos. O que eu diria a mim mesma talvez fosse para não demorar tanto, para ter mais coragem de mostrá-los, mesmo se o resultado não me parecesse realmente bom (porque nunca vai me parecer mesmo, mas mesmo assim é uma experiência válida).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos. Escrevi dois livros de poemas que já foram publicados. Há mais dois que estão prontos, inscritos em editais. Estou escrevendo no momento um livro de contos e já tenho a estrutura de um romance esquematizada na cabeça. Também não abandonei os projetos acadêmicos e, em breve, espero concluir um livro autoral sobre literatura nigeriana, além de outros que estou organizando em parceria com outros professores. Gostaria de ler uma autobiografia de uma/um escravizada/o brasileira/o, escrita em português durante o período de escravização. Existe a carta de Luiz Gama, é claro, mas ela é eloquente em sua curta extensão. Existem também as reconstruções ficcionais, como o maravilhoso romance de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, e a biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, mas ela foi originalmente escrita em inglês. Um texto em primeira pessoa escrito em português por alguém que viveu diretamente a experiência da escravização no Brasil (e inteiramente aqui) seria sem dúvida um grande achado.