Dirceu Villa é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sendo sobretudo poeta, rotinas de escrita são um inconveniente &, no limite, uma impossibilidade.
Um dos problemas desde a Revolução Industrial é que se apagou a noção antiga & caríssima de otium cum dignitate, o “ócio com dignidade”, que não é uma vagabundagem inócua. Mas vive-se do negócio, esta é uma era vulgarmente comercial, & isso é um problema mais profundo do que em geral se tem a decência de notar, afeta tudo.
Talvez pudesse dizer que tenho anti-rotinas de escrita, naturalmente inconfessáveis.
Você lembrará que uma vez perguntaram ao Paul Valéry qual era o seu método para escrever um poema. Gosto da anedota porque ilustra como a poesia é algo que exige tudo de você, tecnicamente, mas é também, no seu cerne, imprevisível.
Disse o Valéry que podia dar mil respostas mas escolhia um caso, o seguinte: certa vez estava zanzando por aí, & lembre de que naquela época os cavalheiros saíam com suas bengalas, então ele ia batendo a bengala quando notou que desenvolvia um ritmo novo, interessante; manteve aquilo & foi imaginando um poema.
O dilema: não vinham palavras, era só a música rítmica. Frustrado, voltou para casa marcando o ritmo, mas incapaz de escrever o maldito poema. Esqueceu a história &, semanas depois, de repente, começaram a vir as palavras para o ritmo. Bastou anotá-las.
Prosadores se educam a ser prosadores: você não pode escrever prosa ficcional minimamente decente se não entendeu o parágrafo do século XVIII. Pode enganar uns desavisados por alguns anos (a maioria engana), mas aquilo obviamente não vai durar.
Todo prosador de fato — James Joyce ou Stendhal, Svevo, Hilda Hilst ou Machado, ou ainda Lobo Antunes — além de ter talento é um tipo muy educado (não estou querendo dizer que a pessoa foi cdf na escola, sequer que terá ido à escola: educou-se do seu jeito, aprendeu a observar, leu muita coisa muito diversa & entendeu as qualidades daquilo, testou de tudo, desenvolveu o que se pode chamar de um estilo, etc).
Veja como o velho La Bruyère define, para os franceses, uma profunda questão estilística (mesmo livros recentes na França sobre como pontuar um texto citam o La Bruyère); como Remy de Gourmont escreve um notável Problème du Style; como, para quem quer que use o português com um mínimo de ambição, Antonio Vieira é uma necessidade (P’ssôa, como sabemos, o chama “imperador da língua portuguesa” emMensagem).
Há um trabalho fastidioso de lenta estruturação na prosa que nem mesmo sua antecedente, a poesia épica, apresentava. A poesia vai sempre pela aglutinação.
A poesia nasce ali com o indivíduo, é como a hipótese do Íonplatônico, no lidar do personagem homônimo com Sócrates: pode ser um total ignorante, mas, se nasceu com essa linguagem, encontrará uma maneira de ser poeta, vai acontecer de qualquer jeito, pode até ser meio torto, o resultado final. A hipótese platônica era o entusiasmo, palavra que tem theosdentro de si, o deus: um deus se manifesta ali.
E daí a escrita vai acontecer do modo mais irregular que se possa imaginar: poderá ver algo na rua que acione a linguagem, que daí virá numa cascata, & se torce então por uma caderneta & uma caneta prestativas para registrar o evento (ou um celular, como as pessoas trazem consigo hoje); ou sente um cheiro, ouve uma canção, instala-se uma atmosfera específica, uma percepção súbita de relações, como for.
É uma ocupação estranha, a poesia.
Entre os antigos era também estranho, mas as sociedades tinham espaço para as visões. Nesta nossa sociedade de gente correndo atrás do próprio rabo, não tem.
E piorou: nestes últimos 4 anos passamos a ser o que a Alemanha foi de meados dos anos 1930 até 1945.
Em que hora do dia você trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de madrugada para a escrita de invenção. Para o trabalho propriamente dito, as revisões, reescritura & emendas, é melhor, suponho, a manhã, se minha memória estatística me serve bem.
É preciso esvaziar a mente de qualquer pré-concepção que se tenha de qualquer coisa, & daí a madrugada é particularmente apropriada.
Não é um vazio: é uma permissão para a percepção se afinar, ocupar o espaço & ditar.
Acho que outras artes ajudam. Por vezes, o modo como um diretor posiciona a câmera & corta seu filme sugere coisas que podem estimular uma sintonia dentro da poesia. OU velhas esculturas, quero dizer, velhas mesmo, aquelas das quais a História não tem mais do que fragmentos & fiapos, & não entende direito.
Daí se você entende como um leão salta com seus músculos num relevo assírio, alguma coisa se ativa.
O mesmo se pode dizer se você não tiver medo de olhar para dentro da natureza, o que muitas vezes significa olhar para dentro da própria escuridão. Há monstros ali, uma ameaça permanente (Baudelaire sentia tanto terror pela natureza quanto sentia pela beleza), mas só porque é realmente viva, com uma consciência que, perto dela, o isolamento atômico da consciência humana parece só uma rude caricatura.
Os animais não têm noção do que é a dor quando a sentem, não sabem nem como resolver nem quanto aquilo vai durar — se é que qualquer uma dessas noções passa pela cabeça de um animal. Mas você vê a dor nos olhos do animal, essa dor inominável e de presente contínuo, e vê como carrega aquilo suportando: é algo assustador, mas educativo.
Quando Rimbaud falou sobre o dérèglement de tous les sensesele sabia que os sentidos humanos tinham sido sedados & dopados até se tornarem totalmente inúteis para qualquer infeliz dito “civilizado”, porque não é civilização, é só, como escreve o Thom Yorke: a pig in a cage on antibiotics.
Há uns vinte & poucos anos andei numa floresta com um guia índio. Estávamos em grupo & íamos retornar do meio do mato já em noite fechada, mato fechado também. Nós andávamos de mãos dadas, os olhos arregalados querendo captar qualquer nesga de luz, & a passos medidos. O índio caminhava como se fosse meio-dia ensolarado, ia ligeiro & tranquilo, quintal de casa; mas para nós, breu total.
Há uma diferença SIGNIFICATIVA entre os usos dos sentidos, nos dois casos. Havia claramente algo que se aprender, sobre poesia, ali. Precisamente sobre o ritual, perceptivo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, de modo irregular & sem saber o que virá. Escrevo também porque sou, como um crítico argentino uma vez escreveu sobre mim, talvez um dos últimos hommes de lettres, o que significa que para sobreviver eu vendo as minhas habilidades de escrita, & em tradução, ensino, ensaios, tenho uma preocupação didática & museológica, & os detalhes me importam.
Períodos concentrados de escrita acontecem: tive recentemente, viajando entre Paris & Trieste, uma “tempestade selvagem” de invenção como a do Rilke, mais de 10 poemas de uma vez.
Mas ter uma meta — Zeus, isso não. Isso é a crueldade que fazem com muitos trabalhadores. E é uma desgraça, porque a meta nem é a deles, é a dos empregadores — que aliás nós sabemos bem qual é.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é rigorosamente um para cada poema que já escrevi ou vou escrever. Não importa quão treinado se é na linguagem, quantos poetas imitou, quantos traduziu, o que já experimentou para firmar a forma: cada poema se inaugura com seu próprio sistema & roteiro.
Talvez, se não fosse assim, não me interessasse por poesia: me entedio fácil. Mas sua própria natureza faz com que as coisas estejam se movendo sempre, há um ar brilhante & novo a cada nova linha, cada novo poema, é uma oportunidade de abrir um novo espaço perceptivo, é revigorante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho nada disso com a escrita: procrastinação, angústia, travas, ansiedade com projetos longos. Nada disso. Nunca tive. Escrevo quando tenho de escrever. Escrevo como Mairéad Byrne disse em um poema, este aqui:
HOLIDAYS
The Muse came back from her holidays.
Wearily I got out of bed.
It was 5.24am.
I didn’t know Muses took holidays.
Just get your pen, she said.
Se alguém tem medo de não corresponder à expectativa, não é poeta.
Se você é poeta sabe intimamente o que tem de fazer, não há espaço para dúvida nem para conversa fiada, ou medo. Tem de ser como os antigos pintores japoneses do sumi-ê, que passavam dias olhando para o papel de arroz, daí tomavam do pincel em um momento & faziam o desenho sem o desperdício de uma linha, sem vacilar.
Não estou dizendo que não se vá revisar & trabalhar sobre o resultado, mas que a certeza do artesanato tem de estar lá onde tudo começa, no primeiro impulso.
As expectativas do mundo não interessam em absolutamente nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um processo de revisão nunca realmente acaba. É claro que haverá poemas cuja sensação é a de não poder tocar sequer uma vírgula sem desfigurar tudo, mas há também detalhes que podemos, com o tempo, aperfeiçoar (ou ao menos dar algum trabalho futuro aos críticos, esses preguiçosos).
Whitman pôs retoques nos poemas até que se publicasse a sua deathbed edition(meio macabro, isso: “edição do leito de morte”, não acha?) das Leaves of Grass; Yeats também; Velázquez pintou a Cruz da Ordem de Santiago em seu próprio auto-retrato, em Las Meninas,um bom tempo depois de o óleo da composição ter secado.
Já houve poemas meus por anos na gaveta: ninguém sabe quando haverá solução para a arte que um poema exige.
Às vezes amigos & amigas poetas ou escritores lêem minhas coisas antes de publicar. Minha namorada, sempre: é um destino funesto namorar poetas.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A única relação minimamente sensata com a tecnologia é a de desconfiança.
Há, não obstante, tecnologia & tecnologia: a roda & o livro são absolutos, nesse sentido.
Os antigos desconfiavam de qualquer escrita, porque achavam que ia arruinar a memória — como de fato arruinou.
Mas uma coisa é a tecnologia do papel, daquilo que permite à pessoa desenvolver uma letra manuscrita, que passa a ser parte da assinatura da sua inteligência, que integra o rol das coisas que os seres humanos desenvolveram humanisticamente (o tipo romano usado com muitas variações nas editoras é um desenvolvimento a partir, por exemplo, da cursiva de um homem, o humanista Poggio Bracciolini); e outra coisa é o que se chamatecnologiahoje, essas nossas máquinas de alheamento, angústia & radiação.
É impessoal & pouco civilizado. É útil, prático & veloz. É pervertido, porque me parece óbvio que essas tecnologias digitais não foram criadas por acaso: há um plano de alheamento & estupidificação em massa na origem delas, como na origem da televisão.
Dois dos criadores de redes sociais, Sean Parker & Chamath Palihapitiya, já deixaram claro & público que criaram suas redes por mecanismos de recompensa pavlovianos, & que dependem do condicionamento psicológico gerado pela descarga de dopamina com os likes& as respostas cada vez mais imediatas que se esperam das pessoas. É um vício hipnótico.
Mas são úteis, práticas & velozes.
Rilke disse que não há virtude na velocidade: ele não estava dizendo uma besteira bonitinha para ilustrar cadernos colegiais. É um princípio seriamente filosófico.
Velocidade crescente impede as pessoas, por exemplo, de desenvolver uma sintaxe complexa, o que significa que se começa a ter dificuldade também com idéias complexas (tenha em mente uma frase como aquela longamente subornidada que Drummond usa, imitação de ablativo absoluto, no começo da “Máquina do mundo”: “E como eu palmilhasse”, e lá vão uns tantos versos até completar a coisa).
Mínimos dois parágrafos já são chamados, de modo muy silvestre, “textão”; elegem-se candidatos não por idéias ou conceitos demonstráveis, mas por slogans estúpidos, que repetem babando de hidrofobia hipnótica.
Esse hábito gera um déficit psicológico de empatia (cf.Philip K. Dick), também, pelo motivo simples de que a maior parte das pessoas agora passa a maior parte do dia olhando para o vácuo de experiência de uma tela de cristal líquido.
Não obstante, aqui estamos nós.
Eu em geral escrevo em papel primeiro, até porque não tenho celular & em geral o poema me encontra onde só tenho uma caneta & uma caderneta de notas, se tiver sorte. E gosto de imprimir depois o poema digitado, fazer correções à mão. A ilusão da palavra impressa se desfaz, você tem outro momento de grande honestidade íntima com o poema, espaço para melhorar & redigitar depois, como antes os modernos(veja como são as palavras) batiam à máquina de escrever.
De onde vêm suas idéias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ideias vêm de toda parte: elas precisam aguardar a transformação em palavras, às vezes pacientemente. Há uma espécie de fórmula da emoção sentida que precisa se arranjar. Há sempre um punhado misteroso de palavras que pode resultar nisso, é difícil & raro. Poesia mesmo é difícil & raro de se achar.
Alchimie du verbe, dizia o Rimbaud.
Não uso a palavra “criatividade” nem correlatas. A palavra foi abusada, perdeu o sentido que tinha: um dono de agência de propaganda se diz criativo, executivos fazem cursos de criatividade.
E não criam nada. Fazem um serviço.
Criar não é um serviço.
Entendo que, ao perguntar sobre se manter criativo, você está dizendo dessa qualidade inventiva de qualquer linguagem autonomizada de uma possível função.
Poesia não tem uma função, não é útil. Criar, nela, significa trovar, que significainventar, que vem de invenio[lt.], e é descobrir, tirar os véus a, fazer o inventário do que se tem. Como disse Giraut de Riquer, trovador provençal, na voz de Afonso X, o Sábio:
segon proprietat
de lati, qui l’enten,
son inventores
dig tug li trobador.
ou seja, todos os trovadores, etimologicamente segundo o latim, são inventores. A invenção era também a primeira parte da antiga retórica, justamente o inventário de temas.
Para se manter vivo numa arte você precisa de duas coisas:
a) entender que a percepção que se tem é diferencial, não é como todo o resto do mundo percebe uma coisa. O único sentido de ser um artista é ver com olhos novos, como diria Oswald de Andrade. Gerard Manley Hopkins inventou a inscape, um tipo de paisagem interna da percepção, cujos horizontes se ampliam com o uso.
Ezra Pound sugeria que quando você não está produzindo nada original — porque é impossível & indesejável produzir sem parar, & isso deveria ser também uma lei econômica —, que traduza, compare, faça qualquer coisa que seja um exercício para que sua habilidade não enferruje.
Mas tem um limite, a técnica: “tenho técnica só dentro da técnica”, disse com razão o Álvaro de Campos. Há um limite. O resto é ter a percepção fresca, não entrar nos esquemas lata de sardinha& mercado de escravosdeste mundo.
Entrou, dançou.
E b) tendo esgotado a canção, ter a decência de fechar o bico & se retirar. Há muitos poetas que tagarelam mesmo estando vencido seu prazo de validade. Outros, não obstante mais raros, nos dão o prazer de presenciar a matéria simplesmente maravilhosa & inconsútil de seu estilo tardio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Espera-se sempre que, envelhecendo, não se caia nas velhas tramóias do verbo. É uma chance, essa, de que a paciência para certas coisas acabe. Há um processo visível, se se quiser, observando as coisas que preferia mais jovem, & as que prefere depois.
Raríssimo que sejam as mesmas, & daí nota-se o que o tempo fez — além dos estragos de costume.
Tive de reler meus dois primeiros livros por ocasião de montar uma antologia de mim mesmo para a editora Demônio Negro, a convite de Wanderley Mendonça. Isso resultou no Transformador, em 2014.
Tive algum receio, honestamente, de que a experiência fosse acabrunhante; quer dizer, reler-se 15 anos depois poderia ser uma bela merda. Mas para a minha surpresa não havia nada que incomodasse. É claro que lá estava quem eu era aos 22 anos, aos 25, um ignorante, mas de excelente intuição, escrevendo o que sabia, & isso é a regra número 1: não se meter a fazer coisas balofas, metidas a besta.
Eram sobretudo poemas curtos, espertos, & decididamente estavam contra o status quoda poesia brazileira do período — com as exceções honrosas de sempre.
Se pudesse voltar a ver aquele moleque apenas diria a ele que não se preocupasse com a recepção: ela não é possível nas atuais condições de temperatura & pressão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um monte de projetos não começados em outras coisas, mas poesia autoral não tem projeto. Queria tempo & editora interessada para poder traduzir em verso asMetamorfoses, do Ovídio; queria o mesmo para montar uma antologia de poesia brazileira contemporânea, para escrever uma ou duas peças de teatro. Mas sem aquela formosa velharia do mecenato, pas possible.
Um livro que ainda não existe & eu adoraria ler seria um livro que entendesse o Livro dos Mortosegípcio. É um livro fascinante, esse sobre andar desperto durante o dia (aí está o curiosíssimo & verdadeiro título), mas é um fascínio que, não sendo egiptólogo, posso apenas supor o que está acontecendo lá.
E assim desconfio que seja um livro que valha tanto para a pós-morte quanto para despertar do sonho coletivo quando vivo: todos os livros místicos & ocultos até pouco depois do Renascimento devem muito a ele, também naquele último sentido. Alguém precisa escrever um livro que dê conta disso.
Gostaria também de ler uma peça que parece foi escrita, mas sumiu, tornando-se um livro inexistente: Cardenio, peça que dizem Master William teria escrito com o John Fletcher, extraído de um episódio famoso do Quixote.
Talvez eu devesse escrevê-la como se Shakespeare a tivesse escrito, iria direto para a biblioteca borgiana. Talvez esse possa ser um projeto, veja só.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Começo uma coisa nova como um trem que sai dos trilhos da estação & avança para uma rua adjacente através das vidraças, como o Expresso Paris-Granville.
Sempre difícil, imprevisível, assustador & repleto de estímulo. Quem olha de fora vê só desastre, não obstante.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Orides Fontela certa vez respondeu à pergunta de como era seu método de trabalho: “Trabalho? Você acha que se gostasse de trabalho escreveria poesia?”
Sou fatalmente desorganizado, por desconfiança profunda da organização. E as coisas que vão acontecendo — você acertou —, acontecem todas ao mesmo tempo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Seria mais fácil dizer o que não me motiva como escritor, mas isso me dá demasiado nojo &, de qualquer forma, passa os dias coletivamente numa latrina em Brasília. Um messias invertido, com seus mini-apóstolos chefiados por um marreco.
E lembro do exato momento em que decidi me dedicar à escrita: foi quando observei que o objetivo de vida de qualquer um estava já traçado desde o nascimento, & significava 8 horas de submissão diária por míseros trocados. Se tivesse sorte. Isso é que se chama ser útil. Decidi, sem voltar atrás, ser um inútil.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Estilo teria de ser, idealmente, a própria pessoa, sempre; supondo, é claro, que a pessoa não esteja tão apática da pesada lavagem mental na sociedade (ou do exílio involuntário na miséria abjeta) que tenha sido reduzida às funções ancestrais da mera sobrevivência.
O autor que mais me influenciou foi a escultora daquele alto-relevo da Rainha da Noite (ou Ishtar), terracota da Babilônia na coleção do Museu Britânico.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Recomendo Obedience to Authority, do Stanley Milgram. Muy importante nos dias de hoje. Demonstrou que por volta de 70% das pessoas continuam a obedecer a uma figura bronca & imbecil de autoridade mesmo que seja para torturar outra pessoa até a morte.
Recomendo o Timeu, do Platão. O livro foi considerado por vezes coisa mitificada, equivocada & incompreensível, como se estivesse falando grego. Seu objetivo final é explicar harmonia, filosófica & matematicamente, & de modo episódico demonstra aspectos fundamentais da sabedoria egípcia & da topografia de mundos perdidos, pondo em xeque datações históricas, além de propor a interferência de outros corpos celestes na Terra. Isso já seria recomendação suficiente para um livro, não?
E, por fim, recomendo todos os livros que foram proibidos, queimados, censurados, incompreendidos, odiados, & todos os desprezados pela crítica pelo motivo explícito de serem bons demais.
Essas recomendações, suponho, devem ocupar as pessoas por uma semana, excetuando o sétimo dia, naturalmente, em que dizem que até o relojoeiro descansou.