Dirce Waltrick do Amarante é ensaísta, tradutora e escritora, professora de Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Escrevo resenhas, ensaios e ficção. Além disso, sou tradutora e professora. Estou sempre lendo, escrevendo ou traduzindo alguma coisa. Passo o dia assim, de modo que, à noite, todas essas ideias e interesses se misturam e os levo para a cama. Portanto, meu dia, às vezes, não termina, ou às vezes, começa no meio da noite, quando uma ideia surge.
Embora não me levante da cama para anotá-la, tento não me esquecer dela no dia seguinte. Como faço isso? Tento incluir essa ideia no meu sonho, penso num sonho que eu possa incluí-la, imagino toda uma história, conscientemente, é claro, o que me rouba alguns minutos de sono. Obviamente, não tenho poder sobre o sonho, de modo que, quando acordo, muitas vezes (na grande maioria das vezes, 99,9% das vezes, diria) não lembro da ideia original, mas pelo menos me lembro que tive uma ideia. E invento uma a meu bel prazer.
Essa ideia está sempre relacionada a um livro novo, a uma resenha, a um ensaio ou a um texto de ficção que pretendo escrever ou estou escrevendo.
Meu marido, Sérgio Medeiros, que é poeta, me aconselhou a anotar num caderno as ideias que surgem durante a madrugada, mas sou preguiçosa demais para fazer isso, e gosto da arbitrariedade do meu método.
Às vezes meu dia começa de manhã, comme il faut… mas tenho sempre uma ideia, uma imagem, algo que me provoca e que quero desenvolver. Vou desenvolvendo tudo aos poucos e ao mesmo tempo, um caos… bem como gosto.
Tenho uma lista de livros já prontos (para desespero do meu editor, Samuel Léon, Iluminuras), uma lista de livros que pretendo fazer e uma lista de livros em desenvolvimento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes do meu filho nascer, escrevia de madrugada, tinha todo um ritual, era até bonito de ver. Parecia uma coisa sagrada, acho que esperava uma revelação, ou que algo mágico acontecesse… Nunca aconteceu, apesar do chá, do incenso, da luz adequada etc. Depois que o meu filho nasceu (há quinze anos), e de ter chegado à conclusão de que o meu ritual não me levaria a nenhuma epifania nem revelação, passei a escrever a qualquer hora. Meu computador está sempre ligado, meus livros abertos nas páginas que interessam às minhas reflexões do momento.
Mas costumo escrever mais à tarde, embora esteja escrevendo essas respostas de manhã. Depois do almoço, quando dá, deito na minha cama (gosto de ler deitada), no sol (que bate na minha cama), coloco todos os livros que estou lendo do meu lado, leio uma página de um deles, ou releio fragmentos de um que acabei de ler… durmo… quando acordo escrevo uma resenha, ou um conto, ou um ensaio, ou traduzo uma frase que até aquele momento não sabia como traduzir… É meu momento xamânico, meu momento dona do sonho, só falta a bebida e o fumo, que substituo por uma barra de chocolate ou castanhas de caju.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Tenho um problema, sou empolgada, leio um livro, me empolgo com o que li (para o bem ou para o mal), e me sinto obrigada a escrever sobre ele. Se não escrevo é como se não tivesse terminado a leitura. Preciso dialogar com a obra e isso só acontece quando escrevo sobre ela.
Nem todos os textos que escrevo eu publico, tenho muito material guardado, inédito. Como resenhista e ensaísta, gosto de publicar sobre obras que eu gosto. Embora escreva, para mim mesma, sobre obras de pouco valor, mas de autores/as “renomados”. Sim, leio sem gostar, às vezes só para poder falar mal (mas esses textos guardo para mim), para opinar e mostrar onde o autor/a se perdeu, na minha opinião.
Como ficcionista, gosto de escrever encontros imaginários com autores/as reais, mas só me encontro com aqueles/as que eu admiro. Seria penoso demais me encontrar com os que não me agradam!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como disse, não tenho um método. Mas vou anotando na página dos livros que leio aquilo que me chama a atenção (meus livros são todos anotados, para desespero do meu marido e do meu filho). Às vezes me vejo de fato como um xamã, como disse acima, preciso dormir, sonhar para pôr as ideias em ordem ou desordem…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sempre acho que um dia não vou mais conseguir escrever, talvez por isso eu escreva todos os dias, fico ensaiando a escrita para não perder a prática. Sou ansiosíssima, por mim faria uma tradução de um livro por dia, escreveria um livro novo por dia. Tenho tantos projetos, não sei se conseguirei concluir todos! Às vezes, acho que não vou conseguir concluir o livro que estou fazendo, é um sofrimento, mas, de repente, ele está pronto e não me lembro como isso aconteceu.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo escrever e, depois de um tempo (alguns minutos ou horas), releio o texto, daí consigo perceber se tem ou não coerência (na minha ficção, se não tiver coerência melhor). Sérgio lê todos os meus textos. Ele dá palpite e muitas vezes concordo com ele. Ele é meu primeiro leitor, meu primeiro crítico e, se ele gosta, está bom para mim e eu publico.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sei mais escrever à mão. Escrevo tudo no computador, no celular etc. Ainda assim, levo sempre um caderninho na bolsa, que quase nunca é usado, mas dá um prazer enorme carregá-lo, não me perguntes o por quê. Quando durmo, ele também fica do meu lado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm dos livros, dos/as autores/as que eu gosto, de um quadro, de uma exposição, de um espetáculo. Para me manter criativa preciso estar respirando cultura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como ensaísta, sinto-me mais livre para escrever, não preciso seguir as trilhas mais conhecidas, posso ousar, defender pontos de vista menos pacíficos ou até mesmo polêmicos. Recentemente, escrevi uma resenha do romance Ulysses, de James Joyce, apontando aspectos machistas do texto, foi um bafafá, mas é o que me interessa ver no romance neste momento. Talvez numa outra época, lá atrás, eu não fosse polemizar com um mito, um monumento…
Minha tese de doutorado foi sobre Edward Lear, obviamente, hoje, incluiria muitas outras informações ao texto. Mas é assim mesmo, a pesquisa não termina com a tese. Aliás, não abandonei Lear, pretendo traduzir toda a sua obra.
Não escrevi meus primeiros textos ficcionais, colei frases de vários livros e autores/as, criei meu Frankenstein… não mudaria nada, escolhi os/as melhores autores/as possíveis; daí não tinha como dar errado… e se deu… a culpa não é minha… eles/as que deviam ter escrito de forma diferente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como disse, tenho uma lista interminável de livros que quero fazer. Mas não vou dar spoiler, à medida que eles forem aparecendo o/a leitor/a vai ficar sabendo.
A lista de livros que quero ler e não li é imensa e consta dessa lista livros que ainda não existem, mas como não existem não sei quais são… vou saber na hora certa.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Um projeto nasce de uma vontade de conhecer melhor determinado autor, tema, obra, de uma vontade de discutir determinado assunto e de poder dividir a pesquisa com outros. Pesquiso o que posso sobre o assunto. Um projeto meu será agora lançado em livro. Trata-se da tradução de uma antologia de contos da escritora surrealista inglesa, radicada no México, Leonora Carrington (1917 – 2011). Ela escreveu em francês, espanhol e inglês. Corri atrás dos textos com a ajuda imprescindível de uma colega do México, Nora Basurto. Fui a Paris atrás dos contos que Carrington escreveu em francês e que estão na Biblioteca Nacional da França na parte de livros raros. Enfim, é uma epopeia.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Organizo minha semana, meus dias, mas nunca sigo a organização. A única coisa que não muda é que todo o dia eu trabalho, pesquiso e leio. Vou trabalhando em vários projetos, mas posso dizer que, de um modo geral, um está ligado a outro. Eles dialogam, então não é um caos, apesar das múltiplas vozes.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Sempre gostei de escrever. Mas no colégio diziam (as professoras) que não era boa de redação. Que tinha que falar isso e aquilo, e eu sempre queria falar outra coisa. Era um pesadelo, em parte porque nunca dizia aquilo que os professores queriam ouvir. Agora que me libertei, escrevo o que gosto e como gosto. A alegria é imensa. Não me lembro de um momento específico, se tive uma epifania, não foi coisa joyciana, não guardei na memória.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Muitos escritores me influenciaram e influenciam: Edward Lear, Gertrude Stein, Daniil Kharms, Qorpo-Santo, Leonora Carrington… Não tenho estilo próprio, faço um apanhado dos estilos desses e de outros escritores. “Copio” tudo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Nossa, são tantos que estão em primeiro lugar… eis três, lembrando que uns 50 ficaram de fora. Para facilitar a minha vida, e não a do entrevistador, nacionais: 1. Contos de duendes e folhas secas, de Sérgio Medeiros (o livro é genial, as personagens são inesquecíveis, mas o livro ainda não recebeu a atenção devida); 2. As emas do General Stroessner e outras peças, de Sérgio Medeiros (peças teatrais bem-humoradíssimas); 3. Os contos de Clarice Lispector (TODOS, adoro contos); 4. Infância, de Graciliano Ramos; ops… passou de três;
Estrangeiros: 1. A montanha mágica, de Thomas Mann (nada acontece e acontece tudo); 2. Finnegans Wake, de James Joyce (acontece de tudo e não acontece nada); 3. O processo, de Franz Kafka (lembra muito a justiça no Brasil); 4. Os contos de Leonora Carrington (TODOS); 5. O mandarim, de Eça de Queiroz (o diabo são nossos 100 mil réis do final do mês).
Ah, e o meu livro Cem encontros ilustrados, excelente, conta com texto de orelha de Mary Shelley.