Dieter Axt é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal está diretamente ligada ao trabalho. Quanto mais cedo conseguir acordar, melhor. O grande segredo das minhas manhãs é o café.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã bem cedo, a primeira metade da manhã; e, à noite. Ou seja, quando o ritmo da cidade está baixo. Tudo o que fica no meio disso faz parte de um extenso terreno de luta em busca de concentração, foco e disciplina. Mas, sou profissional: trabalho facilmente 12, 14 horas por dia. Então, não escolho o horário. Agora, os melhores dias são – sem dúvida – aqueles em que acordo bem cedo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende. Às vezes, passo longos períodos sem escrever nada. Isso não significa, porém, que não esteja o tempo inteiro escrevendo mentalmente. Isso não tem medida. A minha mente escreve continuamente, escreve inclusive quando eu não estou escrevendo nada. A minha meta diária é sempre acrescentar pelo menos uma frase em algum projeto literário ou científico em andamento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A primeira frase é o mais importante. A partir dali, desabrocha a ideia. Quando tenho a primeira ideia, a primeira frase, de uma forma clara e definida (“redonda”), sei que vou escrever com água na boca. Essas notas podem ser escritas em tudo quanto é lugar: desde o computador e o telefone celular até os guardanapos de papel. Escrevi o original de Cabo Polônio inteiramente em máquina de escrever – e, depois, revisei-o à mão. A maior parte das minhas ideias escrevo manualmente em pedaços de papel avulsos que eu deixo espalhados por aí. O movimento entre pesquisa, leitura e escrita é constante. E é assim que deve ser: quando melhoramos na pesquisa e na leitura, melhoramos na escrita também.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu escrevo todos os dias. Muito. E leio muito também. Isso não significa que esteja sempre produzindo algo interessante ou que tudo o que eu escrevo seja verdadeiramente fruto de processo criativo. O dia-a-dia é muito corrido e nunca encontro tempo o suficiente para me dedicar à escrita (e à leitura) da forma como gostaria. Então, não tenho medo de não corresponder às expectativas: eu tenho medo de não usufruir todo o meu potencial. A procrastinação e as travas fazem parte. Para alguns mais, para outros menos. É raro quem nunca as tenha. Em alguma medida, eu as incorporei de forma saudável. Respeito o momento delas. Mas, como disse antes, nunca deixo de estar escrevendo Literatura mentalmente. Estou constantemente aprimorando conceitos, projetos, personagens, enredos. Acho fundamental escrever sempre alguma frase a mais. Não há primeira frase e, tampouco, a última.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sim, definitivamente eu mostro meus textos para outras pessoas. E os reviso bastante, à exaustão. É difícil encontrar trabalhos que estejam totalmente terminados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Parte disso, respondi acima. Escrevo muito à mão, mas também faço bastante uso do computador (principalmente, no trabalho, ou quando retorno muito cansado para casa). Para trabalhos científicos, evidentemente uso o computador. Mas anoto boas ideias à mão também. Escrevi três novelas: a primeira, praticamente inteira à mão; a segunda, à mão e no computador; e, a terceira, inteiramente em máquina de escrever. Agora, estou escrevendo meu quarto livro, no computador. O que muda a meu ver? Especialmente o ritmo em que o pensamento se organiza. São experiências inteiramente distintas para mim, que proporcionam envolvimentos igualmente distintos com a obra literária. Tenho cinco máquinas de escrever em casa e gosto de usar todas elas. Por outro lado, falando em tecnologia, não deixa de ser sintomático que, apesar do amplo acesso à informação, a mídia tradicional parece operar com dificuldades na tarefa de repercutir acontecimentos do meio literário emergente. Na minha visão, a mídia tradicional deveria reinvocar para si esse nobre papel. Recentemente e após apenas um ano de existência, a editora independente (Le Chien) que mantenho com Lucas Goulart emplacou pelo menos um finalista nos principais prêmios literários do Rio Grande do Sul (Tiago Germano e Pedro Dziedzinski). Ao que me consta, nenhuma linha foi escrita sobre isso. Para completar, emplacamos indicação ao Prêmio Jabuti 2018, com Tiago Germano, escritor paraibano radicado em Porto Alegre. A sua obra de estreia, Demônios Domésticos (que, não fôssemos nós, seria engavetada em face da desatenção de outras editoras), foi financiada coletivamente por quase duas centenas de pessoas e chegou à indicação literária mais prestigiada do país. Novamente, nenhuma linha na mídia tradicional do Rio Grande do Sul foi escrita sobre isso. (Justiça seja feita, ganhamos destaque na mídia de outros Estados.) Não é só conosco: há uma série de bons projetos negligenciados. Então, a tecnologia opera, muitas vezes, de forma paradoxal, em relação à Literatura.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de todos os lugares. Rilke dizia que, se você julga o seu entorno pouco atraente, culpe a você mesmo, porque você não é poeta o suficiente para lhe extrair as riquezas. A arte da Literatura para mim é a arte do constante desvelar do cotidiano. É enxergar cenas literárias por trás de cada ato. Acho que essa permanente tarefa de desvelamento do cotidiano é o melhor hábito para cultivar a mente criativa. Arte é, sobretudo, responsabilidade. Bakhtin disse isso: “pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos”. A inspiração não pode implicar irresponsabilidade, porque a “inspiração que ignora a vida é ela mesma ignorada pela vida, não é inspiração, mas obsessão”. Isso também está em Bakhtin. Então, nós, literatos, escritores, poetas e artistas, temos responsabilidade pela prosa trivial da vida. Há uma responsabilidade mútua implicada entre vida e arte. Na área jurídica, onde eu também atuo, isso é fundamental para que grandes narrativas literárias possam permear o exercício prático e cotidiano do Direito. A esse propósito, temos um projeto que trabalha as intersecções entre Direito & Literatura: além da Rede Brasileira Direito e Literatura, da qual sou membro, há o programa televisivo semanal na TV Justiça. No entanto, o Direito parece ter se descuidado, especialmente nos últimos tempos. Hoje em dia, formamos dezenas de milhares de bacharéis por ano. No entanto, a estandardização do ensino jurídico se reflete na ausência de densidade, de gravidade e de qualquer profundidade humanística de muitos egressos de nossas Faculdades e aspirantes a carreiras jurídicas. Sabemos que a escrita literária está em expansão. O que é extremamente positivo, diga-se de passagem. Portanto, esperamos que os literatos não repitam esse mau exemplo dos juristas. Penso que urge se reconectar com a realidade, com o simbólico e com uma certa função social da Literatura, por assim dizer. Quais são as grandes narrativas a serem contadas hoje em dia? Será que ainda são aquelas do escritor que chega bêbado de madrugada em casa, se deita com uma modelo linda e no outro dia não lembra mais nada? Veja: eu não tenho a resposta para isso. O que não significa que essas coisas não precisem ser avaliadas. Quando ocorre uma hecatombe no país, todo mundo deveria levar a mão à consciência e refletir um tantinho. Percebo alguns escritores preocupados em investigar os seus próprios dramas pessoais através da Literatura e deixando de lado a ambição (no bom sentido) de trabalhar num nível simbólico e mais universal. Dia destes, assisti à Conceição Evaristo comentar, em Ouro Preto (MG), sobre como a Literatura dela é universal. E é verdade. Ela é uma escritora incrível. E ela disse isso com orgulho, porque, a meu ver, ela reconhece o quanto é difícil ser uma boa escritora ou um bom escritor. Literatura não é simples entretenimento, não é mero passatempo; não é marketing pessoal; é arte e implica responsabilidade. Para o Direito, talvez essa advertência já tenha chegado muito tarde.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, eu não diria nada… Eu provavelmente inverteria a proposta e faria o meu eu de anos atrás dizer algo para este eu de agora – embora, este diálogo seja uma constante em nossas vidas. Nós estamos constantemente neste processo de projetar imagens de nós mesmos. De certa forma, é o que este exercício de falar sobre o nosso processo criativo de escrita também implica. Eu mudei muito. “Amadureci minha escrita”, como se costuma dizer. Não sei se fiquei melhor, necessariamente. Sempre admirei o que escrevi quando mais jovem, especialmente o vigor, a crença e a paixão daquelas linhas. Não teria coragem de escrever as mesmas coisas hoje em dia. E digo isso com certa dose de pena. No campo da pesquisa, a mudança é significativa. Não tenho dúvidas de que mudei para melhor. Então, no campo da pesquisa, eu diria algo para o meu eu de anos atrás. Outras coisas parecem não ter mudado: a minha Literatura permanece sem apelo junto às pautas de momento da esquerda e da direita. Acontece…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos. Tanto literários, quanto científicos. A vida é uma fonte inesgotável para a Literatura. Há alguns anos, tenho trabalhado em Quais Blue, escrita em prosa poética. Algumas pessoas costumam falar que não há nada mais para ser escrito e que tudo já foi escrito. Não concordo com isso. No entanto, se eu soubesse o livro que quero ler e que ainda não existe, eu já o teria escrito. De qualquer sorte, eu tenho certeza de que ele está lá, me aguardando em algum lugar: e que, no momento certo, vou identificá-lo.