Diego Werneck Arguelhes é Doutor em Direito pela Yale University (EUA) e Professor Pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem uma rotina matinal?
Nunca consegui ter uma rotina estável. Consigo manter “mini-rotinas” durante certos períodos de tempo, para completar projetos específicos. Escrevo “quando dá”. Mas é difícil avançar sem ter blocos de tempo um pouco longos, de algumas horas, sem interrupção externa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Poder escrever um pouco todo dia é um sonho para acadêmicos. Mas não depende apenas de você. No médio e longo prazo, “tempo” para fazer as coisas pode ser uma questão de organização pessoal e de prioridades. No curto prazo, não é bem assim. Tem muita coisa acontecendo na vida das pessoas, e às vezes uma semana passa com você sentindo que mal conseguiu manter a cabeça fora d’água. Há quem consiga manter uma rotina diária de trabalho apesar de tudo, e em meio a tudo; infelizmente, não é o meu caso. Manter um mínimo de controle sobre seu tempo é uma luta diária, que com freqüência perco, e para a qual nunca encontrei uma fórmula infalível. O importante é tentar sempre criar, na medida do possível, alguns períodos dedicados apenas à escrita, mesmo que alguns dias por mês ou algumas horas toda semana. Caso contrário, você acaba sendo consumido pelo que é urgente agora – e esse quase nunca é o caso da escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depois do doutorado, acho que muitos dos meus projetos foram surgindo uns dos outros. Você está sempre lendo, sempre escrevendo. Quando começo a tratar de um tema relativamente novo, porém, acho que a passagem para a escrita ocorre assim que eu sinto que tenho uma pergunta ou problema em sentido amplo – uma crítica ao que outra pessoa escreveu, uma explicação alternativa, uma dificuldade que a literatura existente nunca enfrentou ou não enfrentou bem. Você precisa de um gancho mínimo, ainda que provisório, para orientar seus esforços.
No doutorado, quando estava um pouco perdido, meu orientador me pediu que fizesse um “capítulo 1” que contivesse, em mais ou menos 30 páginas, uma tentativa de argumento completo – explicando porque ele é relevante, de quem eu discordava, quais as principais objeções e como eu as enfrentaria, minhas premissas normativas, e com quais evidências e dados o meu argumento seria eventualmente testado e sustentado. Uma espécie de super-introdução misturada com revisão de literatura. Foi mais difícil do que parecia, mas me ajudou muito. Escrevi o resto já com um mapa detalhado na cabeça, e podia também mostrar o mapa para outras pessoas, para juntar ideias e críticas sobre como desenvolver o argumento em detalhes – e até ajustar o mapa inicial. Mudar de direção é possível e é em si construtivo – especialmente quando você muda porque entendeu melhor o que quer (e o que é possível) dizer.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para mim, uma maneira útil de encarar projetos longos é pensá-los a partir de projetos curtos, em dois sentidos. Primeiro, quebrando o projeto longo em projetos menores, com partes relativamente independentes do argumento, e daí usar os ciclos e prazos de conferências, workshops e aulas para te forçar a produzir essas partes menores. É assim, em função desses prazos e eventos, que estruturo boa parte da minha produção a cada ano.
(Uma dificuldade é que, no Brasil, não temos tantos eventos ao longo do ano que permitam a pesquisadores apresentar seus trabalhos em desenvolvimento e receber feedback sério e construtivo. Mas mesmo uma série de workshops pequenos, locais, que você organize com outros colegas mestrandos ou doutorandos, já pode cumprir essa função.)
Segundo, em sentido inverso: reconstruindo projetos longos a partir dos projetos menores que você já fez. Será que, por trás das suas obsessões intelectuais pontuais nos últimos anos, não existe um fio comum que você ainda não percebeu? É possível que sim, e nesse caso boa parte do seu projeto mais longo já terá sido produzida, mesmo que agora precise ser adaptada para a nova chave.
“Procrastinação” e “medo de não corresponder às expectativas” são parte do pacote. Ponto. Acho que, para estar completamente fora do alcance disso, só estando fora do mundo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O melhor trabalho acadêmico é sempre o resultado de esforço colaborativo. Não no sentido de ter vários co-autores, mas sim porque reflete as sugestões, críticas e ideias de várias pessoas com quem o autor dialogou ao longo do processo. Geralmente, por trás de um bom trabalho individual há uma comunidade ou rede de pessoas que ofereceram seu tempo e seu conhecimento para ajudar o autor.
Minha forma de produzir incorpora deliberadamente esse componente coletivo. Pensem em círculos concêntricos: no primeiro nível, os leitores de primeira hora, para quem você pode mostrar apenas algumas páginas inacabadas, em cuja análise e juízo você confia inclusive para definir se esses parágrafos soltos potencialmente expressam um argumento ou ideia interessante, relevante, diferente do que já foi publicado etc.
No segundo, as pessoas para quem você mostra o trabalho um pouco mais desenvolvido, não tanto em tamanho mas em estrutura. Aqui, você já investiu mais tempo no trabalho, já decidiu que a idéia básica vale a pena, e já terá um argumento visível, ainda que incompleto, com o qual esses leitores podem se relacionar (e quem sabe eles te ajudem a encontrar as peças que faltam).
O que une os dois primeiros níveis é que, neles, você precisa estar à vontade e em condições de pedir opinião inclusive coisas que, em parte, ainda vai fazer. Como seguir adiante? No terceiro nível, porém, você pede opinião sobre o que você já fez. Aqui, o trabalho já está completo, na verdade, e você quer saber se e como ele poderia ser melhorado. Com esses leitores, sua relação pode até ser estritamente profissional, impessoal. Idealmente, é nesse terceiro estágio que estão os trabalhos em que você apresenta em conferências, workshops de pesquisa etc. O texto pode ainda ser inédito e sujeito a mudanças, mas precisa estar basicamente completo.
Organizar as coisas assim tem sido útil para mim. E também ajuda a desmistificar um pouco o trabalho pronto que é afinal publicado. Tudo que eu publico passou por várias versões, de vários tamanhos, e foi mudando (às vezes drasticamente) a partir de críticas e sugestões de leitores variados. Ao lado de tudo que escrevo e falo deveria ter, ao lado do meu nome, uma cláusula de co-autoria coletiva implícita: “With a little help from my friends.”
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Vou direto para o computador. Jogo em um arquivo de texto todas as referências, argumentos e fontes que vou usar, e dali vou montando o texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que as unidades básicas do trabalho intelectual não são os livros e artigos, mas sim coisas mais fundamentais: o problema, a pergunta, a ideia, o dilema, a surpresa, o enigma. E esses não apenas estão por toda parte, como procurá-los fora da sua área pode te dar muito combustível para pensar sobre as questões que mais diretamente te interessam. Tento ler muita coisa fora do direito, mas sobretudo coisas não-acadêmicas – não necessariamente porque elas são “úteis”, não pelo que posso fazer com elas, mas para deixar que coisas imprevisíveis e novas aconteçam na minha cabeça. Aliás, não precisa nem ser só leitura: conversar com pessoas com ideias, dilemas, perguntas diferentes ajuda muito. Minha esposa é antropóloga, sua pesquisa não costuma ter a ver com meu trabalho em si, mas conversar sobre as questões que ela está acompanhando me provoca a pensar em problemas diferentes, em ângulos diferentes. O mundo é interessante demais, se você prestar atenção. Se você está numa comunidade intelectual (social ou profissional) limitada de alguma forma, seu horizonte e seu trabalho vão acabar sendo limitados também.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Escrever artigos não-acadêmicos para jornal e internet (fui um dos co-fundadores do blog Supra – Supremo Interpretado, em parceria com o site JOTA, com o qual contribuo com freqüência), nos prazos da imprensa diária, me forçou a ser um editor melhor de mim mesmo. Prazo e espaço exíguos te forçam cortar coisas do texto – algo que acadêmicos geralmente detestam. Já é tão difícil colocar as coisas no papel, e agora vamos sair jogando fora? Mas cortar te faz refletir mais sobre qual é, afinal, a ideia mais importante que você quer passar. Quando comecei, um amigo com grande experiência em escrever para a imprensa me dizia, sempre que pegava um texto meu para editar: “corte todo o primeiro parágrafo – não vai fazer falta!” Parece radical, mas ao longo do tempo fui notando que, de fato, a maioria dos meus primeiros parágrafos era inútil. São coisas que você escreve para iniciar o contato entre seu cérebro e a tela, para “pegar no tranco”, e que frequentemente não cumprem nenhum papel relevante na versão final. Para que mantê-las? Esse tipo de preocupação vale para qualquer texto, inclusive acadêmico. Normalmente (e infelizmente), a maioria de seus colegas-leitores não se sentirá à vontade para sair sugerindo cortar frases e parágrafos… Por isso, é melhor que você aprenda a ser um impiedoso editor de si mesmo.
Além disso, a repetição da atividade da escrita, ao longo do tempo, ajuda um pouco com problemas como procrastinação e o medo de falhar. Como falei acima, nada fará essas coisas desaparecerem; ao menos até aqui eu não descobri como. Mas, com a passagem do tempo, quando você já passou tantas e tantas vezes pela tarefa da escrita, esses fantasmas vão sendo empurrados para um lugar mais definido e menos ameaçador no processo.
Todo mundo, não importa quão distante de você em idade e situação profissional, passou por essas e dúvidas quando era estudante. E ainda passa, em algum grau, cada vez que senta para escrever. Por isso, é importante conversar com quem veio antes de você – seus professores, seus colegas mais velhos. Não tanto porque haja segredos ou truques a serem aprendidos sobre o processo da escrita – mesmo quando há, e eu não conheço muitos, eles me parecem bem limitados. Conversar é importante para entender que essas dificuldades são parte do ofício. Sua frustração no processo de escrita não é sinal de que tem algo de errado com você. Ao contrário: essas horas de solidão, às vezes até de angústia, são parte do que nos une nessa profissão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma história realista das escolas de pensamento jurídico no Brasil dos anos 90 para cá, não apenas no direito constitucional. Quais as redes profissionais, pessoais e familiares que as formaram? Quais tiveram influência concreta que tiveram sobre políticas públicas e o funcionamento de instituições públicas e privadas no campo do direito? De onde veio o dinheiro para suas atividades, e quem as apoiou? Em quais instituições de ensino estão representadas? Em especial, acho que vai ser fundamental observar, na próxima década, como um pensamento conservador sobre política e sociedade pode ganhar formas contemporâneas novas no campo do direito. Escrever algo assim está além das minhas capacidades, mas espero que alguém se habilite!