Diego Pansani é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há 19 anos que visto roupas monocromáticas, uma para cada dia da semana. Então, minha rotina matinal começa dias antes da rotina matinal: verifico se o vermelho surrado estará pronto para a segunda-feira, se o suor do verde-musgo estará de acordo com a terça, se o cinza pálido estará terrivelmente pálido para as quartas, se o furo do branco encardido aguentará a quinta, se o preto sucção arregaçará a sexta, se o azul klein tolerá o sábado e se o mostarda merda diluirá o domingo. Caso contrário, encomendo os pigmentos e as tinturas extraordinárias para o que ficou conhecido como novo decadentismo ou animalismo inglês e então reconfiguro tudo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente no fim da noite ou de madrugada, por dois motivos: pelo caos e embriaguez robusta desses períodos; pelo silêncio e pela flutuação do mundo nesses períodos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias.
Não tenho meta diária. Fiquei praticamente 20 anos sem publicar nada. Nos dois últimos anos publiquei dois livros, participei em projetos de fotolivro, contribuí com prefácios, orelhas, estômagos de amigos e de amigas poetas, escritoras, circulei em revistas digitais, fui contemplado num edital público.
Há uma imagem pública do trabalho e do exercício literário mas o volume mais intenso de trabalho está todo aqui atrás da tela, nos inúmeros arquivos e versões para serem trabalhadas e terminadas: eis a burocracia do amor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho a impressão que me envolvo com obras que me chamam a atenção:
1) pela intensidade emotiva, pela capacidade, abrangência e intensidade de me dilacerar;
2)pela complexidade do arranjo que vislumbro compreender como sendo previamente elaborado pelo autor ou autora da obra;
3) pela identidade que emerge entre o contato da obra e experiências semelhantes pelas quais já me atravessaram de algum modo num outro momento ou mesmo atualmente;
4) e mais recentemente me envolvo também com obras que dialogam com aquilo que de uma maneira precária tenho chamado de minha obra já publicada ou já elaborada, catalogada nessa imprecisão que é definir seu término.
Gosto de pensar na dança entre as escalas, começando com um tema grande (um prado, um país, um edifício, um amor) e deslocá-lo até uma micropaisagem (um arbusto, um endereço, uma maquete, um beijo) e colada nessa dança a música da imprevisibilidade nos conduzindo. E agora? Qual o próximo passo da nossa coreografia?
(Parênteses: as vezes não dá a sensação de que falta descobrirmos um sentido organoléptico como mediação pro mundo? Eu sempre penso que há entre o exercício mental e o sabor das coisas uma ponte ainda não elaborada)
Talvez o ato de criar, de compor, seja uma maneira mais elaborada de nos comunicarmos com os outros. E criar conjuntamente talvez seja ainda mais misterioso, desafiador e gracioso do que individualmente, ou a isso que se convencionou conceituar de individual, como autoria exclusivamente própria. É isso que me move.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou muito religioso, então, nessas horas, eu rezo a oração do Henry Miller:
Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Tem poemas, por exemplo, que reviso 5, 6 vezes. Outros 11 anos (o poema Som,Teste, 1,2,3, do livro O amador, Editora Urutau). Tô há quase dois anos pensando-escrevendo essa entrevista. hahahaha
Mostro meus trabalhos para alguns amigos e amigas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo muito no celular, em plataformas que integrem arquivos, tipo google keep. Tenho alguns cadernos mas os uso cada vez menos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ultimamente tenho procurado assuntos não estritamente literários: neurociências, sonhos, história geral. Isso dá uma dimensão diferente para as coisas que vivo ou que pessoas ao meu redor estão vivendo porque, afinal de contas, sempre escrevemos sobre isso, sobre a nossa vida, não necessariamente na perspectiva do meu olhar, do meu ponto de vista ético ou estético.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que o processo de escrita é parecido com psicografar: parece um transe, e talvez seja, mas há um contexto, uma elaboração do cenário, do tempo, da maquiagem, da trilha sonora, do elenco – geralmente quem recebe a mensagem do além não se preocupa com o emaranhado de nervos e exercícios mentais mobilizados para riscar a chapa maleável da memória: ele quer o trajeto cicatrizado, as sinapses florescendo, o morto revelando que o paraíso é insuportável sem os entes queridos. Então, a mensagem dos mortos se alterou nesses anos.
Eu diria para mim mesmo que a desautomatização também deveria ser o grande motor para quem está criando e não somente para aquele que está lendo ou vendo ou assistindo ou interagindo ou vivendo uma obra de arte.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou terminando um livro de contos. É um gênero novo pra mim e tenho gostado dele. Gostaria de escrever uma peça sobre um asilo que abriga todas as pessoas reais, imaginárias, literárias que amo, que amei. Gostaria de ler um livro de poemas sobre o pão na chapa. Gostaria de reescrever o Amador, meu primeiro livro publicado. Gostaria de montar uma oficina popular de escrita.
Vou adorar ler os livros que o capitalismo não mais alcançará.