Diego Andrade de Carvalho é indígena do povo Puri, estudante de Letras na Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minhas manhãs são sempre muito movimentadas. Sempre fui acostumado a acordar cedo por obrigações escolares e, hoje em dia, pela faculdade. Mesmo que às vezes durma tarde e/ou não tenha compromisso algum no dia seguinte, cismo de acordar cedo. Dia ou outro antes do despertador, inclusive – uma teimosia biológica que nunca consegui superar. Quase nunca escrevo pela manhã. Quando não tenho aula, logo após o café vou à academia. O que sobrar da manhã uso para redigir trabalhos ou seguir com minha pesquisa sobre Lima Barreto (que, caso tudo dê certo, continuarei no mestrado ano que vem). Minhas manhãs são, basicamente, para organizar minha vida e minha saúde, física e mental. Detesto acordar muito após as oito, me dá gosto de dia perdido nas olheiras. Prefiro, em geral, dormir menos e tirar uma soneca curta pela tarde, do que simplesmente dormir até perto de meio dia. Não sei se é exatamente saudável, mas é o que me agrada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de escrita?
Definitivamente, pela noite. Uma vez dei até entrevista para uma reportagem da TV Cultura sobre trabalhadores noturnos – o que não deveria ser de se espantar, pois se eu não considerar minha carreira de escritor como trabalho, nunca a levaria a sério. Arte também é trabalho, e nunca entendi de onde as pessoas tiram que não se deve ganhar por isso, principalmente aqui no Brasil, em especial com a Literatura. Por que ser músico ou pintor pode ser um trabalho, mas escritor, nem tanto?… Enfim, ficou um trechinho pequeno, mas está lá, transmitido e perdido em algum recanto da internet. Não que seja exatamente meu mérito: se de manhã arrumo minha vida, à noite eu a destruo com minha mente inquieta. Tanto por ser o tempo disponível para escrever, quanto pela produtividade ser maior. Vai me dando não sei que ânsia conforme o arrebol vai rasgando o céu. Há um banzo definitivo que sofro sempre quando a luz dourada do sol já esmaeceu e o céu está roto daquela cor de chumbo, de poluição, antes da noite definitiva.
Talvez muito do que eu escreva seja melancólico justamente por vir deste estopim. Tem dia que não consigo dormir sem escrever aquilo que precisa ser escrito. Outros, é tanta ansiedade, e sofrimento antecipado que escrevo até me cansar, a fim de atravessar a insônia que me toma. Daí, minha escrita majoritariamente noturna vira faca de dois gumes: tem dia que atrapalha meu sono; tem dia que é a única possibilidade de dormir. Não tenho exatamente um ritual de escrita. Eu costumo simplesmente parar o que estou fazendo e começar a redigir um texto. Sou sistemático apenas com as minhas paranoias, via de regra.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Precisamente pelas minhas paranoias, sou mais disperso do que recorrente, em periodicidade: minhas obras costumam vir de ideias que se tornam recorrentes em mim e me fazem sentir a necessidade de produzi-las em texto. Daí costumo ter períodos concentrados de produtividade avassaladora. Porém, com certa antecedência, já consegui a proeza de criar, durante certos períodos, uma meta diária e segui-la. Isto me ocorreu com duas obras, em 2016 e 2017. Foram as vezes nas quais tive a ideia, quiçá imprudente, de me inscrever naquele NaNoWriMo, que uma vez por ano promove o desafio de escrever um romance de 50 mil palavras num período de um mês. Imprudente por ser sempre em época de final de semestre na minha faculdade, e pelo tamanho do desafio. Consegui atingir a meta, em ambos os anos. Porém, como escrever romances para mim é um processo doloroso e longuíssimo, o resultado foram dois livros de contos, um em cada ano: o “Contos de vez alguma”, e o “Vozes do Silêncio” (ainda não publicados). Foi o que cri ser viável e admito que alcancei resultados acima da minha expectativa – além de ter conseguido salvar meu semestre nas duas vezes que participei. É uma vitória, ao que parece.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas o suficiente, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ainda que em geral eu tenha essa movimentação de seguir ideias fixas que me surgem, meu processo de escrita costuma ser muito meticuloso. Quando mais novo, eu simplesmente tinha as ideias e as seguia, sem muita terra firme para balizar o avanço dos meus passos. Vi que tinha que mudar isso quando pari dois romances e um tanto de um terceiro como obras degeneradas a priori. São meus escritos da juventude que tanto tentei salvar conforme melhorava minha escrita, mas que se encontram hoje num limbo quase irreconciliável. Desde então, costumo, para obras longas, fazer esboços ainda mais longos de minhas intenções, estilo pretendido e assim por diante.
Porém, aqui e acolá concebo ideias para uma obra e organizo rapidamente o que e comodesejo expressar. Daí a termino pouco após tê-la concebido. Dois casos desses foram os livros de poemas “Uma história em cinzas” e “Espumas replicantes: poema sinfônico”. O primeiro, foi um necrológio que fiz para o Museu Nacional. Tive a ideia no dia do incêndio e no próprio dia comecei a escrever. É um livro acerca da memória, sobre a importância de sua manutenção, e os rumos que o nosso tempo estão tomando com essas políticas devoradoras de narrativas que lhe são adversas. O segundo, veio de uma vontade de escrever um livro de haikais, um gênero poético com o qual há muito mantenho afinidades. Um dia, decidi que o livro de haikais seria um jogo de referências históricas e musicais, montando uma narrativa através de haikais versando sobre ondas – o título obviamente é uma referência ao Espumas flutuantes, do Castro Alves. Terminei a primeira versão de cada um desses livros em cerca de um mês.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Primeiramente, não lido: apenas sofro. Na hora que destravar, destravou. Infelizmente, da mesma forma que tenho momentos de grande organização mental e consigo redigir uma obra rapidamente, tenho os momentos de abismo. Nesses intermezzos, é um dar de ombros, choro e ranger de dentes desgraçado. Não há técnica que salve o humano da insegurança. Eu, paranoico convicto pela minha ansiedade, tenho tendências à dissolução no desespero.
Procrastinação é comum para mim só em obras mais longas, devido às degenerações que cometi há muitos anos, como já mencionei. Isso fez com que eu demorasse a própria eternidade para concluir o meu último romance, “O Equinócio dos Espíritos”. Hoje eu me encontro procrastinando um novo romance, mesmo com todo um roteiro prévio do que deve acontecer, e várias anotações preparadas. Do jeito que está demorando, me pergunto se não será uma obra para consagração – o que me faz rir às vezes, pela audácia de tentar justificar minha demora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso mais do que escrevo, e isso é importante. O Equinócio, por exemplo, revisei recentemente pela terceira vez, reescrevendo e expandindo um capítulo inteiro, além de outras operações menos drásticas. Eu sempre tento mostrar meus originais para amigos próximos, principalmente os que entendem algo de Literatura, mas é sempre como se eu os procurasse com uma faca na mão. É um pavor de ler que nunca entendi. Raramente consigo, mas das poucas vezes que obtive sucesso, recebi comentários importantes que me ajudaram muito a melhorar a obra e evitar alguns erros que na época de redação eu não vi serem crassos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já escrevi livros inteiros de poema em blocos de nota no celular… Hoje em dia escrever em papel é quase um prodígio para mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias são de ordem tanto abstrata quanto política. Da abstração absoluta dos abismos linguísticos à Literatura engajada. Não são ideias de ordem excludente, mas complementar. Às reflexões mais íntimas que assumo, se ajunta a crítica social. Um bom exemplo disso é meu livro Mikrokosmos, Opus 5, que publiquei pela Patuá ano passado, e que concorrerá a alguns prêmios nesses meses vindouros. O que mais me mantém criativo creio ser a premissa de não excluir as possibilidades de expressão: por mais que eu entenda ter um lugar de fala específico, por ser indígena, de classe menos privilegiada e LGBT, detesto a ideia de recair sempre nesses lugares, ainda que ache importante representá-los na Literatura. A questão é que não desejo ser reduzido pelo olhar externo como escritor metonímia de meu lugar social. Eu não só quero, como já escrevo sobre esses temas, mas me recuso a terque falar unicamente sobre eles. Por isso jogo à vontade e construo narrativas e poemas com o material que achar pertinente para tanto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
De alguma forma, creio já tê-lo dito. Amadureci e alinhei melhor meu pensamento e procedimentos de escrita. Eu diria para mim mesmo que preciso ser menos ansioso, ainda que seja difícil, e que deveria falar mais com meu próprio interior, bem como observar melhor o meu redor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria, profundamente, de escrever um desses romances longos e de caráter mais realista, numa linha mais machadiana e/ou lima barretiana, versando sobre questões indígenas. Mas sempre creio não ter mão para prosa mais realista. Eu gosto de escrever o absurdo, o fantástico, o mágico. Eu vejo que a realidade, tal qual fingimos projetar, não dá mais conta de expressar tempos tão obtusos, de gente tão medíocre e sinceramente má dominando um mundo que está morrendo pelo consumo desenfreado, por um sistema econômico que nasceu para extinguir. Por isso talvez que meu projeto mais verdadeiramente realizável seja este romance que procrastino agora, que também fala sobre questões indígenas, mas se distancia da pretensa representação realista da narrativa, ainda que seja brutalmente real.
Sobre o que eu gostaria de ler? Saberei tão somente quando o fizer. Eu nunca saberia o quanto precisava ler Lima Barreto até lê-lo, por exemplo. A mesma coisa com obras de tantos autores e autoras que consumiram meu peito e ocuparam a minha vida sem intento prévio meu, como uma Clarice, com sua prosa tão singular. Discurso a parte, um desejo contínuo meu, no momento, é ler mais indígenas escrevendo ficção e obras acadêmicas. Poder ler, estudar e divulgar, ajudar a mostrar que o atraso não é dos povos originários, mas sim de sistemas caducos que tem como fim último, a dissolução de tudo.