Diana Junkes é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto de acordar cedo, em geral, bem cedo, às 7:00 horas da manhã já estou de pé. Daí tomo um café da manhã caprichado e, pelo menos três vezes por semana, vou fazer exercícios; sou mais produtiva pela manhã. Há sempre muitas coisas da universidade para resolver, da burocracia às aulas, metas para cumprir, e-mails que se acumulam e pouco tempo para realmente pensar e refletir como acho que eu deveria; fico absorvida pelo trabalho ou pela tela do computador, ou ambos. Quando está calor, vou nadar logo cedo. Gosto muito de nadar, resolvo a vida nadando, penso em poemas, ensaios, tomo decisões, o contato com a água me organiza internamente, enquanto me perco entre braçadas. Eu adoraria morar numa praia, me fundir ao mar, ao sol, à areia, à experiência do silêncio ruidoso que só o marulho proporciona. Tem alguma coisa no mar que não se diz, que a gente não alcança, assim como na poesia. Está ali, apenas isso, transcende a própria palavra, a vida em versos. Acho que a rotina matinal seria fantástica se eu vivesse numa praia, mas pode ser só ilusão, claro, não sei.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu produzo melhor de manhã e tarde da noite. No primeiro caso, pela energia do dia que começa; no segundo, porque cumpridas as sinas de Sísifo, parece que a poesia se redesenha, há o silêncio da noite, rompido pelo barulho dos dedos sobre as teclas ou do lápis deslizando no papel. Mas, a rigor, não tenho um horário definido para escrever, não estabeleço uma rotina em relação a isso, tudo na minha vida fica muito cerceado pela rotina, então deixo a escrita acontecer se ela se torna urgente. Subitamente, vejo-me tomada por um poema, ele fica pulsando, e então o processo de escrita desconhece horários, ele se impõe, essa é a verdade, acontece obsessivamente, num continuum, até que eu considere o texto razoavelmente acabado. Quanto ao ritual de escrita, não tenho um especificamente. Avançando um pouco, diria que meu processo é quase anti-ritualístico, quando absorta pela escrita, ela acontece em todos os lugares, desrespeitando ritos. Carrego um caderno de notas comigo e escrevo em todos os lugares, qualquer pausa é bem-vinda: metrô, salas de espera de consultório médico, fila do supermercado, intervalo de aulas, reuniões maçantes, em meio às refeições, enfim, assaltada pelo poema, só me resta a rendição, escrevo incessantemente até a urgência passar. E ela passa. Serena. Mas, como disse, se a configuração do desejo de escrever não ocorre maciçamente, prefiro manhãs e noites, sobretudo para revisar, reescrever, organizar o que está pronto quando há um novo projeto de livro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária de escrita, embora às vezes tenha metas de revisão, quando preciso enviar o livro para a editora e o tempo é curto. Eu escrevo sempre, quase diariamente, mas as fases mais criativas pedem períodos concentrados, um mergulho mesmo nos poemas, incessantes revisões. Depois vem um tipo de ressaca, como se tivesse usado todas as energias para escrever (e uso muito dela mesmo). Então, a minha escrita é assim: períodos concentrados, marcados de intensidade, pontualidade, quando há um projeto de livro em curso, ou poemas assaltantes, interpeladores, como disse acima, alternados com períodos brandos, marcados por extensidade, mais duradouros, em que a escrita é mais um exercício livre, um fim em si, o que escrevo na fase banho maria pode ou não entrar em ebulição. Poderia dizer assim: os períodos concentrados são como o preparo de um prato sofisticado (eu gosto muito de cozinhar), a criação está em jogo como a construção do objeto-valor sopa au pistou do texto de Greimas; os períodos brandos são como arrumar a cozinha, lavar a louça, deixar tudo pronto para a próxima empreita. Isso vale tanto para a escrita dos poemas como dos ensaios e foi assim quando fiz dissertação de mestrado e tese de doutorado. Talvez seja o modo como eu funciono, entre abismos e planícies, Sunungas e Picinguabas, para voltar ao mar, por Ubatuba, que é um de meus lugares favoritos no planeta. Ou, ainda, poderia dizer que os períodos concentrados são como uma transa inesquecível, daquelas líricas e intensas, que suspendem o tempo; um lance de dados, incerto e aberto ao acaso, puro significante, “talvez em céu noturno” que subdivide prismaticamente o corpo, as ideias, as sensações, o espaço e o tempo, os sentidos, as palavras da carne inscrevendo-se em si e no outro; depois, vem a brandura da luz sobre os corpos, mesmo que esteja escuro. A escrita para mim tem uma pulsão erótica muito forte, como essa de que falo acima, é impregnada de libido, não necessariamente como tema dos poemas, embora isso aconteça, mas como uma força que se opõe ao lado tanático da existência, resiste ao gris ainda quando o poema é melancólico. A minha atividade de escrita (não necessariamente os poemas e seus temas) é visceral, vital, por isso, não se enquadra em rotina, embora eu aceite que para um projeto de livro ter um fim a sistematização seja crucial, mas a escrita concentra-se, expande-se, dilui-se sem muita regra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu escrevo principalmente à mão, em cadernos de notas. Os poemas nascem bem longos, narrativos e aí eu vou cortando, mexendo na forma. Passo a limpo muitas vezes em diferentes versões, reescrevo um poema muitas vezes, fabrico-o e sinto um prazer imenso nesse processo que vai da ideia do poema até sua última versão, é a volúpia de estar a caminho. O interessante para mim é a criação, a concepção das imagens, a escolha lexical, a preocupação com a sonoridade, com as paronomásias. Eu gravo o poema repetidas vezes para decidir se tal palavra engrena ou não (veja, o poema é uma máquina pulsante). Os acontecimentos descontínuos, que irrompem com intensidade, dão trabalho: um gol, que é também a explosão da palavra gol pela torcida, também dá trabalho; um orgasmo, que é a constelação da voz, gemido indecifrável, existe por existirmos, dá trabalho; um poema dá trabalho, o desafio, e porque não dizer, o tesão, está na travessia do zero ao zênite, é o âmago do ômega, para falar como Haroldo. Portanto, meu processo de escrita refuta a inspiração, é da ordem da poiésis e não da mímesis, há entrega e labor ao mesmo tempo, como no gol, como no orgasmo. Não sei se sou bem-sucedida na caminhada e no resultado, mas me esforço para lutar contra a mediocridade. Não é qualquer coisa que faz um poema, um poema não é um aglomerado de palavras, tem corpo, voz, cérebro, veias artérias, ao dizer, diz-se, diz-me. Se de um lado minha poesia vem do mergulho no universo da palavra, por outro lado, é recolhida da experiência. Atribuo muita importância à experiência na minha pesquisa para a escrita. Observo o mundo à minha volta, as pessoas, seus sentimentos, assim como medito sobre minha própria existência; trata-se de uma poesia de recolha: uma fala que ouço na plataforma do metrô, na cantina da universidade, meus monólogos interiores, o contexto do país, uma notícia de jornal, minhas próprias mazelas e desilusões, a festa, o samba, o bar. Então, acho que é uma poesia do eu em sua relação com o mundo – o que não é novidade nenhuma, mas é o que me é possível fazer e me dedico a essa tarefa a partir de muitas escritas de um mesmo poema, como se fosse possível depurar uma forma que ao mesmo tempo se insurge. Para mim, trata-se de resolver a equação sobre a qual fala João Alexandre Barbosa, com quem tive a alegria de partilhar muitas conversas sobre poesia. A equação é equilibrar composição poética, intransitiva, e comunicação poética, transitiva. Talvez algo entre a generosidade com o leitor e o rigor da construção, ali é que tento situar meus poemas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aceito a trava na escrita como aceito a louça por lavar dentro da pia, ou a espera do parecer do artigo, a resposta da agência de fomento para um projeto; algo que às vezes é impossível contornar, quanto mais se combate, mais a trava se arrocha. É assim na vida também. Entendo que há a hora dos violinos e há a hora dos tambores, como fala o Ivan Angelo num conto. Então, tento não sofrer muito. Não temo grandes projetos e apesar de ser tão diferente de Haroldo de Campos, que é o poeta que eu estudo, aprendi com Haroldo a obsessão, a dedicação, o desejo de paradoxa, sobre o qual escrevi em um ensaio a respeito de Galáxias e Ulisses. Penso também que o futuro é uma invenção, num sentido pós-utópico, aprendi, a duras penas e não sem sofrimento, seja no plano pessoal ou da vida, de um modo geral, que o que temos é o agora, o passado me constitui tanto quanto é incontornável, mas não me aprisiona, prefiro a vanguarda ao retrocesso, me atirar na linha de frente a me intimidar. Ademir Assunção diz assim num poema: “exceto o instante, este istmo, este agora/que se grafa na pele, na palma, na pálpebra/ e se esgarça no mar do espanto”. Eu acho que é isso, temos de viver e sentir que há o istmo e há o resto, passado ou futuro importam menos numa perspectiva pós-utópica, importam na medida em que se articulam ao agora. Não tenho essa ansiedade a que você se refere. Evidentemente, me preocupo com o reconhecimento do meu trabalho como todo, ou pelo menos a maioria, dos artistas, mas não é possível agradar a todos e não escrevo para agradar. Não tenho medo de crítica, aprendo com o que vale a pena, incorporo na medida do possível, reflito sobre o que me dizem os leitores críticos de meu trabalho e simplesmente tiro da frente o que não convém, como um cavalo devora um peão no tabuleiro de xadrez, aos saltos. Não tenho a sutileza dos bispos e nem a circunspecção das torres. Morro/mato repetidas vezes, me abismo, me espanto. Faz parte. Do quê? Da experiência, do que fazemos dela no presente da criação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos inúmeras vezes, como disse e, sim, mostro meus textos a outras pessoas, poetas e críticos, amigos de outros campos das artes e para meu filho, Rodrigo, que considero um leitor privilegiado de poesia, estabeleço diálogos que não me estringem, mas ampliam, algumas vezes a minha visão sobre minha própria escrita; nem sempre concordo com os apontamentos dos meus interlocutores, mas sempre acho muito produtiva a discussão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é boa, o que não quer dizer que a domine ou seja perita em seus meandros, ela é fundamental, mas raras vezes escrevo diretamente no computador, gosto muito do rascunho e para mim é importante a escrita a mão, fico mais dona do que escrevo se o faço a lápis, sim, porque não gosto de usar caneta, muito definitiva.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do que observo, do que experiencio, vêm do mundo à minha volta e do meu mundo interior, mistura e, algumas vezes, bricolagem. Há um poema de Drummond em que o sujeito lírico diz que é preciso escrever um poema sobre a Bahia, mas ele nunca esteve lá. Acho que é assim, há a necessidade da vivência, da recolha, pelo menos para mim. Mas eu disse também que muitas vezes escrevo a partir do que ouço, histórias. Certa vez, num Uber, o motorista me disse que trabalhava numa funerária e transportava corpos. Me contou detalhes dessa experiência e eu escrevi sobre ela, não porque tenha me identificado ou porque tenha eu mesma transportado corpos, mas porque o relato do vivido por aquele homem ressoou em mim, acionou alguma coisa, desestabilizou, abriu portas, denunciou verdades. Essa conversa se converteu num poema chamado “transporte público”. Acho que isso também é relevante: a minha poesia se escreve e se inscreve pelo e no instável, seja aquele oriundo da minha vida ou do que eu presencio, encontro. Dessa forma, penso que um ponto de vista importante da minha pesquisa estética é a tentativa de conversão da linguagem do mundo, das coisas, das pessoas, em objeto de linguagem, poema. Quando digo que escrevo o que experiencio quero dizer que vale para o que eu mesma vivo ou aquilo que inevitavelmente ressoa em mim da experiência do mundo que me atravessa a pele e a palavra, intensamente. Nunca havia pensado na perspectiva de um hábito que cultivo para me manter criativa, mas um hábito que me constitui é este: um profundo interesse e respeito pelo humano e na mesma medida uma grande indignação contra a injustiça, os estados de exceção. Um poeta não pode se sentir confortável no mundo, não porque não possa em si, mas porque não consegue, sua visão é caleidoscópica, sua palavra imprecisa, chã, comum, mesmo que use o mais sofisticado léxico. Um poeta precisa comer terra para apreciar nuvens, precisa perder o fôlego debaixo d’água, a poesia é contraponto, mar metáfora invertida do céu, como diz Genette; gosto da ideia de ter que olhar para cima, voltar a cabeça, para ver as estrelas, ou seja, nem olhar para as estrelas é automático, como nada na poesia é automático. Se um poeta vivesse em meio às estrelas, não saberia como elas são de fato, não teria perspectiva, olhar para as estrelas é um gesto inventivo, enfim, só é possível mergulhar nas estrelas porque as miramos daqui, porque mudamos a posição do pescoço, poesia é ação, deslocamento, trânsito, espanto, desconforto e não contemplação, pelo menos para mim. Por isso, não vejo a poesia com asas, mas com guelras, o que há de asa na poesia é cera, derrete com a própria experiência, os voos são breves, as quedas inevitáveis, mas os mergulhos são definitivos. Como diz Jorge de Lima, há sempre um copo de mar/ para um homem navegar”, chegar às ilhas com os remos das palavras, que é o que sobra em meio a tanta falta, ainda que a palavra seja faltante também, mas ela é o que nos resta, como no lindo poema de Blas de Otero: “me queda la palavra”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu sempre escrevi muito, do modo como descrevi acima. Publiquei poemas em algumas revistas e blogs, mas só mais recentemente assumi a necessidade (minha necessidade) de tornar públicos os poemas em livro. Do meu exercício crítico, do qual não me separo, aprendi que um livro de poesia com um projeto pode ser algo muito interessante, isso não precisa ser a regra, mas é, para mim, um estímulo. Assim nasceu meu primeiro livro, clowns cronópios silêncios. Nele eu procurava uma forma, sobretudo uma forma que dissesse de um universo interior, esfacelado e colorido, procurava também o silêncio e, sobretudo, queria a delicadeza, a leveza, mesmo que uma dor pungente estivesse nomeada nos versos. É um livro lírico, mas sem ser derramado, muitas vezes sem a marcação do eu nos poemas e isso tem a ver como uma reflexão minha sobre o lírico, ou uma subversão do lírico que é uma afirmação do seu sinal de menos, se é que posso dizer assim. Fui muito influenciada, em termos formais, pelo Haroldo leitor dos japoneses e chineses, tentei uma escrita ideogramática, flashes de poemas, pois são muito breves. Naquele momento, a brevidade era um grande desafio para mim, que sou verborrágica. O livro foi ilustrado por Helton Souto e esta foi uma parceria muito produtiva, porque cada poema tem uma ilustração que às vezes dialoga diretamente com o texto outras se afasta para circunscrever a criação do Helton a partir da leitura: imagens muito delicadas e líricas sem derramamento e obviedades, ou seja, acompanham o projeto do livro e sua atmosfera “clown e cronópio”. Penso que o poeta é um clown, não pode temer o ridículo e esconde uma profunda meditação sobre a existência, num simples gesto que, sabemos, é oriundo de um intenso trabalho construtivo. Também vem do clown a delicadeza e a leveza em meio ao asfalto áspero que a vida insiste em esfregar em nossa pele muito frequentemente. Já o cronópio é um clown mais aleatório, oposto ao fama, não sei se é mais feliz ou mais leve, mas é mais íntegro, e isso me mobilizou muito durante a escrita do livro, que foi prefaciado por Wilson Alves-Bezerra.
O segundo livro, sol quando agora nasceu de um encontro casual com o músico Rogério Botter Maio, que me foi apresentado por uma amiga comum, a Ciça Furquim. Conversando sobre nosso trabalho, surgiu a ideia de fazermos uma parceria que acabou se delineando pela criação de poemas a partir de composições do Rogério. Foi um desafio imenso porque as músicas são muito sofisticadas e essencialmente solares, ou seja, era preciso controlar a melancolia clown e dar espaço para um riso, mesmo que não contundente, mas um riso, que é irônico em alguns momentos. Não é um livro engraçado, mas possui momentos de humor, mantendo a leveza e a delicadeza, e há passagens do mundo interior para o exterior, como portas que fazem a experiência lírica bordear subjetivo e objetivo, um livro de limiares. Depois de prontos os poemas, Rica Bezerra, que é professor da UFBA e artista plástico, criou guaches para os poemas, o resultado é interessante. O livro tem uma orelha poética e subversiva escrita por Gabriel Levy e prefácio de Paulo Andrade. Acabou tomando um corpo que eu não imaginava, porque foi um projeto que envolveu outros artistas e profissionais, como o Rodrigo Bragança, que é músico e fez a mixagem das músicas de Rogério e gravação da leitura dos poemas para o CD que acompanha o livro no estúdio dele, Argila. Assim, sol quando agora é um livro breve, mas resulta de um anseio pela troca, pelo diálogo. Eu não mudaria nada na escrita desses livros, são resultado de um momento, de uma história, das questões que me mobilizavam, formal e tematicamente enquanto os escrevia.
Atualmente, há uma mudança na minha poesia. A preocupação formal continua, mas a partir de novas reivindicações, tanto quanto ao texto em si quanto aos temas aos quais tenho me dedicado. Os poemas estão mais longos, mais narrativos, alguns bem eróticos, quase pornográficos, se é que existe essa gradação, mais engajados com a situação que nosso país atravessa, ainda que não remetam ao contexto diretamente, o golpe, a prisão de Lula, a emergência dos discursos fascistas têm se refletido no que escrevo, o aumento do número dos moradores de rua, a cidade frenética, enfim, tudo isso tem se imposto e ocupa minhas reflexões tanto no campo da crítica, como no da poesia. Mas não é na forma a maior mudança, embora nela seja bastante visível, creio que ela se manifesta de modo mais relevante na voz, na dicção, mais incisiva, direta, muitas vezes com marcações de pessoa, que não existiam nos trabalhos anteriores; para ficar com a metáfora do mar, é como se as guelras da poesia encontrassem ar em meio a navios naufragados; destroços e tesouros habitam ali, restos de seres humanos, memórias. Além do contexto, atribuo essa nova rota ao convívio com poetas e músicos que frequentam os saraus de Paulo Nunes, um poeta excelente, pesquisador da obra de Juca da Angélica, pouco conhecida e que muito tem da melhor tradição da poesia oral. O Instituto Juca de Cultura, mantido com muito sacrifício pelo Paulo, em tempos tão sombrios para a cultura, é um lugar de convívio de diferentes artistas, todos preocupados com a nossa cultura, nossas raízes musicais. Penso que meus poemas atuais pedem oralização, não são musicais, melódicos, mas têm cadência, rimas em eco e imagens mais contundentes, resultantes, portanto, do contexto e do diálogo que o IJC propicia, como o que estabeleci com o percussionista Carlinhos Ferreira, que resultou no poema “O levante do Rei Congo”, que tive a honra de ver publicado na Antologia Lula Livro, em defesa da liberdade do Presidente Lula, organizada por Ademir Assunção e Marcelino Freire, ao lado de mais 89 artistas, alguns muito renomados e relevantes para a cena cultural brasileira, como Chico Buarque, Augusto de Campos, Raduan Nassar. Essa participação talvez marque a nova fase. É impossível atravessar o pesadelo que vivemos sem manifestar indignação e se isso não se explicita em todos os poemas que venho escrevendo, surge na linguagem, na forma, nas escolhas de expedientes poéticos que mais vem de escolhos, da dilatação das guelras, do que da busca da delicadeza.
Por fim, eu não me vejo como uma poeta presa a padrões e rotinas. A poesia me desafia, incita-me a voz, busco formas que a digam e digam da experiência, do agora. Diria que a leveza e a delicadeza dos livros anteriores, que me são caras, cederam espaço à multiplicidade, talvez à rapidez, pensando aqui nas conhecidas lições de Ítalo Calvino para este milênio. O modo como se comportam os meus versos atualmente não é exatamente uma escolha, mas um imperativo diante do que me espanta e alumbra, talvez uma rebelião contra o silêncio que marcou o clowns cronópios silêncios e o sol quando agora, embora, claro, a poeta seja a mesma, algumas imagens se reiterem e o processo de criação/produção comporte-se do mesmo modo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos os projetos, não saberia elencar um aqui. Quanto ao livro que eu gostaria de ler e não existe, não sei, mas seria um livro que desse conta da dimensão mais íntima da existência e de sua relação com o mundo, um livro em que o silêncio valesse tanto quanto as palavras e que fosse uma abertura ao sentido e aos sentidos. Mas há um outro sonho também. Eu gostaria que os livros já escritos e os livros de poesia que ainda serão escritos fossem baratos, que fossem acessíveis, que circulassem pelo país para chegar às mãos de muitos leitores e leitoras. A poesia é uma coisa elitista, os livros são caros; nas escolas, em geral, não se leem poemas, porque são difíceis. Ainda estamos presos a um modelo de poema tradicional; são poucos os cursos na universidade que contemplam a poesia concreta, por exemplo. Então gostaria que os livros que existem e os que virão a existir fossem lidos, apreciados, odiados, enfim, meu desejo é que as pessoas não passassem incólumes pela experiência da leitura de poesia, que os livros tivessem sua razão de ser. Escrevi um texto em que dizia o seguinte: Em um belo ensaio Jean-Luc Nancy afirma que “se acedemos de um modo ou de outro a uma orla de sentido, é poeticamente” e ele continua: “isso quer dizer que apenas esse acesso define a poesia, e que ela só tem lugar a partir do momento em que ele tem lugar”. Diante da situação contemporânea, em que o próprio lugar da literatura é posto em xeque, caberia perguntar como, em meio a mudanças exacerbadas na técnica, na ciência; em meio a discursos que situam cada país “no showroom de sua genoticipicidade”, como diz Michel Deguy, a poesia pode dar acesso ao sentido, e como encontrar esse acesso sem o qual ela não teria razão de ser. Penso que uma das formas é, justamente, a poesia manter-se como tal, ou seja, não como instância que responderá às angústias do sujeito contemporâneo, mas como forma de conhecimento de si mesmo e do mundo que o rodeia. A poesia torna-se uma forma de conhecimento quando o leitor dela desfruta para além da aquisição de informações; não se lê poesia para tomar conhecimento do mundo à nossa volta, mas para ser tomado pelo conhecimento que o mais-além da literatura disposto no poema engendra, aquilo que fica no intervalo entre o poema e sua leitura, e que se relaciona a fatores sociais, culturais, econômicos, artísticos, psicológicos, enfim, às diferentes esferas da ação humana no mundo. Ao contrário de outras formas de saber, o poético abre-se a múltiplas interpretações e tem a ver com um modo íntimo de relacionamento do sujeito, que dele quer se apropriar, com a materialidade da obra, com as experiências que ela veicula. Sempre que impuser necessários giros interpretativos ao sujeito no que concerne à sua vivência, às suas experiências, à sua percepção do mundo, atuará como forma de conhecimento. O impacto do conhecimento poético é, portanto, diretamente proporcional à intensidade com a qual o leitor é tomado por ele e a partir dele reconsidera códigos, refuta padrões, percebe que as verdades existentes não são definitivas e que há outros mundos possíveis, ou seja, reavalia sua própria experiência subjetiva e a da sociedade em que vive. E, nesse sentido, é preciso que se aborde a poesia sob outra perspectiva que não a do capital, em que o dom, pensando em termos de ritual, e não a permuta, seja a forma originária do intercâmbio, ou seja, o dom da poesia dá acesso a um saber, a um estado de coisas, por meio de um movimento de gratuidade, a poesia se oferta, como a máquina do mundo. Não se trata de estabelecer o seu uso (utilidade) ou seu valor como mercadoria, o preço do livro, mas de entender que este raciocínio nunca permitirá que se compreenda a real existência da poesia, as razões de sua insistência e resistência em um país como o nosso, em que a miséria exacerba, em que um golpe de estado nos atemoriza, onde a vida é tão agreste. Não há um livro dos sonhos, mas o sonho da popularização do acesso aos livros de poesia, a custos menores. Considero meus livros caros para a realidade do país, tenho pensando muito sobre isso, ainda não vislumbro uma saída, mas é uma realidade que me incomoda e incita a pensar novos meios de divulgar a minha poesia.