Devair Antônio Fiorotti é professor da UFRR e da UERR.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No geral não. Antes de qualquer coisa, sou professor, pesquisador e possuo orientandos de mestrado, graduação, bancas, palestras, essas coisas. Faço isso pra sobreviver, decidi que não me exporia [nem a minha família] a um perrengue financeiro, que a arte impõe, em geral, a artistas. Nasci artista e por mais que tenha tentado fugir disso, enquanto me dedicava aos estudos ou mesmo enquanto trabalhava na agricultura, por exemplo, a arte sempre ressurgia de forma mais forte e intensa. Digo isso pois, paralelamente à vida acadêmica, sou poeta, músico, fotógrafo, já fiz exposições de pintura, organizei festivais artísticos. Isso por si só me impõe um ritmo de trabalho matinal, diário intenso. Essa conjunção não me permite ter uma rotina muito fixa. Contudo, além disso, cuido do jardim e de uma horta diariamente, pela manhã. E aí é manhã mesmo, começo antes das 6 horas. Minha rotina mais fixa pela manhã é esse cuidado, esse trato com a terra, nascido do fato de ter sido agricultor até os 24 anos, daí também nasceu minha relação com acordar tão cedo. Em geral, sempre faço várias coisas ao mesmo tempo: se vou caminhar, fotografo, faço poesia, por exemplo. Minha rotina, se assim posso dizer, se estabelece nesse amontoado de coisas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou um homem diurno, pela manhã é o momento em que, no geral, produzo melhor. Não, não possuo ritual de preparação. No começo lia coisas, anotava. Hoje sento e começo a escrever: muitos livros já estão anotados quando não rabiscados mesmo por mim. De acordo com a necessidade da escrita, busco textos em fontes diversas: como livros digitais, artigos científicos, dicionários on line. A cada dia, inclusive, utilizo menos livros físicos. Minha profissão gira em torna da escrita e da leitura. Praticamente lido com a escrita várias horas por dia, todos os dias.
Quanto à parte poética, ela convive com esse emaranhado de tessituras: pode nascer de um livro ou de aspectos do cotidiano ou em planejamentos mais elaborados, como nO livro dos amores, em Urihi.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não possuo meta, às vezes pode ser uma hora; noutras, 12 horas diárias, dependendo da necessidade. A vida acadêmica impõe alguns prazos e, muitas vezes, nos obriga a isso. Quanto à parte poética, não escrevo romances, faço poesia. Já fiz três livros temáticos, de poesia, mas não possuía uma rotina rígida. Somente no Urihi, um livro sobre os yanomamis, me impus a escrever um poema por dia até acabá-lo numas férias, acompanhado de doses diárias de álcool. Mesmo assim ele foi refeito, depois, por anos de forma não sistemática. Ainda, não há meta em relação à minha poesia. Sei somente que ela é maior do que eu e me atravessa quase sempre, me exigindo a escrita. Já a vida acadêmica é muito mais sistemática.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Possuo muitos livros anotados, rabiscados, não possuo dificuldade para começar um texto. Se o assunto apresenta novidades, me exige um esforço de, minimamente, se apropriar do tema, o que chamam estado da arte: isso pode levar uma semana ou anos. Por exemplo, para escrever um artigo sobre os gêneros orais macuxi (taren, eren e panton) levei uns 8 anos, até conseguir entender minimamente como se organizavam estas artes verbais.
Para a poesia, o caminho é similar: para escrever sobre os yanomamis (Urihi), foram meses lendo etnografias, textos esparsos sobre os índios, somente depois comecei a escrever. Outros livros só compilei poemas já escritos, nascidos em momentos vários, em geral de forma rápida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não possuo essas travas, não me permito. Agora, nos últimos anos, depois de uma crise de depressão, causada por relações de trabalho, e a situação atual do país, da forma como os profissionais da educação e pesquisa têm sido tratados, tenho tido somente cansaço de escrever, um desânimo tremendo. Tenho me perguntado se efetivamente vale a pena esse envolvimento profundo com a escrita. Toco um projeto há 10 anos, o Panton pia’, com muitos resultados, e a única pergunta que me cerca hoje é se vale a pena esse esforço, se não seria melhor, por exemplo, simplesmente descansar, ficar mais com os filhos, namorar mais, me dedicar mais à agricultura, ir pescar. Digo isso pois esses projetos acabam ocupando um espaço enorme em nossas vidas, de cuja a escrita é somente um exercício de tradução dessas vivências, em geral no final. Mas pra quê? Pra quem efetivamente se escreve? Pra ficar numa revista pra alguns especialistas lerem? Ou fazer um livro de poesia, pra quantos lerem? Não acredito na melhora do ser humano, enquanto uma humanidade em evolução. Isso tornou-se balela pra mim, e o que as redes sociais (e as últimas eleições do Brasil) expuseram e estão expondo sobre uma nação como a nossa e mesmo de outros países demonstram isso diariamente. Por isso, quase tudo de poesia que produzo, por exemplo, é publicado em redes sociais. Quase sempre sou mais lido lá que em livros. E não publico pra mudar nada, perdi essa esperança, publico por uma necessidade de escrita poética ou melhor, talvez, por pura vaidade. No estado atual de desencanto em que me encontro, talvez somente a vaidade, pra lembrar Eclesiastes, mova essas publicações poéticas, caso contrário, ficariam perdidos em arquivos digitais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio várias vezes, não sei precisar quantas, e sempre peço para alguém lê-los. Mesmo essa entrevista, deixei encostado um tempo, pra lê-la depois, e ainda pedi a minha companheira, Sony Ferseck, também escritora, pra que passasse os olhos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Desde que surgiu um computador e consegui comprar um, escrevo tudo nele. Não escrevo nada à mão faz anos, nem lista de compras. Muitos poemas nascem na própria página do Facebook. Por exemplo, escrevi um poema direto na página do Facebook sobre o desastre em Brumadinho, que obteve em torno de mil compartilhamentos. Sabe quando conseguiria esses leitores via livro?
Sobre essa escrita acostumada ao computador, pode parecer risível, mas tive que fazer uma prova, há pouco tempo, para trocar de emprego e minha maior dificuldade foi voltar a escrever à mão, por causa do processo de revisão e, principalmente, da parte física da mão que doía muito: tive que reforçar aspectos musculares da mão para conseguir fazer a prova, que era dissertativa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Na parte acadêmica, nascem dos projetos: os objetos de pesquisas acabam impondo o que deve ser feito, a gente só precisa conseguir enxergar isso no objeto: às vezes a gente leva anos pra enxergar algo em narrativas, cantos indígenas coletados (é com isso que trabalho): sendo que estavam sempre ali. Hoje posso dizer que lido melhor com isso, quanto às ideias, o problema é tempo para conseguir produzir tudo que vem à mente. Ideias não são textos publicáveis. Texto é um processo que impõe um limite temporal. Quanto à parte poética, me alimento do que me cerca: de um canto de passarinho a uma tragédia, de uma noite de amor a um sorriso de criança: mas novamente ideias não são textos, não são poemas: a concretização de uma ideia em texto é um processo. Muitos dizem que doloroso. Comigo não. Sinto um prazer quase que sexual ao escrever um poema, ao brincar com as palavras, ao saber que domino uma técnica e posso usá-la. Tenho predileção pelo verso livre, ele me fala à alma, mas no livro Urihi, por exemplo, é possível encontrar sonetos aos moldes de Shakespeare ou técnicas como stream of consciousness: dominar esse arcabouço teórico e poder brincar com ele me dá prazer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que uma consciência sobre a linguagem, sobre o uso da linguagem e seus possíveis efeitos de sentido. Me considero um escritor mediano, pros moldes que eu estabeleci pra mim. Quis ser mais, mas ainda não consegui ou talvez nunca consiga ou talvez em nossos tempos não caibam escritores como eu: e não digo sobre o futuro: talvez eu pertença mais ao passado. Se pudesse, jogava os primeiros textos quase todos fora, principalmente os acadêmicos. Na poesia, levei muito mais tempo pra me sentir poeta e confiar em meu processo de escrita, sempre fui muito crítico sobre o que escrevia. Escrevo poesia desde adolescência, nunca parei, mas somente depois dos 40 publiquei meu primeiro livro de poesia. Antes já possuía uma coletânea longa de poemas, da qual não aproveitei quase nada, apesar de os temas serem os mesmos até hoje. Tive um histórico muito difícil de vida, primeiro como agricultor, depois muitas dificuldades financeiras mesmo, pra conseguir estudar em Brasília. Morei em favela vendendo lanches por sete anos pra estudar. Aprendi com a violência a sonhar menos e que sonhos podem morrer. Logo, minha escrita pertence a esse ambiente e teve que nascer dele. Se pudesse, não queria era ter passado por tudo que passei: se pudesse eu não voltaria ao que passei, que não me permitiu dedicar-me a outras coisas bem banais, como ir ao teatro, ao cinema. Minha escrita daquele período é fruto do que eu era, não é algo que possa ser mudado nesse sentido. Estar vivo escrevendo esse texto já é um luxo: não há o que dizer ao Devair daqueles tempos, como enviar uma mensagem numa garrafa. Eu hoje é quem recebo as garrafas diárias cheias de mensagens do meu passado: a maioria é uma bosta. Agora, minha forma de pensar e mesmo de dizer pode ser considerada hoje densa, por causa de minha história de vida. Essas coisas, escrita e vida, a meu ver não se separam. Ultimamente tenho percebido um tom raivoso em minha escrita seja acadêmica ou poética, manter a pose nos tempos atuais, pra mim, tem sido difícil.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de lascar a cabeça de boa parte das pessoas e enfiar lá dentro entendimento sobre a diversidade brasileira, sobre como estamos perdendo com os indígenas, por exemplo, em não registar, valorizar e conhecer o que eles são; em como enfiar na cabeça desses estúpidos que nos rodeiam que o conhecimento e a valorização das culturas populares é um dever histórico. Mas isso é impossível no momento. A educação que poderia contribuir está inclusive sendo atacada como nunca antes visto pelo atual desgoverno no país.
Gostaria, talvez, de retomar o Yamix, evento que criei e coordenei por 6 anos, voltado a pessoas mais desassistidas, até ser solapado por perseguições institucionais: ver mais de 200 artistas em uma pequena cidade movendo todas suas estruturas, mesmo que por apenas três dias, era lindo. Quanto a livros, só queria voltar a lê-los por prazer, como já fiz. Infelizmente, hoje eles são uma obrigação e muitos de meus desejos de leitura estão nas estantes.