Dércio Braúna é escritor e historiador, autor de “Esta solidão aberta que trago no punho”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal. Na verdade, nenhuma rotina de escrita. O que tenho por rotina diz respeito apenas ao meu trabalho (como bancário), a escrita literária, poética, no meu caso, não segue esse caminho. Não sou um autor que escreve poemas, que tenha uma arca (ou pasta, ou arquivo, ou o que quer que seja) cheio deles. Eu escrevo livros, os poemas são parte desse todo, dessa unidade estética. Concluído cada livro, há que vir um novo contágio poético, um novo desespero imparável de dizer certas coisas. É aí que então começa a busca pelas formas de dar palavra a essa necessidade. E isso, em mim, se dá sem rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não entendo que haja, quando escrevo, horas melhores. Mesmo porque escrevo nas horas possíveis, nas que a ordinariedade da vida me permite parar e escrever. Nesses momentos não há ritual. Talvez apenas a busca pelo silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos nos quais o contágio criador me toma, quando uma certa febre para dizer me assalta, quando compreendo que há um livro (uma unidade estética) em gestação. Por isso não tenho metas diárias ou quaisquer outras.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se penso em termos de etapas em meu processo de escrita, diria que primeiro ocorre isso que chamei de contágio, que instala uma febre de dizer (para reiterar as metáforas). O que se poderia chamar de pesquisa, de preparação de notas, etc., se dá concomitantemente à instalação dessa febre de dizer; aliás, é ela (a pesquisa, a investigação) que vai elevando o estágio dessa febre. O começar vem quando a temperatura do pensamento atinge alto grau, ou seja, quando ou se escreve ou se escreve – não havendo outra alternativa. Vendo as coisas dessa forma, o começo não é difícil; ele se impõe.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Dentro do meu modo de escrita (antes descrito), nunca me deparei com travas ou algo nesse sentido. Quando sento a escrever, já em alto estágio de febre (criadora), o desespero de dizer se impõe de um modo imparável, assim digamos. As angústias e ansiedades que vêm a seguir já são um passo além, já fazem parte de um outro momento, no qual necessito estar fora desse estado febril criador. É o momento do leitor e seu ofício, da leitura desapaixonada, de ler-me como a um outro. É o momento de ver o que a febre trouxe, o que serve e o que não, o que é parte de um corpo (um livro, uma unidade estética) e o que deve ser extirpado. É o tempo da impiedosidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um número específico de leituras/revisões, a cada livro isso pode se alterar. Há livros em que foram poucas (três ou quatro) e outros em que foram incontáveis. Quanto a mostrar a outros, faço isso raras vezes, a alguns poucos amigos, e isso já quando o trabalho está pronto, quando já me é impossível adentrar mais ao texto. Ou seja, esse mostrar não mais interferirá no que está escrito; é apenas uma partilha entre amigos, um apresentar de um novo rebento aos próximos antes de expô-lo fora de casa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador, não há rascunhos à mão. O que vai havendo são rascunhos emendados/cortados após a primeira versão impressa do texto. É já o trabalho de leitura, depois de um tempo em que o texto fica em pousio, em que me afasto totalmente dele.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias/sentimentos que me tomam (o contágio que digo) vêm sobretudo, assim eu creio, de tudo que o tempo vai açoitando em mim, de tudo que vai me fazendo sentir/perceber como certas coisas se repetem (mesmo que de outros modos, sob outros nomes). Creio que isso tenha a ver com minha formação de historiador, com uma certa maneira de perceber/entender/lidar com o tempo, ou melhor, com a temporalidade (o sentimento em relação ao tempo). Nesse sentido, não há de minha parte nenhum cultivo de hábitos que levem à criação, especificamente. A não ser que se possa considerar aí a leitura. Mas ela não se dá com essa finalidade, sob essa determinação. Diria mais que ela seja uma ferramenta que me permite, depois, ao escrever, lidar (na forma de escrita) com esse sentido de ser açoitado pelo tempo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Um ganho de consciência sobre o que desejo expor no texto escrito, sobre a labuta pela forma, sobre a busca pelo instável equilíbrio entre o que e o como. O tempo traz (inevitavelmente?) uma consciência mais aguda em relação a essa busca. Talvez seja, afinal de contas, a tão dita consciência da própria voz poética; pode ser que seja isso. Quanto ao que eu diria ao eu dos primeiros escritos? Diria: foi preciso você começar a caminhada para que eu esteja hoje aqui, nesse pedaço de caminho, adiante de onde você estava, mas ainda sem saber onde chegar; porque nunca saberemos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns projetos gestados, mas ainda à espera de seu tempo. Um deles, um que se chamará A encantada e o nevoeiro. Trata-se de uma escrita cuja ideia é a de ela se fazer desconsiderando as fronteiras entre história e ficção. Ou talvez mais propriamente, uma escrita que se faça valendo-se das ferramentas da história e da ficção. A ideia é a de enveredar pelos passos do que foi a vida de Emília Freitas, uma escritora cearense do século XIX, que em 1899 publicou A Rainha do Ignoto, tido como o primeiro romance de literatura fantástica no Brasil, uma obra feminista, republicana, abolicionista, de base espírita, isso em tempos em que levar tais questões à escrita era bater-se contra quase tudo que era dominante. Essa obra ficou por muito tempo esquecida (só recentemente foi reeditada e vindo a ser mais estudada). Minha ideia é partir dela (dessa escrita, dessa ficção) e enveredar pela vida (pouquíssimo documentada) de sua autora, e emaranhar tudo isso à história de seu lugar natal (a cidade de Jaguaruana, antes chamada União) e do Ceará, por via de sua atuação política e de seu pai (o Coronel Antônio José de Freitas), um político liberal (que foi também professor) que esteve à frente de muitas das lutas/disputas políticas de seu tempo na região. Minha ideia é a de construir um texto em que tudo isso (e mais outras ideias advindas de outras partes, de leituras vindas do outro lado do mar) se funda com certos imaginários do lugar, assim repetindo, de certa forma, um procedimento da própria Emília, que partiu de uma lenda do lugar (a de haver uma mulher encantada na gruta do Areré, que fica no que hoje é a cidade de Itaiçaba, antiga Passagem das Pedras) e transformou essa encantada numa rainha da Ilha do Nevoeiro, um lugar para curar aqueles que sofriam.