Dênisson Padilha Filho é escritor, autor de Um Chevette girando no meio da tarde (Mondrongo, 2019, contos) entre outros.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia lendo. Em seguida, ainda bem cedo, passo a escrever. Não que o que eu li ali, logo antes, vá ter influência imediata em minha criação, ou no projeto em que estou trabalhando. Tenho como rotina nunca me afastar de minha obra. Às vezes, dou um tempo para o texto respirar, mas isso não é me afastar; é apenas um distanciamento para apreciação. Quando isso acontece, aproveito e vou reabrir outros textos meus que, supostamente, já estejam finalizados.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Há muito percebi que de manhã bem cedo é o melhor momento para minha criação. É quando estou descansado da realidade e, portanto, quando a recriação de mundo que norteia todas as artes se faz valer. Costumo abrir meu material de trabalho dez minutos antes de me sentar. Logo que me sento para trabalhar, releio o que fiz no dia anterior; da mesma forma, releio antes de encerrar. Não sei se podemos chamar isso de ritual, mas é como encerrar uma coreografia no ponto onde ela se iniciou. Faço questão disso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu me sento para escrever todos os dias, com pequenas exceções se saio em viagem cedo ou aos domingos. Minha meta não é avançar no texto, produzir um número “x” de linhas ou laudas por dia. Porque não considero que todo passo à frente seja progresso. Muitas vezes, retornar, reler, cortar, reescrever, sim, é o verdadeiro progresso na criação. Assim sendo, em meu processo criativo literário, fico dias, meses em um texto só, mesmo tendo alcançado seu ponto final da narrativa. Alcançar a “música perfeita” do texto é labor de séculos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Partindo do pressuposto que inspiração é, percentualmente, muito pouco da obra – a maior parte é suor –, mesmo assim, claro, preciso dela, de uma primeira centelha de inspiração pra começar. Uma vez que se dá este momento, anoto. Costumo trabalhar com argumentos/storylines. Geralmente um projeto de livro (de contos) começa com muitos argumentos já anotados. Acho importante anotar o que vou escrever, mesmo que muitas vezes seja difícil dizer como será o texto. Acho importante porque, antes de anotar, vem uma pergunta: “que história você quer contar?” Ao fazer essa pergunta para mim mesmo, estou desvendando. É quase um processo psicanalítico. Vou desenvolvendo aos poucos, um a um, os argumentos anotados. Mas isso não quer dizer que só passe pra outro conto quando o trabalho no anterior esteja encerrado. Bem, a página em branco é algo amedrontador, clichês à parte, mas é. Porque a gente nunca sabe como o texto vai se desenvolver. Cada texto é uma nova experiência, sobretudo sob o ponto de vista estético, por mais que, há muito, já estejamos no ofício.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como já disse, não sou de me afastar dos textos em que estou trabalhando ou dos que estou para começar. Trabalho neles diariamente. Esses enunciados de procrastinação ou de indisciplina, definitivamente, não me representam. Geralmente lido bem com prazos. Preciso deles, mesmo que seja para me sentir pressionado. Agora mesmo estou com um prazo apertado para mandar a versão definitiva de um volume de contos para a editora. Preciso disso, inclusive para parar de retocar os textos. Em relação às chamadas travas da escrita: realmente elas existem. Com alguma maturidade, serenidade, conseguimos entender que há momentos em que a literatura para de nos visitar; mas é assim mesmo. Quando isso acontece, é hora de, com mais afinco, retrabalhar outros textos. Olha, posso lhe dizer que todo projeto meu é longo, mas se encaro o trabalho, a cada dia que passa, ele fica menos longo, concorda?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio muitas vezes. E isso não é feito para correção ortográfica ou de digitação, ainda não. Releio, aliás, todo dia, antes de encerrar os trabalhos ou antes de abri-los. Como falei anteriormente, no processo de criação, demoro muito para deixar o texto de um jeito minimamente satisfatório. Alguns escritores próximos sempre leem. Tenho o hábito de compartilhar também com poetas próximos, quando tenho dúvidas em relação à questão estética. O poeta traz esse olhar; ele tem, a meu ver, aquele senso do que chamei de “música poética” bem apurado. Alguns chamam atenção para ritmo de períodos, coisas assim. Mas de modo geral já me cobro muito também em relação a isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os argumentos/storylines escrevo à mão. Quando vou começar o trabalho propriamente dito de um texto, costumo escrever uma ou duas laudas à mão e ir pro computador; e assim por diante. Nessa migração de papel para tela, ocorre o primeiro embate de autocrítica estética e de conteúdo, de ritmo, de recursos narrativos, e por aí vai.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm da fricção entre memória e desmemória. A memória colabora para que eu crie a alegoria do que vi, do que vivi e, claro, do que li e do que leio. Minha literatura nasce em parte das referências que a vida me dá, mas também crio minha dicção como escritor a partir dos estilos que li, da contística do século XX e XXI do continente americano, sobretudo. Por outro lado, não deixo de lado minha necessidade e vontade de romper com o que já fiz, esteticamente falando; nesse sentido procuro esquecer o escritor que fui até agora. Não acho que cultive hábitos para me manter criativo. Ou, se há algum hábito, posso dizer que é ler, ler, ler e ficar atento ao mundo. Acho que todo artista deve ser a antena do seu tempo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que de dez anos para cá fiquei mais desconfiado, mais autocrítico. Tenho menos pressa em ver o texto pronto. Além do mais, não vejo mais o texto como algo sagrado, intocável e hermético. Gosto de compartilhar com pessoas em cujo bom gosto eu confio. Elas me dão pareceres honestos sobre o que estou fazendo, muito antes de ir para os editores. Se eu pudesse retornar aos meus primeiros textos/livros, creio que não procuraria publicá-los com a pressa com que foram publicados. Resumindo, diria a mim mesmo que a criação literária requer serenidade e humildade para esperá-la surgir no processo. E paciência para trabalhar bastante cada texto. Lixar o texto com calma e ver aos poucos o brilho surgir.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que gostaria de encarar, mas falta-me tempo para isso: reescrever meu livro de contos de 1999 e meu romance de 2004. Não quero dizer com isso que isso me incomode a ponto de lamentar o que foi feito no início de minha carreira, mas, com certeza, hoje, eu os faria com menos ansiedade e muito mais humildade. Recentemente, logo depois da morte de Sam Shepard, li um romance póstumo dele, que, a meu ver, é uma obra-prima. É um romance composto de divisões, em que os capítulos podem ser considerados contos independentes entre si. Se eu pudesse ler um livro que não li, ou que não existe, seria uma surpresa bem parecida; só que seria um volume de contos inéditos de John Fante.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não que eu ache que a criação será cumprida à risca do jeito que foi planejada, mas gosto de minimamente planejar um novo projeto, sim. Creio que a esta altura de minha carreira, não tenho mais o direito de apenas “deixar fluir” e entregar má literatura aos meus leitores.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como escrevo ao longo das manhãs, antes de a semana começar, planejo para que seja assim. Ao longo do restante do dia, procuro cumprir atividades ligadas à literatura (responder emails, entrevistas etc) para que eu tenha as manhãs somente para a criação literária. Do ponto de vista da criação, procuro ao máximo me ater a somente um projeto por vez. É claro que às vezes a gente é cobrado a dar atenção a um texto e outro que pertença a outro projeto. Entretanto, do ponto de vista de desdobramentos que a literatura traz — conversa com editor, leitor, revisor, revista etc — tenho sempre que lidar com mais de um projeto ao mesmo tempo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Bem, a resposta a esta pergunta se divide em, digamos, blocos temporais: no início o que me motivou foi a vontade de me expressar. E como sempre fui um leitor voraz — anos mais ou anos menos, mas sempre voraz — naturalmente. essa expressão viria pela criação literária. num segundo momento fui movido por uma vaidade tremenda. A vaidade que, se não for domada e podada, pode matar o escritor ali mesmo, em seu começo de carreira. De uns 10/12 anos pra cá sou motivado por uma espécie de necessidade premente e crescente de esquecer o escritor que fui no livro anterior, ciente de que a literatura não é a arte da palavra mas uma arte que deve dar conta de sentidos que a palavra não mapeou.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Devemos, antes de começar a responder, saber separar dificuldade de esforço. Neste sentido, devo dizer que não tive dificuldade, mas me esforcei muito. Tentar falar cada vez menos e dizer cada vez mais, fundar, em minha criação, um marca de narrativa cheia de contenções e não-ditos — que é o que persigo — é algo que requer esforço de manutenção de meta, senso de observação e leitura, muita leitura. Alguns autores influenciam e influenciaram muito; alguns com a atmosfera sugerida, outros com estética narrativa. Outros com as duas coisas e mais algo insondável e magnetizante.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Costumo dar minhas sugestões de leitura muito menos por motivos de boa leitura apenas, ou por elas contarem histórias (porque todas já foram contadas), e muito mais por algum gênio inventivo que por ventura eu tenha encontrado em alguma obra, pela forma que seu autor exercita. Sem falar que, muitas vezes, a história mais genial não está naquela que é contada, mas naquela que o autor deixa ecoando na cabeça do leitor. Aqui vão minhas dicas (não citarei novamente Aqui de dentro, romance póstumo de Sam Shepard, em que ele constrói uma atmosfera de memória e melancolia, um conjunto de reflexões de um personagem de meia idade.): Aura, novela do mexicano Carlos Fuentes, narrada em segunda pessoa. Este é um recurso pouco usado e que muito me instiga. Balada do café triste, livro de contos da estadunidense Carson McCullers lançado na década de 50, cheio daquilo que chamei de contenções e não-ditos, em que ela tece seus contos divorciada de uma falsa necessidade de deixar mensagens. A autora domina a expressão e estabelece seu mundo, transfigurado, sem essa necessidade de parecer um paralelo com o mundo; porque sabe que a Arte não é sobre o mundo, mas sim, um mundo. Por fim, o livro de um autor de minha geração, Hotéis, do boliviano Maximiliano Barrientos, romance de estrada narrado sob o olhar diverso de três personagens.