Demétrio Panarotto é escritor, poeta e professor de roteiro na UNISUL.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo os meus dias a partir das necessidades que assombram cada manhã. Meus dias não se repetem, o que não me permite pensar em uma rotina. Isso acaba por aproximar aquilo que escrevo do lado caótico da vida. Do precipício. Hoje, por exemplo, fui acordado antes do que eu pretendia pelo ‘carro do ovo’, ‘alô freguesia, tá passando aqui na sua rua, o carro do ovo, carro do ovo’ (a voz do rapaz era ligeiramente fanha ou eu a escutei como se fosse fanha). Levantei, joguei uma água no rosto e consegui ‘parar’ para responder essas perguntas, mas só iniciei depois de ter recolhido algumas roupas que estavam pelo chão e colocado na máquina (viajo em quatro dias, passo uma semana fora), dobrado outras, e colocado uma água esquentar para o chimarrão. Ah, enquanto eu teclo, converso com o povo da net, preciso aumentar a minha banda larga de um mega pra não sei quanto, acabou de me dizer a Suzete (depois de eu já ter passado pelo Pablo, a Patrícia, o Conrado e a voz ‘mágica’ do ‘já sei de onde tu está falando’). Em meio a isso, atendi o telefone fixo (poucos no mundo mantém essa opção de entretenimento), era o Moacir Franco (meu amigão, liga todos os dias). Ontem, por sua vez, quem ligou foi a Gretchen, falando de uma técnica nova de depilação. E assim o dia segue. E é no descalabro da vida que o texto se movimenta. Peraí, que a água ferveu.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não consigo ter esse grau de percepção a ponto de dar uma resposta precisa. Trabalho, como disse, em meio ao caos. Mas no final, e talvez dá pra dizer que essa seja uma das poucas certezas, há na escrita, independente do horário do dia, um constante ritual de atravessamento. A escrita sendo cortada por outras nuances. O improvável, e considero isso fundamental. O atravessamento de agora foi por conta do vizinho que acabou de ligar a máquina de cortar grama (o Conrado, que segue na linha, disse-me que não consegue mais me ouvir, que a ligação tá ruim, muito ruído, disse a ele que todas as vezes que liguei pra net foi assim, que talvez seja um problema da operadora…). É o primeiro dia de sol depois de cinco ou seis dias chuvosos. Admito que, em outros momentos, o barulho da máquina rasgaria os nervos do meu corpo e eu, por conta de alguma insatisfação qualquer (essa que é ver o tempo correndo e não poder erguer o braço e pedir pra ele parar), dentre outras coisas, beberia mais chimarrão do que o normal e o dobro de café, mas nesse exato momento em que sigo essas linhas (fazendo um leve esforço pra me concentrar), tenho a impressão de que já me acostumei com o ruído e com esses atravessamentos que ajudam na falta de rotina. Mesmo que isso seja sempre um conflito a ser ajustado e que talvez venha daí uma das molas que movimentam os textos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A meta é sempre chegar vivo ao final do dia. Já disse isso em outras oportunidades e as pessoas que ouviram riram e pensaram que fosse brincadeira. A vida é um bem precioso, sei que é um momento do mundo (parecido com tantos outros de outrora) que as pessoas podem pensar de modo diferente e não dar valor algum a vida, mas eu me sinto bem com esse propósito (de me manter vivo) que, convenhamos, é dos mais difíceis. Se considerar aqueles que não tem esse tipo de preocupação, pode dar pano pra manga pra um outro grau de entendimento. Ao mesmo tempo pode gerar alguns tipos de dúvidas e, por conta disso, de especulações. Percebam que a gramatura da pergunta faz com que a resposta possa sugerir coisas, apenas isso. Ah, ao chegar ao final do dia, se puder ter escrito algo, melhor, e se em algum momento puder considerar que aquilo que escrevi movimenta um texto, melhor ainda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O começo é sempre um sopro. Independentemente de um texto de ficção ou acadêmico (considerando que eu gosto de jogar com e entre os dois), deixo que esse sopro encaminhe o texto. Muitas vezes (ou na maioria delas) imagino o texto de um jeito, mas depois que começo a movimentar as palavras o texto ganha outros desdobramentos de ordem estrutural e as ideias, ou mesmo a proposta, movimentam-se juntas. Se o texto parou ou se eu senti que o que escrevei precisa ser alimentado, há uma busca por uma retomada das ações, que pode ser simplesmente um gesto de observação de algo ou de voltar as leituras (em alguns casos, sem a necessidade de ler sobre o assunto que supostamente me interessava). Há textos que demoro mais por conta de não ter encontrado o modo com o qual gostaria de dizer algo. Começo de um jeito. Recomeço. Paro. Em algum momento abandono. E retomo. E esse recomeço, em alguns casos, ocorre de modo aleatório.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso pra mim é um pouco de balela. Trava é falta de referências, de preparo ou de tempo para que o texto ou os projetos se desenvolvam. A cobrança (por conta da mercantilização do mundo), em muitos casos, é absurda, todavia, cada texto (projeto) tem o seu tempo. Em algum momento imagino que tenha aprendido a lidar com isso. Em relação aos meus livros, até agora, eles saíram por pequenas editoras e em muitos casos de modo independente, ou seja, há um diálogo antes para pensarmos, eu e os editores, os projetos. Até porque pra mim a escrita é um prazer. Escrevo quando quero e quando tenho vontade. No momento em que se torna (ou que se tornar) um incômodo, deixo de escrever. E depois posso retornar do mesmo jeito que (e se quiser de onde) parei. Em relação aos projetos, envolvo-me com coisas que estou afim de fazer e com pessoas com quem possuo o mínimo de afinidades, mas importante, que demonstram comprometimento (naturalmente, nem sempre foi assim). As expectativas e a ansiedade fazem parte do pacote. O medo é teoria, e, ao mesmo tempo, reclusão, e eu procuro fazer dele (reforço, procuro) uma mola que movimente os textos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão depende muito do tipo do texto. Há textos que saem e que parecem prontos. Em outros casos, há um constante reescrever que muitas vezes está associado a um tipo de exigência. Mas relaxo, pois o texto da canção é diferente do texto do poema, da prosa, da imagem e do texto acadêmico. E preciso reforçar que desde os primeiros textos, mantenho diálogos com amigos que tenho próximo. Tenho liberdade de perguntar e dou liberdade pra opinarem (muitas vezes operarem o texto). Em alguns momentos me acho um chato por conta disso, mas é preciso frisar que as outras vozes que compõem a minha escrita são de suma importância.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uma briga constante. Talvez não saiba usar como devia. Mas procuro administrar da melhor maneira possível. Já escrevi muito em cadernos, bilhetes, borrões. Muitos desses textos se perderam ou eu fiz questão de perdê-los. Muita coisa ruim, nossa. Mas mesmo com a tecnologia que nos rodeia, em alguns momentos, o rascunho de anotação é recorrente. Mas na maioria das vezes anoto as ideias direto no computador e nas brechas do tempo tento desenvolve-las. E como disse, há ideias que demoro pra desenvolvê-las, e outras parecem que já vem prontas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leitura e observação. Em alguns momentos leio compulsivamente, em outros deixo um pouco os livros de lado. Isso funciona do mesmo modo com os filmes. Em algum momento descubro um autor (ou cineasta) que não conhecia ou que não havia percebido, dado a devida atenção, e aí entro de cabeça. Há ainda a experiência de sala de aula (seja na universidade ou em oficinas para outros tipos de públicos) que é mediada pela leitura pra dar aula. E há a experiência do palco, de outro grau de intensidade. Quando cito todas essas (dentre outras), sempre penso em uma câmera se posicionando e permitindo outros ângulos, outros olhares.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O modo de leitura. As experiências de vida permitiram que com o passar do tempo eu tivesse outras possibilidades de entendimento das coisas que me rodeiam. Diria: dale, é isso, nem pra lá, nem pra cá.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos que aos poucos estou colocando em prática. E é nisso que me concentro e que me parece ajuda a responder as perguntas. Esse ano, por exemplo, lancei: 18 Versos Para o Funeral de Demétrio Panarotto, um trabalho a partir de várias vozes, em uma parceria com a Papel do Mato, do Cristiano Moreira; Tratamento da Imagem, com o selo Patifaria, um livro artesanal, de uma delicadeza no jogo entre a ficção, o prefácio do Artur de Vargas Giorgi e as imagens e a montagem feitas pela Pati Peccin; no começo do ano lancei Blasfêmia, o terceiro da Trilogia (No Puteiro, Café com Boceta), pela Butecanis Editora Cabocla, do Daniel Rosa dos Santos, livros feito a facão, de modo independente e sem isbn; e lançarei, ainda no segundo semestre, Lotação, pela Medusa, do Ricardo Corona, e Arquipélago, outra parceria com o selo Patiaria.