Delalves Costa (Anderson Alves Costa) é professor, pesquisador e poeta, autor de “O Apanhador de Estrelas” e “Inacabamento, a eterna gestação”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Comumente, às 6h40min é o horário que acordo mediante despertador e sem demora me levanto (há muito que entro madrugada adentro para escrever). Profissionalmente, sou professor de língua portuguesa, literatura e texto técnico em uma escola pública, na qual bate o primeiro sinal às 7h45min – por residir não tão distante da instituição, uma hora é suficiente para me vestir, preparar o café e degustá-lo (sim, Café é meu vício e adoração) na companhia da esposa, também professora. Contudo, biologicamente, é após as 9h que “acordo” (até então, sou tão-somente aquele cumpridor das tarefas, no “piloto automático”). No sábado pela manhã, geralmente, frequento a aula do mestrado. Domingo, dia para acordar mais tarde – isso porque aproveito a madrugada mais intensamente. A exceção é as férias, geralmente entre janeiro e março, período no qual me permito ser ‘atempo’ (O relógio é a morte anunciada do artista). As férias é tempo de leitura, o dia fica maior por conta do prazer em fazer as coisas sem pressa. Já li “O peso do pássaro morto”, de Aline Bei, “à cidade” (Prêmio Livro do Ano – Jabuti), de Mailson Furtado, “Armindo Trevisan – O poeta harmonioso”, de Eduardo Jablonski; e estou relendo “Histórias não (ou mal) contadas: Primeira Guerra Mundial”, do historiador e escritor (amigo e conterrâneo) Rodrigo Trespach. Ademais, são leituras acadêmicas (Catherine Walsh, Walter Mignolo e Boaventura de Souza). Rotina matinal? Talvez, no período em que leciono, em virtude da profissão. Quanto à produção literária, sim, há períodos de visceral reclusão; no mais, aconteço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, após as 22h, sem hora para dormir (como é inspirador ‘adormecer de poema’!). Em 2018, nas segundas e terças-feiras não lecionei. Em razão do mestrado, solicitei redução de carga horária. Para esses dias, organizei uma rotina um tanto atípica. Cedo da manhã ‘esquematizava’ o planejamento das tarefas da semana, com primazia às tarefas do mestrado. Das 8h às 11h, mais ou menos, religiosamente, dedicava-me às leituras acadêmicas. À tarde, pouco produzia. É a parte do dia que mais tenho dificuldade para me concentrar. Para compensar a inaptidão, saborear um café (ou vários) em casa ou numa cafeteria da cidade de Osório – onde resido – tornou-se rotina, com os amigos e escritores (com um, ou mais, ou todos, quando era possível) Rodrigo Trespach, Fabiano Marques, Jerri Almeida, Paulo Sanches. No campo acadêmico, condicionei-me a ser regrado, como forma de vencer a demanda das inúmeras leituras e da escrita, a qual exige o autor/pesquisador disciplinado, criterioso e mais racional; por isso, mais ritualizada. Na literatura, o ritual, no meu caso, é sentar-se numa poltrona vermelha, ao lado da estante de livros; não raro, uma taça de vinho tinto seco no inverno e uma cerveja artesanal no verão sobre a mesinha de centro (quando não na própria estante). Osório é uma cidade abençoada, com paisagens deslumbrantes no nascente ou no pôr-do-sol: quer seja às margens da lagoa do Marcelino, quer seja no Parque Eólico ou no Morro da Borússia. É inspirador! O ritual não está propriamente na intenção, mas no acontecimento que passa a não mais acontecer quando o reflexionamos a respeito… Até então, eu nunca o sabia!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias, não. (Se as ‘descabidas anotações poéticas’ em guardanapos ou, mais recentemente, no aparelho celular, valem como escrita – aí sim, escrevo um pouco todos os dias!). Todavia, há períodos de intensa produção. Inspiração não tem hora para chegar. E quando falo da inspiração, não estou tratando apenas do ato de conceber tão-somente, mas do exercício da reescrita, a qual, em geral, é o mais exaustivo processo, é um momento em que intensamente se “Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!”, como bem escreveu Olavo Bilac, no poema A um poeta. Metas, não. (Em tempo e oportuno: para o atual mercado editorial que visa apenas à constante e ampla vendagem de livros, investir na publicação de livros de poesia – se não for de um autor midiático ou o já consagrado (in memoriam, geralmente!) – é literalmente perder dinheiro. Talvez por isso seja difícil publicar poesia nas grandes editoras. Também não posso fazer um diagnóstico negativo, pois – em virtude do meu ativismo cultural para difundir a poesia – minhas pequenas tiragens sempre se esgotam rapidamente; mas não me iludo. Na contramão, pequenas editoras estão dando conta deste nicho, e (o que é formidável!) se destacando na lista dos principais prêmios literários do país, como a Patuá, a Nós, a Não Editora, que apostam em distribuição independente e divulgação informal. Recentemente, a Editora Class/Bestiário, do poeta e editor Roberto Schmitt-Prym, que segue mesma perspectiva editorial, publicou o meu livro de poesia “O Apanhador de Estrelas”. Uma edição lindíssima.) Posto isso, acredito que a poesia está liberta das convenções mercadológicas, tornando-se, assim, não o livro- meta – e sim em uma poética que flerta misteriosamente com a circunstância: “vez, voz e mo(vi)mento”. Portanto, escrevo despretensiosamente, sem meta diária. No entanto, escrever é o fôlego que preciso para superar as íntimas angústias, as atrocidades humanas, as adversidades terrenas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo de escrita é semelhante ao de muitos autores, e o considero simples. Inspirar-se não entra na agenda, assim penso. Logo, minhas anotações ao longo do dia – fragmentos, é o que são – guardo-as não em um lugar em específico (talvez, pela minha desorganização organizada); mas onde, geralmente, revisito com propósitos diversos. Desses, um é o de oxigenar a produção; sim, reescrever os nossos textos é um modo de ‘revolver o inspirado’. Palavras no texto são como resíduos na composteira: vez que outra, é fundamental revirar para dar “respiro” ao processo. Não trabalho com o começar, mas com o insurgir de tempos em tempos. Como me movo da pesquisa à escrita? Não assimilei bem ainda. Mas de uma coisa tenho certeza: é demorado. Criador e criatura precisam amadurecer ao mesmo tempo sem prazo para isso acontecer, o que requer uma dedicação quase que exclusiva no processo criativo (Não é o meu caso). O nosso ofício diário nos desloca do eixo da produção literária; porém, tal deslocamento, de certo modo, quando bem assimilado, pode até contribuir. Pois a pesquisa ocorre no campo… É a escrita que nos exige recluso!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Confesso que não me preocupo se vou ou não corresponder às expectativas. Por quê? Logicamente, todo poeta e escritor têm um público alvo definido para o qual escreve; contudo, jamais podem subestimar o que não está ao seu alcance, como, por exemplo, a ‘sensação’ que a obra poderá despertar em quem a lê. Entre uma publicação e outra, o tempo de maturação deve ser longo. O tempo do texto não pode seguir o tempo do calendário, do relógio. Há períodos de fértil produção, outros nem tanto. Estou bem resolvido no meu atual momento: escrevo sem pressa, publico quando encontro editoras parceiras que apostam numa obra autoral. O inédito “Extemporâneo”, livro que pretendo lançar em 2019, reúne poesias de diferentes épocas desde 2016. Reescrevi-o inúmeras vezes. Pretendo dá-lo por encerrado – se é que o encerramos! – no final de março (talvez antes, se eu conseguir antecipar a finalização da Dissertação do meu mestrado). O prazo por mim estipulado é uma questão de sugestão pessoal, não compromisso ou imposição organizacional.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Geralmente, antes de divulgar no virtual ou de enviar o material à editora, a primeira leitora e crítica é minha esposa (também professora de Língua portuguesa e Literatura). Por vezes, publico poesias no face. Não para buscar aprovação estética, ou por vaidade. Em tempos de extremismos, humanizar a internet com poesia é essencial. Acerca da revisão, são várias (7, 10, 15…) reescritas. Para além da estética, penso não ser só uma questão de quantas vezes é preciso reescrever uma poesia (ou romance, conto, crônica) para atingir a ‘tal excelência’; definitivamente, é o ‘eu literário moldando o artista’, é um desconstruir-reconstruir mútuo. O lado humano do autor se deve a essa ‘simbiose poética’. O livro “Inacabamento, a eterna gestão”, lançado em 2016, traz um pouco desse primeiro questionamento, mas sem lhe fornecer resposta. Um texto nunca está pronto. De acordo com Jablonski, sou um poeta diferenciado e por duas razões: “A primeira diz respeito ao poeta maior dos ianques, Walt Whitman, o qual conversou com o filósofo Ralph Waldo Emerson sobre sua coletânea (de Whitman) Leaves of Grass, e o pensador sugeriu-lhe que passasse a vida reescrevendo e republicando tais versos. Assim Whitman fez de 1855 a 1892. O autor não age rigorosamente dessa maneira, e a cada novo lançamento retoma alguns trabalhos que reaparecem recriados, como se pretendesse atingir a perfeição. E esse é o segundo ponto que o diferencia da quase totalidade dos poetas de associações literárias no Rio Grande do Sul.” (JABLONSKI, 2018, p. 7) Estamos todos em constante amadurecimento (tanto pessoal quanto intelectual), e o que escrevo resulta desse processo, como se fosse um acordo tácito entre o autor e sua obra. Escrever é também inventar-se.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Busca-se o mais rápido possível se adaptar à era tecnológica, na qual estamos conectados às redes sociais e com acesso irrestrito a toda forma de informações e conhecimentos, em que o “posto, logo existo” é mais representativo do que a frase “penso, logo existo”, do filosófico Descartes. Não raro conheço a literatura de autores contemporâneos brasileiros e estrangeiros (à margem da grande mídia) por meio das redes sociais. Nem sempre se tem computador à mão; e como já disse, a poesia acontece. Escrevo em ‘retalhos de papel’, ou mesmo no aplicativo de texto do aparelho celular. Depois, passo para uma pasta no computador. Imprimo somente quando o livro está composto de todos os textos (o que não é definitivo!), para assim realizar as reescritas. No computador, tornamo-nos mais hábeis e ágeis na confecção do verso, pois escrever/“desescrever”/reescrever é fácil. Todavia, rascunhar no papel é aquele inexplicável encantamento que dá (acredito) autenticidade, torna palpável o som, a musicalidade, a textura do não dito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A arte é uma delicada flor que se adapta para respirar a tempestade. E nesse contexto, a poesia não está na textura vocabular, mas no coração de quem a sente (quer seja na fonte, quer seja no deságue). Em 2018, absorvi de um escritor: “às vezes tenho dúvida se escrever é um ato de resistência ou de resiliência” (Li no Face. Quem souber o autor…!) Muito me questionam: qual teu estilo? Teu(s) tema(s)? As nuances do mundo me fascinam, para cada época um olhar sob a ótica das vivências e experiências de leitura. Escrevo poesias puramente descritiva, hermética e/ou memorialista, ou experimento a mistura dessas. Verso sobre o cotidiano, e tudo que o cerca e o que nele habita. Contudo, algumas temáticas aparecem com mais frequência, como já apontarem os críticos e leitores mais atentos. A reflexão sobre existência/condição humana e seus disfarces, a natureza e suas nuances, o universo urbano e suas transformações, a infância/tempo/velhice, o descaso social e o erotismo são os temas mais relevantes, isso quando comecei a me dedicar à produção literária mais intensamente. Não cultivo hábitos, minha poesia vem da vida. Simples assim!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O cotidiano apresenta a sua poesia pelo olhar do poeta em busca do que lhe é ausente ou indizível. Escrever, antes de tudo, é vivência a partir do experenciar/experimentar. Amadurece-se pelo tempo, entre tentativas e desapontamentos, na loucura de fazer arte com significantes e significados. Toda palavra tem história e histórias, somente vislumbradas pelos mais sensíveis, os quais extraem não encanto, mas contemplação. Ao longo dos anos, aprendi a transitar sem preconceito por todas as áreas do conhecimento, o que me ajudou a ser mais íntimo-sensorial com a palavra e, em decorrência, a cultivar, apanhar e saborear a nossa versão da história. No meu processo de escrita pouca coisa mudou. Não quanto à forma/estrutura ou à temática, mas no que tange à poética ‘além-verso’ (Escrevo para além da palavra, fundem-se o explícito/implícito). Deixei de ser urgência, efêmero. Hoje, sinto que me tornei mais experiente com o fazer poético não porque amadureci intelectualmente por absorver mais (e melhor) as técnicas literárias, mas por reconhecer a plenitude (a)temporal do texto, e que a obra (só) se concebe enquanto tal quando não há egocentrismo, vínculo de posse. O que eu diria a mim se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos? Sempre retorno aos meus escritos. Retomo a cada novo lançamento alguns trabalhos, os quais, como escreveu o crítico Eduardo Jablonski, “reaparecem recriados”. As obras literárias ficcionais precisam do caos autoral para legitimar a invenção; contudo, nem todos amadurecem à/na sua época…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Bem, talvez priorizar mais a literatura (e tudo que a cerca), como participar mais de eventos literários e culturais além locus-regional, como feiras de livros, palestras em espaços culturais e educacionais, por exemplo. A docência me limita muito quanto a isso. Conciliar essas minhas duas paixões é difícil; não raro, declino aos convites. Apesar disso, em 2019, participo do evento multicultural 20º Maifest, em maio, no Brooklin – São Paulo. Também encontrar uma editora que aposte na poesia e que tenha como projeto editorial inscrever seus autores nos concursos literários de expressão nacional. Isso ajuda a dar visibilidade ao livro. Quero ler os próximos livros de muitos poetas e escritores que admiro muito, eis alguns nomes hoje despontando no cenário da literatura brasileira, como Rodrigo Trespach, Mariana Basilio, Aline Bei, Mailson Furtado, Juliana Leite.