Deborah Moreira Guimarães é doutoranda em filosofia e faz parte da equipe editorial da revista Ekstasis.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No período da graduação eu costumava acordar cedo, tomar café da manhã e iniciar a rotina de estudos. Naquela época, eu fazia iniciação científica e destinava a maior parte do meu tempo às leituras da pesquisa. Depois de entrar no mestrado comecei a acordar cada vez mais tarde, o que me fez trocar, aos poucos, a noite pelo dia, principalmente, durante os períodos de escrita. Faz um tempo que busco retomar as atividades diurnas, pois a qualidade do meu sono piorou muito. Na maioria dos dias, acordo por volta de 8:00 horas, tomo café da manhã, faço algumas tarefas domésticas, leio várias matérias na internet (geralmente as versões online da BBC, do El País, da DW, e outras notícias que me despertam interesse na internet), dou uma olhada nas redes sociais e nas caixas de e-mails, e inicio as atividades do dia. Eu não tenho uma rotina fixa, pois passo o meu tempo buscando conciliar a escrita da tese e as leituras com as atividades paralelas que realizo, como aulas particulares, revisões para a revista, trabalhos de tradução e cursos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor quando me sinto descansada, independentemente da hora do dia. Às vezes trabalho de manhã, frequentemente à tarde e bastante à noite. Quando tenho algum prazo vencendo, costumo virar a noite para conseguir terminar as tarefas. Os prazos costumam ajudar bastante, pois estabeleço uma lista de prioridades e me concentro nas tarefas cujos prazos vencem antes.
Eu sou muito metódica, então só consigo iniciar as tarefas depois de arrumar o quarto, organizar a mesa, etc. Eu costumo guardar todos os livros na estante quando termino as tarefas e retirá-los novamente no dia seguinte. É muito difícil manter a concentração quando percebo coisas fora de seus respectivos lugares, como papéis misturados ou anotações perdidas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Geralmente, escrevo em períodos concentrados. Eu costumo gastar bastante tempo com leituras e anotações. Depois, sento e escrevo tudo de uma vez só. Claro que faço várias revisões, costumo apagar todo o texto e reescrever tudo novamente quando fico insatisfeita (o que sempre acontece). Como estou escrevendo a minha tese, estabeleci algumas metas (o que raramente faço), pois sinto que o planejamento ajuda a lidar com a ansiedade, principalmente quando estou atrasada em relação ao cronograma proposto, o que é o caso agora. Eu penso que as metas de escrita funcionam quando condizem com a lógica própria do texto. Considero realmente muito difícil estipular um número mínimo de páginas para escrever diariamente, pois o fôlego da escrita depende também da própria sequência das ideias. As minhas metas geralmente são relativas a subcapítulos e datas, o que varia muito, porque um subcapítulo pode ter 5 páginas e outro, 20, por exemplo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acredito que o meu maior problema seja saber quando está na hora de começar a escrever. Geralmente, leio e anoto bastante, mas sempre tenho a sensação de que não há leitura o suficiente para passar à fase da escrita. Assim, costumo prorrogar tudo o máximo que posso, para ter mais tempo e conseguir ler mais sobre os temas com os quais estou envolvida. De qualquer forma, acho que começar um texto é sempre difícil. Costumo dizer que a primeira página é sempre a mais sofrida, aquela que você gasta muito tempo para elaborar e que nunca fica boa o suficiente. Outra questão que considero relevante é a retomada das fontes bibliográficas. Quando o tema é muito discutido e há, por isso, muito material disponível à pesquisa, a tarefa da escrita torna-se ainda mais problemática, uma vez que há o constante receio de estarmos negligenciando algo importante já dito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sempre tento lidar de maneira positiva, além de partir do pressuposto de que não sou obrigada a corresponder às expectativas, nem daqueles com quem estou diretamente envolvida, tampouco com as do público geral. Eu não me considero uma pessoa procrastinadora, às vezes perco muito tempo tentando compreender, de fato, aquilo que estou fazendo. Acredito que o mais importante na vida acadêmica seja a honestidade que você emprega nas tarefas a que se propõe. Não estou pronta, tampouco acho que a minha redação seja muito boa: há sempre muito a melhorar. Eu estudo todos os dias e isso inclui não apenas as leituras da bibliografia proposta na tese, mas também línguas (por exemplo, estudo alemão quase todos os dias), literatura, e outros autores da filosofia. Ler outros filósofos faz parte de um exercício que venho fazendo há algum tempo: procurar arejar um pouco a minha pesquisa e problematizar de forma mais crítica a obra do autor a quem me dedico (Martin Heidegger). Eu não consigo avançar na escrita sem antes ter compreendido as questões propostas. Todos os dias eu penso sobre as atividades às quais me dedico e faço reflexões sobre as minhas leituras. Costumo ver a filosofia como um caminho longo e sem fim, que exige de cada passo uma volta a passos anteriores. Acho que é por isso que frequentemente retorno a Platão, a Descartes, e a outros filósofos com os quais tive contato na graduação. Sobre a ansiedade, posso dizer que passei anos tomando medicamentos: do primeiro ano de graduação até o último ano de mestrado. Quando entrei no doutorado, me dei conta de que esse caminho não tinha uma linha de chegada e que não se tratava de uma corrida, mas de uma caminhada, que eu havia, por livre escolha, decidido trilhar. Foi então que percebi que eu não precisava encarar a vida acadêmica como uma competição ou reduzir tudo o que eu era ao meu currículo lattes: desacelerei e passei a me pressionar menos. Quando a ansiedade volta (geralmente quando algum prazo se aproxima) eu paro e faço alguma atividade relaxante, como pintura em tela, o que tem me ajudado a lidar com a pressão sem prejudicar a minha saúde mental.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Mesmo assim, nunca acho que eles estão prontos, pois sempre encontro algo para reescrever. Geralmente, incluo muitas notas de pé de página ao longo das revisões, para esclarecer tudo aquilo que penso que ainda está obscuro no texto. Além disso, acho que uma boa redação é sempre muito difícil. Frequentemente escrevo parágrafos muito longos, com trechos às vezes incompreensíveis e alguns lapsos argumentativos, o que costuma acontecer quando perco o raciocínio e depois retomo a escrita sem me atentar ao parágrafo anterior. Eu sempre presto atenção às recomendações de meu orientador, cuja escrita é clara e objetiva. Estou procurando desenvolver uma estética textual, para que o texto seja mais acessível e possua uma forma leve, mas confesso que tenho dificuldades. Eu não costumo mostrar nada que escrevo a ninguém, apenas aos meus orientadores e, às vezes, ao meu irmão, que, além de ser o meu maior crítico, é o meu companheiro de diálogo na filosofia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto da tecnologia na medida em que a uso para facilitar a minha vida. Tenho uma relação bem ambígua com recursos tecnológicos, pois ainda uso cadernos para as anotações de leituras e costumo escrever memórias e pensamentos em bloquinhos. Além disso, tudo que é relativo ao estudo de línguas anoto em cadernos: faço tabelas, adoro canetas coloridas e marca-texto. Já em relação a trabalhos e artigos, sempre escrevo diretamente no computador, usando como base as anotações feitas à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Penso que as ideias vêm das vivências: leituras, filmes, conversas, músicas, etc. Eu costumo refletir bastante sobre os filmes que assisto, as músicas que escuto e as leituras que faço, sejam elas sobre filosofia ou não. Eu costumo dizer que – quase – tudo pode ser filosófico, mesmo que não seja sobre filosofia. De uma maneira geral, as minhas principais ideias vêm de questões filosóficas que extraio de livros de literatura e de filmes. Por exemplo, a ideia central da minha dissertação de mestrado surgiu após assistir ao filme Viver, de Akira Kurosawa (o que não mencionei na dissertação, mas pretendo escrever sobre a relação entre Heidegger e Viverem algum projeto futuro). Acho que os problemas filosóficos aparecem sempre na vida, basta direcionarmos o olhar para perceber a densidade das atividades cotidianas e a beleza que as envolve.
Destaco, sobretudo, a beleza do diálogo. As conversas arejam as ideias e trazem mais lucidez ao meu processo criativo, creio que o compartilhamento de vivências possui um benefício recíproco e frutífero. Eu costumo conversar bastante com os meus amigos, principalmente escutar aquilo que eles têm para dizer, acho que esse hábito é um exercício de empatia e, consequentemente, de autocrítica.
Eu adoro escrever projetos, tenho inúmeras ideias sobre temas e problemas, o que também costuma me atrapalhar um pouco, pois antes de terminar um projeto eu já começo a pensar no(s) próximo(s). Em geral, desenvolver algo novo faz com que eu mantenha o entusiasmo e o encanto pela filosofia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nos anos de graduação eu costumava escrever mais, o que não necessariamente se refletia em qualidade textual: os meus textos eram mais prolixos, com pouca densidade conceitual e muito descritivos, pois eu tinha muita dificuldade em problematizar os autores. As coisas começaram a mudar quando busquei não apenas entender o que estes diziam, mas compreender a importância das questões no contexto do próprio percurso da história da filosofia. Procuro, agora, refazer os caminhos para entender como surgiram os problemas, ao invés de descrever as respostas. Eu iniciei a pesquisa já no primeiro semestre de graduação. Inclusive, sou muito grata ao meu antigo orientador por ter me ensinado todos os primeiros passos da vida acadêmica. Contudo, posso dizer que muita coisa mudou de lá para cá. Foram dois anos de iniciação científica em Platão e um ano em Espinosa, grande parte da mudança no processo de escrita se deve à minha escolha atual. Quando comecei a estudar Heidegger, senti uma proximidade tão estreita entre a minha própria vida e os estudos que grande parte das lacunas de compreensão em relação à própria atividade de pesquisa sumiram. Encontrei na fenomenologia não apenas uma área de estudo, mas também uma visão de mundo, de modo que hoje sinto que o meu texto me pertence de uma maneira muito própria e genuína. Atualmente escrevo sobre um autor que representa, em larga medida, o que eu penso sobre a vida (com inúmeras ressalvas, claro). Antes, era como se os meus textos fossem alheios a mim mesma.
Sobre a segunda questão: não sei se eu teria algo a dizer a mim mesma. De modo geral, estou satisfeita com a minha trajetória. A escrita é um exercício: quanto mais se escreve, mais preparado se torna. E todo início é sempre um início – não apenas da escrita, mas também do escritor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como eu disse, adoro fazer projetos. Tenho muitas coisas em mente para o futuro. Eu gostaria muito de aprender mais sobre antropologia, e (se não for muita pretensão) escrever algo relacionando Heidegger, Boas e Sapir no âmbito da filosofia da linguagem. Outra área que me desperta muito interesse é a psicologia. Um dos meus planos para o futuro é estudar mais sobre a psicologia fenomenológica. É sempre muito difícil escolher um tema, pois tenho muitos interesses na filosofia. Assim que terminar o doutorado, pretendo ler mais sobre Wittgenstein, Kant, Hegel e Nietzsche, tanto para dar continuidade ao caminho até aqui percorrido, quanto para preencher as lacunas que ficaram para trás.
É difícil falar sobre um livro que ainda não existe, mas posso dizer que a minha estante me lembra diariamente de tudo que eu gostaria de ler e que ainda nem abri.